A umidade me é familiar; ela me envolve como um útero materno — penso, enquanto contemplo o sol nascer no deserto de Nevada. Ardem as p...

No deserto

deserto nevada arizona cronica viagem
A umidade me é familiar; ela me envolve como um útero materno — penso, enquanto contemplo o sol nascer no deserto de Nevada. Ardem as pedras do solo áspero e bruto, com minúsculas sombras a se projetarem na planície desenhada em ocre, bege, marrom e amarelo-claro. Estranha é a aridez, exótica sensação que me toca a pele. Ela se aproxima de mim desidratando, ressecando e me pedindo para compreendê-la em meu corpo. O deserto me convida a desvendar os seus e os meus mistérios; a pensar nele como um receptáculo de vida que se esgueira, subterrânea, sob a areia quente e em mim como um ser capaz de buscar alturas e testar a borda dos abismos.

Os carros passam em alta velocidade em direção a Las Vegas. Acabei de deixar a cidade. Um templo dos prazeres, milagre kitsch e negócio bilionário plantado em meio ao deserto. Quem olharia para a paisagem estéril e projetaria um local para satisfazer desejos?
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Sonia Zaghetto
A cidade surge, de repente, em meio à longa estrada: miragem destinada a intoxicar os sentidos com o sabor único de paixões múltiplas, selvagens umas, doces outras _ mas sempre paixões. O turbilhão de ruídos, festas, luzes e promessas de sonhos me exauriu. Sinto-me como quem viveu mil anos, testemunhando folias incessantes, ouvindo gargalhadas, cochichos e suspiros, assistindo passar as caras de desconhecidos que dançam, gritam de satisfação, se embriagam e se contam histórias com a densidade de bolhas de sabão.

Agora, há o deserto, o sol e um silêncio desumano, quebrado pelo passar incessante dos carros no longe da estrada. Nenhum vento, nenhuma nuvem, nenhuma umidade.

Venha, aridez, alimente-se de mim enquanto me mostra as suas belezas. Fora do alcance dos meus olhos estão pequenas serpentes, escorpiões, roedores. Talvez cabras e mulas. No horizonte vejo cactos e outras magras plantas. Tudo aponta para a existência de vida na paisagem monótona. O deserto é como os humanos: requer atenção para se conseguir enxergar a sua real natureza. Uma vez vista, jamais se esquece. Resta escolher se se deve viver na aridez ou retornar à umidade.

Imagino como seria atravessar aquela imensidão, percebendo aos poucos o evaporar da vida líquida que habita em mim. Mas não é o que espero do deserto. Eu o vejo como um lugar de desafios para a alma. Desde a Antiguidade, desertos são o lugar ideal para encontrar a si mesmo, confrontar os próprios demônios e desvelar a face profunda que se traz aferrolhada no corpo e a ninguém se gosta de revelar. Na solitude, a tal face expõe seus dentes pontudos e se pode dialogar com ela, com a franqueza necessária. É um lugar para guerrear pela sobrevivência. Esfinge de pó e pedras desafiando a decifrá-la ou ser triturado.

Despeço-me do deserto recitando os dez versos do imortal poema de um americano, Stephen Crane, sobre a criatura nua que, em meio à paisagem áspera, devora o próprio coração. "É amargo, amargo. Mas eu gosto, porque é amargo e porque é o meu coração".

O vazio aparente me causa um leve temor. O corpo se sente vulnerável, desprotegido. Já o espírito se enche de coragem. Há algo mais dolorosamente poético do que descobrir a própria força em meio a um ambiente hostil? É como rir de alívio quando se acabou de chorar.

No deserto
Stephen Crane No deserto Vi uma criatura nua, bestial Que, agachada no chão, Segurava seu coração entre as mãos e o comia. Eu disse, "É bom, amigo?" "Ë amargo - amargo", respondeu ele. "Mas eu gosto. Porque é amargo, E porque é o meu coração".
In the Desert
Stephen Crane In the desert I saw a creature, naked, bestial Who, squatting upon the ground, Held his heart in his hands, And ate of it. I said, "Is it good, friend?" "It is bitter - bitter", he answered; "But I like it Because it is bitter, And because it is my heart".
Tradução: Sonia Zaghetto

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