Embora eu não tenha nenhuma habilidade para tocar instrumentos, a música sempre fez parte da mim. Costumo dizer que a minha vida tem trilha sonora, pois quase todos os momentos da minha existência são associados a uma canção.
A mais antiga lembrança que eu tenho é da música do cancioneiro gaúcho "Meu Boi Barroso". Era com ela que o meu irmão João Neto costumava me embalar para dormir, quando eu tinha uns três anos. Foi o começo musical da minha longa caminhada de sete décadas.
No início do curso médico, recebi de meu irmão Paulo Fernando um presente que me marcou para o resto da vida: uma coleção de discos que incluía de clássicos a músicas latinas, passando por canções populares americanas e brasileiras. Paulo me chamou a atenção para uma música que eu não conhecia, e que era uma de suas prediletas: "Bolero", de Maurice Ravel, a qual me hipnotiza até os dias atuais.
Costumo escutar as músicas tentando analisá-las minuciosamente, como se estivesse realizando uma autópsia: identificando os instrumentos.
Em primeiro lugar, procuro logo os sons graves, que são os que mais me atraem: violoncelo, contrabaixo, viola trompas e tuba. Depois tento identificar os outros instrumentos: as cordas, os de sopro, as madeiras. Finalmente, a atenção se volta aos instrumentos de percussão, que geralmente dão o ritmo à música.
Paralelo a isso tudo, fico atento à letra e às vozes: a poesia envolvida, a história contada, a mensagem transmitida. Ou o vazio disso tudo. João Donato, para exemplificar, compôs músicas belíssimas, porém sem histórias, que foram letradas muito depois. E as letras das músicas de Rita Lee, salvo honrosas exceções, têm a consistência de um suspiro doce. São muito bonitas de se ouvir.
Voltando ao Bolero, procurei ler para conhecer como foi criada e como é executada. Quais são os instrumentos envolvidos e que despertam tanto a minha imaginação. Certo dia, deparei-me com o blog Euterpe, uma verdadeira preciosidade para quem quer aprender como ouvir músicas clássicas e suas respectivas histórias.
Ali, fiquei sabendo que a canção foi composta sob encomenda de Ida Rubinstein, a dançarina clássica, para ser um balé com forte inspiração espanhola.
Relembrando Maurice Bejart, que a desempenhou no alto da Torre Eiffel no filme Retratos da Vida (Les Uns et Les Autres), pareceu-me que os seus acordes provocam uma dança inevitavelmente sensual, senão erótica. Dizem os historiadores que, realmente, o "Bolero" causou escândalo à época do lançamento, na década de 1920, provocando reação desagradável da crítica e da sociedade.
Eu não considero assim; ou melhor: não é assim que eu a escuto. Imagino o Bolero como o desfile apoteótico de um exército vitorioso retornando dos campos de batalha e se apresentando diante do rei. Sempre que a ouço solto a imaginação.
E me vejo dentro de uma cidadela antiga, à frente de um palanque elevado, onde está o rei à espera de seu exército glorioso. Em torno de mim, o maior frisson causado nos súditos, que esperam ansiosamente pelo desfile anunciado.
A aproximação do cortejo é materializada através da música, a princípio distante, a princípio distante, mas num ritmo firme e progressivo. Esta sensação de movimento de aproximação é proporcionada pelo crescendo da melodia do Bolero.
A música se comporta como um vórtice, uma espiral, que dá voltas cada vez mais fechadas. A cada volta se adiciona um novo instrumento. E nós estamos no meio desse vórtice.
A obra sinfônica começa com o toque da caixa, que marca o ritmo da música e chama a atenção de todos os presentes para silenciarem. Porém é a flauta que dá início ao desfile,
tocando baixinho, como se fosse ouvida bem distante do palanque onde estão o rei e os nobres.
Em seguida, a música dá outra volta e o corte vem chegando ainda mais perto, ao som de um clarinete mais baixo, em si bemol (segundo os estudiosos). No palanque, o clima é de excitação.
A música, então, aumenta com a adição do clarinete em agudo e do oboé d'amore. Na sequência, entram, de mãos dadas, o trompete com surdina e outra flauta.
O exato momento da passagem do desfile sob o arco triunfal é marcado pelo trio formado pelo saxofone tenor, e os saxofones sopranino e soprano.
Mais uma vez a música aumenta, o desfile avança e a turba ensaia um delírio, ao ouvir a trompa acompanhada de dois flautins e da celesta (espécie de pianola), que tocam simultaneamente todas as notas iguais, variando as oitavas uma sobre a outra!
A esta altura, o cortejo passa diante do palanque real. Todos os nobres já estão embriagados. Lá embaixo, do outro lado da rua, me encontro eu, enebriado com a música.
E a música continua a dar suas piruetas e adicionar instrumentos. Desta vez, o oboé retorna, acompanhado do oboé d'amore, do corne inglês e de dois clarinetes, causando estrondos na frente do palanque, como se quisesse exibir-se à Sua Majestade. E a multidão alucinada!
Então, todos os instrumentos se juntam: violinos, violas, violoncelos, bumbos, caixas, pratos, címbalos, sininhos. Todos explodem numa epifania apoteótica que lembram elefantes trombeteando ao máximo em frente ao palanque! É quando acaba o desfile e eu retorno à realidade.
Não tenho a erudição de um Germano Romero, nem a profundidade de pesquisa de Sérgio Rolim ou Flávio Ramalho de Brito. Mas, por ser uma das minhas grandes paixões, eu tento entender e ir profundo nas músicas que escuto.
É assim que eu sinto o Bolero de Ravel.
José Mário Espínola é médico e escritor