O que gela
O que gela
na madrugada
a mão que contorna,
na névoa densa,
o círculo do Mundo?
Assustada,
a fala
perde-se,
alçada aos equívocos
do Céu.
E nela,
a amada
a pele, tardam
os pelos rijos:
orvalho e desespero.
O que gela
na madrugada
é a corda rota,
a derradeira gota de suor
da morte interrompida.
O que gela,
e o amanhecer retarda:
a paralisia
da mandíbula,
o couro macerado na fuga.
Os livros
Os livros são meu celeiro de devaneios.
Onde adormeço na dobradura do tempo
pênsil -,
no desfiladeiro de um cotidiano que nos semeia
no nada.
Os livros
abraçam
minha loucura
atordoada
pelo semblante
de homens dignos,
sóbrios e austeros,
óbvios
e dissonantes.
Os livros
me permitem compartilhar silêncios, dissolver urgências, contagiar os
dias com angústias bem-vindas.
Os livros
me batem me chamam de homem e me despem,
na cara,
sádicos.
Cronópio
Sou o fiel
depositário de um torrão de açúcar.
Guardei um tanto
de giz
entre as unhas (pó de palavras)
e essa lasca
de marfim do túmulo profanado dos paquidermes.
Isso basta, na trégua precária, no gargalo desse vulcão
que hiberna em estado de flor.
Polvilho
as relíquias,
pois ignoro a espessura
das trevas.
O inverno é longo,
o bastante
para que a neve
reaja a esses
rudimentos de liberdade extinta.
Haverá um tempo
de degelo,
águas e
correntezas;
de uma outra
dimensão
por detrás
dessa moldura
vazada.
Caronte aguarda o sal da terra.
Os demônios
(e os cronópios)
sempre souberam
que para o sobrevivente
a primeira qualidade
do sonho
é ser corruptível.
Celebração
Rolam seixos,
nuvens rasantes montes vazam da escuridão como uma promessa.
antecipam os passos,
Satélites tombam
do céu em pane riscos rubros ao vento, incapazes de rastrear o corpo em transe, despido de sofrimento.
(O disfarce da órbita é desviar-se do óbvio.)
Latitudes e longitudes não reconhecem
minha insignificância
desapego.
Encerraram-se as buscas e suas obtusas formalidades. Os cafés estão lotados, as ruas perversas distendidas,
os corações famintos.
Desço as encostas que permanecerão
indiferentes;
busco as cinzas contemporâneas e os cipós atlânticos.
Do horizonte
de um azul cambiante
chega a esquadra
de helicópteros
de papel
lançados do edifício antigo
trazendo meus olhos.
A serenidade possível, sem um
deus, não está ao alcance dos eus
idealizados, mas no sujeito cuspido
e escarrado, despido de
deslumbramento marcado.
Tédio
Certa profundidade se demora nos olhos fechados.
Sim, pesa
o tempo,
e cada pálpebra ressente o fulgor esquecido.
O brilho repousa cada vez mais.
- ontem -
O nada
é um cansaço que dá sono.
Vinte e cinco anos antes de morrer, Beethoven escreveu um pungente testamento. Um retrato de sua existência assinalada por sofrimentos múltiplos: o alcoolismo do pai, a tuberculose que lhe levou a mãe precocemente, a surdez que avançava sobre ele de forma implacável, aos 32 anos, e lhe roubava definitivamente a alegria da convivência com os homens, soterrando o terno sentimento que carregava dentro de si.
Charles Estarréte, na gostosa pronúncia do interior. Mas também podem chamá-lo de Durango Kid. Naqueles finais da década de 1950, os pés de fícus de Pilar – ainda hoje uma moldura vegetal para o trecho de rua entre a Cadeia e a Igreja – mostravam-se aos primeiros raios de sol com novidades atadas aos troncos: cavaletes de madeira e papelão onde Seu Zé Ribeiro, o dono do cinema, colava os cartazes do filme do dia. Fazia isso, com a invariável ajuda do menino Jiló, antes que a cidade acordasse para os cuidados dos fins de semana, entre eles a feira livre do sábado e a missa do domingo.
A Fundação Joaquim Nabuco está se associando aos 80 anos que a nossa Academia de Letras comemora, este ano, precisamente no 14 de setembro. Com esse congraçamento, desde março expresso pelo seu presidente, Antônio Campos, à professora Ângela Bezerra Castro, a data se inscreve entre os acontecimentos culturais do Nordeste. A Fundaj nos cede espaço a uma série de conferências
Autorretrato
De superfície… Jamais! Detesto coisas rasas.
Atiro facas, quebro correntes
Deságuo rios de palavras cruas, reviro os céus.
Nem os anjos me acodem em tais momentos
Minha sede pede mais que um copo d’água.
Nada me marca com um simples arranhão
Vou ao fundo do fundo.
A poesia de Augusto dos Anjos tem sido objeto de múltiplas avaliações. A riqueza imagística, a erudição inesgotável e a profundidade psicológica, entre outros atributos, fazem com que os críticos a vinculem aos mais variados sistemas e crenças. Há quem veja o poeta como ateu, místico, espírita, filósofo e até, paradoxalmente, como um seguidor do ideário positivista.
Depois da safra do caju, no rastro das primeiras chuvas do ano, nossos olhares estavam direcionados às jabuticabeiras existentes no sítio. Ao veranico de janeiro, essa fruteira logo dava resposta com saborosos frutos que recolhíamos dos galhos ao alcance das mãos. Frutos que fazem-me lembrar a cabocla Grabriela, menina de olhos amorenados, que admirava com desejo ajuizado.
Em verdade, os tons de harmonia e tranquilidade da paisagem apolínea cultivada desde a Grécia clássica, atualizados hoje, no cinema, seduzem pela sua promessa de felicidade, num paraíso celestial, a salvo dos conflitos e violências. A máscara de Apolo (deus da razão e da beleza) conquista pela sua aparência de perfeição e integridade: o apolíneo, em sua platônica frieza e distanciamento, atrai estranhamente pela sua aparência sublime e majestosa.
Quem afirma é Rosa Freire D’Aguiar, viúva de Celso Furtado, no prefácio do livro Correspondência Intelectual – 1949-2004, organizado por ela e recentemente publicado pela Companhia das Letras: “Em 1975, tendo recuperado os direitos políticos cassados por dez anos, ensaiou uma volta para o Brasil. A convite da Universidade Católica de São Paulo, lá esteve por um semestre, responsável por um curso sobre economia do desenvolvimento. Era a primeira – e seria a última – vez que lecionava numa universidade brasileira”. Veja só.
cinco poeminhas de chuva*
(*para meus sobrinhos pequeninos joão vítor e gabriel luís)
1
sem problemas
raios e trovões iluminam meu poema
2
se chove
maior o escarcéu
joao fotografa o mundo
pedro lava o céu
3
no dilúvio
nenhum sofrimento
noé só viu chuva de vento
“O futuro pertence à jovem guarda, porque a velha está ultrapassada”. A essa frase de Lênin se atribui o motivo do nome dado ao movimento musical e comportamental, liderado por Roberto Carlos, na década de sessenta. Tudo começou em 1965, com o programa de televisão que recebia esse título, realizado nos domingos à tarde no auditório da Record, em São Paulo. Era visto ao vivo pelos paulistas e assistido dias depois em vídeo tape nas demais capitais do país. Apresentado por Roberto Carlos, Erasmo Carlos e Wanderléa, o programa obteve tanto sucesso que se transformou num fenômeno nacional.
"Se nossas vidas são dominadas pela busca da felicidade, talvez poucas atividades revelem tanto a respeito da dinâmica desse anseio — com toda a sua empolgação e seus paradoxos — quanto o ato de viajar. Ainda que de maneira desarticulada, ele expressa um entendimento de como a vida poderia ser fora das limitações do trabalho e da luta pela sobrevivência. Mas raramente se considera que as viagens apresentem problemas filosóficos — ou seja, questões convidando à reflexão além do nível prático. Somos inundados por recomendações sobre os lugares para onde viajar, mas pouco ouvimos sobre como e por que deveríamos ir — embora a arte de viajar pareça evocar naturalmente uma série de questionamentos nem tão simples ou triviais, cuja análise poderia contribuir, de forma modesta, para uma compreensão daquilo que os filósofos gregos chamavam lindamente de eudaimonia, ou desabrochar humano".Alain de Botton, A Arte de Viajar
Outro dia, conversando com sobrinhos que moraram em Florença por um ano (onde fizeram pós graduação), e ouvindo-os falar de viagem e todas as facilidades de hoje, (alugar carro, blogs turísticos, GPS, Google Maps, reservas antecipadas, etc), fiquei a pensar como era viajar no século passado, antes de se ter a vida digital. E assim do nada, comecei a contar estórias pitorescas e me dei conta de que eu sou um ser em extinção, e naqueles tempos, era louca e aventureira, aliás o mundo, por se lançar nos mapas, sem mapas ou quaisquer senso de orientação, não era para qualquer um, ainda mais uma!
Lembrei de quando fui a primeira vez à Europa, em 1975, para estudar Inglês em Londres. Depois de um mês, fui viajar por Paris, Estrasburgo, Zurique, Berna, Lucerna, Roma, Florença, Barcelona e Lisboa.
Tudo isso em dois meses de voos, trens, ônibus e sonhos. Como não tínhamos roteiro pré-estabelecido (somente uma passagem aérea bem grossa em papel, travels cheques e um passaporte não válido para Cuba!), tudo era pelo mapa da intuição ou conhecimento prévio de jovens curiosos.
Não possuíamos o savoir faire de viajar, mas na precariedade da experiência, tínhamos muitas malas. Não resisti aos mercados londrinos e me enchi de túnicas indianas de espelhinhos! O companheiro de viagem, de livros de arte e pincéis e tintas e papel couché. Aprendi aí que, não se pode andar com tantas malas! Deixávamos essas benditas no aeroporto e numa malinha fazíamos as mudas para aqueles 5/6 dias nos lugares. Era inverno, então imaginem nesses tempos a aventura o que era vestir pullovers emprestados das primas, casacos que nem sempre estavam na moda, e gorros ridículos! Mas, o conforto era preciso.
Por conta dessa “operação aeroporto”, sempre chegávamos horas antes dos voos para poder trocar as mudas de roupa suja com as limpas. Sim , lavamos roupa na pia do hotel, com sabão de coco que minha mãe cuidadosamente me indicava. Uma vez, queimei um suéter lindo emprestado porque tinha colocado-o para secar no aquecedor do quarto. Cada uma! Pela falta de dinheiro, sempre escolhíamos a hora dos voos em hora de almoço ou jantar... filar a bóia era preciso. Nos voos da Panair!
Viajar era para os fortes, e a vida toda os governos dificultavam a vida. Nessa viagem mesmo, existia uma lei que nos obrigava a depositar 12.000 Cruzeiros por um ano no banco. E depois disso, com a inflação galopante, perdíamos tudo.
As quantias eram parcas e por isso em Paris, era Crepe Suzette sempre com uma taça de vinho, nada de água ou café… Numa noite extravagante – um prato de frutos do mar com os mariscos saltitantes e uma taça de vinho branco. Éramos pobres e sabíamos!
Chegávamos na cidade, íamos à estação de ônibus (porque era onde havia hotéis mais baratos), fazíamos check-in, e, depois de ter o mapa da cidade, escolhíamos os locais de visita e imaginávamos quantos dias seriam suficientes para aquele programa. Aí vinha a operação mais complicada. Fazer as contas de quanto dinheiro iríamos precisar.
Em tempos de Libra, Franco Francês, Suiço, Lira, Pesos e Escudos, tínhamos que entender de câmbio para não trocar demais nem de menos, ainda mais com as moedas – gastávamos as restantes no aeroporto, com chocolate, sempre com prejuízo daquelas que teimavam em não comprar nada e viravam souvenir nas gavetas.
O dinheiro era curtíssimo, e comíamos na maioria das vezes nas estações de trem. Lembro que, em Zurique, falávamos bóia dos ferroviários, um PF barato e bom. Só não usávamos os macacões. E quando passeávamos nas Strasses, a contemplar os Trams, a distinção de classe era gritante. Aquele povo chique de casacos de peles, e nós com nossas roupinhas caseiras e disformes. Mas o desejo de conhecer o mundo era tanto, que tudo parecia pouco diante da felicidade de jogar moedas na Fontana de Trevi, sentar nos Boulevards de Paris, ou saborear um éclair pelas ruelas medievais de Estrasburgo. Virávamos os lugares pelo avesso. Museus, praças, livrarias, Mercados das Pulgas (para enlouquecer), um crepe ali, uma taça acolá, uma sopa de cebola, uma oração na Catedral Westminster, um assobio em Roma, um beijo na ponte de Florença. Tudo me dilatava a pupila. Com ou sem moeda local!
Sem mapa, nem planejamento prévio, nos lançávamos no abismo do desconhecido. Na Suiça, subimos até Greendwald, nos Alpes, e por estar vestidos inadequadamente, ficamos cegos diante da luminosidade da neve; não tínhamos conhecimento cultural daquelas cidades e por vezes descartávamos programas importantes; fiquei boquiaberta diante de uma paisagem de inverno em Interlaken – Montanhas nevadas, lagos e pinheiros iguais aos calendários que mamãe pendurava na cozinha.
Em Berna, me senti um brinquedo de filme de Pinóquio; em Lisboa fui ao cabeleireiro e fiz um permanente; em Roma comprei um óculos para me parecer com Sophia Loren ; em Londres um casaco jeans comprido que me dava um ar grunge e alternativo. Nada de Galeria Lafayette; nada de marcas; nada de make up; nada de nada. Quando entrei na Harrod’s em Londres, senti-me amiga da Rainha! E saí por aquelas portas giratórias imaginando uma vida de princesa. Mas a minha terminava logo ali.
Na Ponte de Waterloo, eu olhava para a Torre de Londres e pensava em Ana Bolena. Minhas aulas de História do Lyceu de Tambiá! E de scone em scone eu seguia pelo mundo, sem lenço, sem documento, e sem nenhuma organização maior para me lançar nos espaços alhures e, quem sabe, intuir o tamanho desse mundo.
Entrei em muitas roubadas viajando no século passado. E também em estórias pitorescas: encontrei Paul & Linda McCartney nas calçadas de Bristol; dormi num quarto comunitário para caixeiros viajantes em Cuzco-Peru; meu ônibus engalhou numa ribanceira em Chichicastenango na Guatemala,
e entrei em pânico achando que iria cair das alturas: avistei um ciclone por essas mesmas estradas; tomei vinho Alsaciano em Colmar; peguei metrôs de madrugada em Londres para buscar cunhado (Sérgio Tavares) na estação de Vitória Station, e tive medo de encontrar Jack, o estripador; subi as colinas em Pisa-Peru, e andei de carona na boleia de caminhão junto às Cholitas e aquele francês lindo com um chapéu mais lindo ainda; passei um ano novo nos Alpes Suiços (Goretti & Alain Antille), tomando quentão com pão feito pelos esquiadores que, com suas tochas, anunciavam o ano gelado! Comi marmota, um bichinho peludo que tem pele luxuosa para casacos; dancei muito nas noites Londrinas nos clubbers dos anos 70 e tantas coisitas...; fiquei muda no Sena e diante do Arco do Triunfo; Place de Vosges! Os vitrais da Catedral de Chartres; as rezas das mesquitas em Istambul; o Mar Egeu das Ilhas Gregas e meu topless of my own em Mikonos – Zorba era eu! Com Moussaka e Tzazique na mesa e octopus grelhado; meu espanto nas águas do Bósphorus; minha loucura no Grand Bazaar e todas as granadas e véus – meu saruel de florzinhas! Meu passeio de burro pelas ladeirinhas abissais da Ilha de Ios, Santorini! E suas ruelas brancas e igrejinhas azuis; as cerâmicas eróticas que compramos no México – Puebla, Antígua, pirâmides e um certo anel de ônix e Lápis-lazúli.
A minha bagagem gigante sempre vinha abarrotada de cartões, mapas, souvenirs de tickets e outras lembranças das casas de escritores, quadros famosos, ou música flamenca! Um vidrinho de curry, um chá breakfast , uma matrioska de Praga e o desejo de voltar em tantas cidades divinas e maravilhosas. Cidades que eu não tinha mapa nem direção, somente o olhar, o sentir, o perder pelas ruelas de Veneza e avistar uma gôndola acolá. Anônima Veneziana eu era!
Hoje, quando vejo as viagens, excursões e tantos planejamentos, fico a lembrar, até com uma certa nostalgia, o acaso que era se lançar no mundo. Ficar sem notícias de casa, dos medos de que alguém morresse na minha ausência (e morreram muitos!), do olhar arregalado do meu pai vendo aquela menina que gostava dos países, das línguas e do des-conhecido para além de Goiana.
Ao término da conversa com meus sobrinhos Raphael, Bartyra e Samuel, fiquei viajando nas minhas memórias viajantes. Tantas!
A visita noturna, indesejada, inoportuna e impostora, porém, infalível. Ao penetrar a madrugada, ela desperta e bate à porta, esmurra a janela, como pedrinhas indiscretas, como pancada de chuvarada. Por esses tempos, nem é tão fria, mas arrepia a alma que pede coberta para o corpo. De mansinho retira o sono da cabeça, coloca mil coisas ao perfurar o crânio. São sonhos irrealizáveis, concretos na abstração da escuridão madrugável, exercício inútil de alterar fatos, mover corpos, montar sorrisos.
O leite era escasso. O que remiu o lactente de 87 anos atrás foi a cabra preta de seu Emídio, morador com casa um pouco acima da várzea de cana. Como todo dono de engenho, meu pai pagava mal os dias de sujeição da semana, mas com ele cada morador tinha seu hectare de subsistência. Farinha é que não faltava.
Outra: “Comida de panela não faz o gosto desse menino” – era o que eu mais ouvia. Talvez fosse a falta de gosto ou o mesmo gosto da carne que minha mãe torrava.
Meu amigo Germano, nesse pouco tempo em que nos conhecemos, constatei que temos algumas coisas em comum. Uma delas é o amor pelas viagens. Nada sei de sua relação com Roma, essa cidade que adoro, pela sua história, por ser um museu a céu aberto, por cada centímetro de seu chão estar marcado pelas decisões que mudaram a face do ocidente. Roma é caso único, na história da humanidade, de uma cidade de origem pastoral que dominou o mundo e ditou até a maneira de contarmos o tempo. Haverá tempo para falarmos dela.