À enorme deferência com que foi recebido por todos, responderia com aquele distanciamento, a princípio, tímido e quase confuso, mas...

O Engenheiro

conto literatura paraibana alberto lacet
À enorme deferência com que foi recebido por todos, responderia com aquele distanciamento, a princípio, tímido e quase confuso, mas que tão logo se transformaria em mal disfarçado aborrecimento assim que pôde dar os primeiros andamentos à obra.

Essa aparente falta de trato, de origem, quem sabe num distúrbio qualquer, evoluiria em restrições, mais tarde – à medida que fez de sua casa o próprio escritório, e também almoxarifado de peças pequenas (onde desobrigados da obra não poriam os pés) –, para um sistema de relações com semelhantes, que, mesmo ali, tão próximos – e alvos primícios da suposta benfeitoria –, acabou ficando estabelecido que fosse de ordem tão indisponível quanto seria – para qualquer de todos – tentar exercer algum tipo de influência sobre a órbita regente do planeta que nos hospeda.

Picasso
Uma logística banal, a de partir ao término das jornadas semanais, o pôs a salvo de degustar um relicário de quitutes à que seria apresentado em anacrônicos saraus vespertinos, que geralmente aconteciam entrar pela noite, sob luz de lampião, e para os quais seria seguramente requisitado – ocasiões inúmeras, essas, e lamentavelmente perdidas, pois nelas a avareza de sentimentos e a insipidez pessoal que, já então lhe faziam fama deixou de pôr-se à prova diante da inevitável simpatia de uma gregária geração de senhoritas encalhadas, que, forçosamente, seria de então aquela mais antiga, restrita aos amores da idade, militante das horas mais propícias, guardiã sem outra escolha da poesia apócrifa e edificante, memória compulsória do ocaso das linhagens, sujeita sempre aos caprichos de uma velha e rogada sorte, mas nem por isto ou aquilo menos meritória.

Livrou-o, também, de domingueiras galinhas na cabidela, de bejus e doces de sangue suíno tratados na pimenta, de borbulhantes caldeirões onde acessórios – também suínos – disputavam espaço ao feijão e ao milho numa delícia de ingredientes que se corrompiam entre si.

Picasso
E de outras mais variedades daquela quase sempre agridoce e bárbara culinária de vestígios, cujo acentuado tempero provinha não especialmente dos virulentos cominho e pimenta, mas talvez, e em maior porção, dos apetites que foram sendo apaziguados ao longo das transformações porque haviam de passar receitas e paladares, num tempo que, a se compreender ia das primeiras e excepcionais reservas de gêneros – num intervalo qualquer do sempre renovado ciclo das carestias, com seus excedentes de ocasião a arder sob choças toscas, para suprema pachorra e alimento inigualável de aspirações talvez bestiais –, até o preparo atual, consagrado, capaz de deixar na boca o sabor consumado de um impenitente resquício, que fosse talvez o das abolidas culpas sociais.

Pois para tais, e tantas, seria confiscado.

Não que tivesse alguma coisa contra pratos saborosos, mas porque ali tinha chegado com um objetivo apenas: entregar num tempo que representava desafio considerável aquela obra que haveria de ser moderna e, a depender dele, perfeita. O governador a exigira, em tempo exíguo para cumprir promessa de campanha, e é disso que se aproveita a construtora para fechar um bom negócio. É também assim que lhe cai sobre os ombros a responsabilidade de tocar uma obra decisiva para o futuro da empresa, e Eleutério sabe que mais que o futuro dela, é o próprio que está em jogo.

Picasso
Incapaz de se meter com outra coisa que não fosse sua vida, de acreditar e até mesmo dar importância ao que não fosse executar corretamente cálculos que, por si teriam nascido perfeitos, era absolutamente impossível que durante o pouco mais de três anos que duraram os trabalhos de eletrificação da cidade, não se tivesse ali um obcecado.

Portanto tinha chegado com um objetivo apenas, e esse o predispunha contra tudo que não fosse – naquele amontoado de casas, algumas inverossímeis, construídas em aflição topográfica sobre um abalroado de ruas que, à primeira vista não formava sentido inteligível (a não ser em dias de aguaceiro, quando ficava claro que o roteiro das águas se tinha feito respeitar, e era responsável pelo traçado serpeado das ruas), exceto três ou quatro delas, interligadas, a fornecer um traçado rascante e aparentemente propositado, como se brotado de uma reforma urbana posterior, sem, contudo passar de mera versão presente, agora desenvolvida, da primitiva junção de clareiras e arruados que deu origem ao povoado. Como acontece com um broto de árvore cuja raiz haverá de sustentar um tronco, o desígnio natural se confirmou, para conforto e despacho de viajantes que através dele, e sem maiores embaraços, podiam sair daquela cidade uma vez tendo entrado nela – a sua obra, ou com ela não tivesse relação de causa e efeito, um destino íntimo, traçado numa prancheta e com data certa para se cumprir.

Meticuloso, virginiano, obcecado por detalhes, o engenheiro Eleutério Gomides (talvez de um modo parecido com seus colegas arquitetos, que sempre se julgam construtores de cidades, e nunca o contrário) não perceberia jamais naqueles anos que seriam por ele lembrados como de muita chuva e não menos esforço que havia, embora mínima, uma cidade onde o mais simples de seus habitantes preencheria qualquer um daqueles seus exigentes pré-requisitos.

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