Vagava pela madrugada... Conhecia bem a cidade escura, as sombras ao caminhar pelas calçadas que cruzavam na direção contrária, os olhos ac...

Pela madrugada

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Vagava pela madrugada... Conhecia bem a cidade escura, as sombras ao caminhar pelas calçadas que cruzavam na direção contrária, os olhos acesos dos carros perdidos a esmo, a busca de companhia pelas avenidas e ruas, as janelas por onde pedaços de luzes piscavam meias vidas, verdades incompletas. Vultos deitados em marquises lhe soavam naturais, faziam-lhe temer menos que corpos apressados desmascarados que andam livremente nas noites de céu claro e quente.

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Preferia a madrugada com o seu silêncio a lhe gritar conselhos e sussurrar desassossegos com voz familiar, quase uma cantiga que se perdia no final da rua. Talvez um réquiem adormecido de um compositor esquecido para uma alma comum.

A escuridão já não lhe doía os olhos como acontece no início da era noturna, quando o Sol ainda luta para ir dormir e lança, irado, tons avermelhados sobre o horizonte, e a claridade sombria dos faróis dos veículos barulhentos ainda reina por todos os lados. Sim, ele preferia os momentos de recolhimento para se perder anônimo na tentativa de se encontrar.

Era ali que tinha uma trégua de si mesmo, que recebia a si, um instante para o diálogo interior. Na antemanhã percebia detalhes que só a escureza lhe propiciava, um deleite para o coração que os olhos não lhe poderiam esconder. O pretume, que se mostrava acinzentado em noites molhadas, era de boa conversa para o seu espírito.

Na madrugada saia de casa pela vizinhança, por outros tempos e outros mundos. Abria a porta, descia as escadas do prédio, cruzava o portão e mergulhava. O retorno estava marcado para quando os primeiros claros começassem a engolir a noite. Ali era o senhor absoluto dos espaços, dos seres, dos cenários, reais ou imaginários. E tinha a companhia do riso, do choro, do abraço, do inesperado, do mau agouro, das possibilidades, dos fantasmas, do deserto urbano, do próprio eu.

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No breu de imensidão imensurável desvendava até o dia, batia papos com gente ida. Era si e tudo que não foi, talvez a antecipar o próprio futuro. E não era um jogo o encontrar a madrugada. Na verdade era descanso, relaxamento, percepções.

Escondidos sob as pálpebras os olhos fingiam quietude, enquanto giravam sem parar em rápidos movimentos em suas órbitas, alucinados pelo salto em si próprio.

Pela madrugada, ele se revelava em todos os sonhos (e pesadelos).


Clóvis Roberto é jornalista e cronista

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