Há livros que são para consultar, há livros que são para ler, há livros que são para reler, há livros que devem ser lidos com frequênci...

Os sertões, um livro didático (Parte I)

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Há livros que são para consultar, há livros que são para ler, há livros que são para reler, há livros que devem ser lidos com frequência, constantemente, permanentemente. Os sertões fazem parte desta última classificação.

Em geral, quando falamos de Os sertões, fazemos duas afirmações que repercutem como uma bomba, no espírito do leitor que se aventura em sua primeira leitura, ou no daquele que já o leu, sem o devido envolvimento: (1) Os sertões é um livro didático; (2) A parte mais literária, profundamente literária, é “A Terra”. Pode até parecer que não é, porque já se convencionou que se trata de um livro difícil e chato, mas é didático e de acentuado estilo literário, ainda que não seja um livro de literatura.
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Euclides da Cunha ▪ 1866—1909
Euclides da Cunha, é certo, não faz concessões, no que diz respeito ao seu estilo e ao seu vocabulário, ambos eruditos, mas pega na mão do leitor e o conduz pelos meandros do seu livro, tecendo uma narrativa, em que o encadeamento dos temas é percebido por todos quantos se dediquem a uma leitura paciente e meticulosa.

Não deixam de ter razão os que o consideram um livro difícil. A dificuldade, porém, será superada com a leitura frequente e atenta, buscando compreender a sua estrutura, e com o leitor não se deixando intimidar pelo léxico ou pelo volume do livro. “A Luta”, terceira parte do livro, é a que mais demandaria tempo de leitura, por ser a mais longa. “A Terra” é a mais curta. A leitura, contudo, daquela se faz mais rápido do que a leitura desta, tendo em vista a maneira técnica e científica com que Euclides da Cunha faz o estudo do ambiente em que se dará a guerra de Canudos, exigindo dedicação do leitor. É de “A Terra”, que trataremos.

De modo a ajudar os neófitos e até alguns iniciados, propomos, inicialmente, uma síntese dos cinco capítulos que integram a primeira parte de Os sertões (todas as citações são da edição crítica de Walnice Nogueira Galvão, São Paulo: Ubu Editora/Edições Sesc São Paulo, 2ª edição, 2019):

Capítulo I (p. 13-32) ▪ Apresentação geral do relevo sul-americano e brasileiro, guiando o leitor até a chegada ao sertão, numa primeira apresentação do clima inóspito, constituído por verdadeiros “‘mares de pedra’
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tão característicos dos lugares onde imperam os regimes excessivos” (p. 28).

Capítulo II (p. 33-36) ▪ Apresentação da conformação hidrográfica e orográfica, levando o leitor até Canudos, acompanhando do alto da Favela as contorções do Vaza-Barris, em uma de cujas voltas, vê-se a depressão onde se atulha e se enche “toda de confusos tetos incontáveis, um acervo enorme de casebres...” (p. 36).

Capítulo III (p. 37-43) ▪ Apresentação do clima e dos seus “higrômetros inesperados e bizarros”, por conta da “secura extrema dos ares” (p. 42), jogando o leitor no cenário da guerra com a tocante visão do soldado mumificado, morto havia três meses.

Capítulo IV (p. 44-58) ▪ Apresentação do contraste entre “estios flamívomos e invernos torrenciais”, estes o “verde”; aqueles a “magrém” (p. 57), em que o sertão dos “desertos recrestados” (p. 48) ressurge como “um paraíso” (p. 58): “a revivescência geral” da flora (p. 56) entra em congraçamento com a “fauna resistente das caatingas”, que ressurge em estrídulos e estridências (p. 58).

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Mapa ilustrativo de Os Sertões, edição de ... ▪ Fonte: Biblioteca Nacional
Capítulo V (p. 59-69) ▪ Conclusão com a apresentação de soluções para a desertificação operada pelo homem, como uma forma de evitar novas tragédias, resultantes da miséria, geradora da ignorância e da violência: “A natureza compraz-se em um jogo de antíteses”, saindo de situações “barbaramente estéreis” para outras “maravilhosamente exuberantes” (p. 60), respondendo às torturas a ela impingidas.

O método didático de Euclides da Cunha não se exaure no encadeamento interno dos capítulos de cada parte, como pudemos ver na breve síntese que fizemos acima. Ele se aplica, sobretudo, às partes entre si, com cada uma preparando a seguinte. É assim que “A Terra” prepara “O Homem” e esta prepara “A Luta”, de modo que possamos perceber como as duas primeiras serão integradas à terceira. Por outro lado, Euclides adota a estratégia didática de diálogo com o leitor, exortando, explicando, acompanhando-o na viagem
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Canudos, em ilustração de Poty Lazzarotto para Os Sertões, editado em 1956, pela Sociedade dos Cem Bibliófilos do Brasil.
e até esclarecendo a natureza do seu texto — “Atravessemo-la (p. 21); “Resumamos; enfeixemos estas linhas esparsas” (p. 59), “Esboçamos anteriormente algumas” (p. 62)...

Como exemplo da concatenação entre as partes, tomemos a descrição da cinta das montanhas, em torno do arraial de Canudos (Capítulo II, p. 35-6):

“O arraial, adiante e embaixo, erigia-se no mesmo solo perturbado. Mas vistos daquele ponto, de permeio a distância suavizando-lhes as encostas e aplainando-os — todos os serrotes breves e inúmeros, projetando-se em plano inferior e estendendo-se, uniformes, pelos quadrantes, davam-lhe a ilusão de uma planície ondulante e grande.

Em roda uma elipse majestosa de montanhas...

A Canabrava, a nordeste, de perfil abaulado e simples; a do Poço de Cima, próxima, mais íngreme e alta; a de Cocorobó, no levante, ondulando em seladas, dispersa em esporões; as vertentes retilíneas do Calumbi ao sul; as grimpas do Cambaio, no correr para o poente; e, para o norte, os contornos agitados do Caipã — ligam-se e articulam-se no infletir gradual traçando, fechada, a curva desmedida.

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Lazzarotto, 1956
Vendo ao longe, quase de nível, trancando-lhe o horizonte, aquelas grimpas altaneiras, o observador tinha a impressão alentadora de se achar sobre platô elevadíssimo, páramo incomparável repousando sobre as serras.

Na planície rugada, embaixo, mal se lobrigavam os pequenos cursos d’água, divagando, serpeantes...

Um único se distinguia, o Vaza-Barris. Atravessava-a, torcendo-se em meandros. Presa numa dessas voltas via-se uma depressão maior, circundada de colinas... E atulhando-a, enchendo-a toda de confusos tetos incontáveis, um acervo enorme de casebres...”

Essa descrição será retomada no Capítulo V de “O Homem”, com Euclides da Cunha promovendo, agora, mais do que uma visão puramente geográfica, um alargamento semântico, de modo a proporcionar ao leitor uma interpretação mística dos caminhos por onde os fiéis chegavam até Canudos (p. 176):

“Canudos, assim circunvalado quase todo pelo Vaza-Barris, embatia ao sul contra as vertentes da Favela e dominado pelas lombas mais altas de flancos em escarpa em que se comprimia aquele nas enchentes, desatava-se para o levante segundo o expandir dos plainos ondulados. As montanhas longínquas fechavam-se em roda, formando, quase contínua, uma elipse de eixos dilatados.
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Lazzarotto, 1956
Feito postigos em baluarte desmedido, abriam-se, estreitas, as gargantas em que passavam os caminhos: o do Uauá, estrangulando entre os pendores fortes do Caipã; o de Jeremoabo, insinuando-se nos desfiladeiros de Cocorobó; o do Cambaio, em aclives, investindo com as vertentes do Calumbi; e o do Rosário.

Ora, por estas veredas, prendendo, no se ligarem a outras trilhas, o povoado nascente ao fundo dos sertões do Piauí, Ceará, Pernambuco e Sergipe — chegavam sucessivas caravanas de fiéis. Vinham de todos os pontos, carregando os haveres todos; e, transpostas as últimas voltas do caminho, quando divisavam o campanário humilde da antiga capela, caíam genuflexos sobre o chão aspérrimo. Estava atingido o termo da romagem. Estavam salvos da pavorosa hecatombe, que vaticinavam as profecias do evangelizador. Pisavam, afinal, a terra da promissão — Canaã sagrada, que o Bom Jesus isolara do resto do mundo por uma cintura de serras...”

É o que se vê, também, no Capítulo V de “O Homem”, quando se tem a dimensão do que representa a cinta de montanhas em torno de Canudos, “a Troia de taipa dos jagunços” (p. 172):

“Era o lugar sagrado, cingido de montanhas, onde não penetraria a ação do governo maldito.”
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Lazzarotto, 1956
A referência a Canudos como “Troia de taipa dos jagunços”, duas vezes em “O Homem” (Capítulo II, p. 105, e Capítulo V, p. 172), é interessante, na medida em que Euclides da Cunha inverte a proposição das cidadelas (arx, em latim), situadas sempre no alto, que permite visualizar o inimigo antes de sua chegada e, assim, proteger a cidade. Canudos, definida como a “arx monstruosa” (“O Homem”, Capítulo V, p. 184), localiza-se em uma depressão, protegida, porém, pelas montanhas e pelo acesso difícil entre as suas vertentes, como veremos na descrição que repercutirá na segunda parte de “A Luta”, intitulada Travessia do Cambaio. É nesse momento em que se dá, na visão de Euclides da Cunha, a “primeira expedição regular contra Canudos”, bem armada e chefiada pelo major Febrônio de Brito, mas fadada ao fracasso, como a investida anterior, em Uauá, chefiada pelo tenente Pires Ferreira (“O Homem”, Capítulo II, p. 213-222).

A travessia do Cambaio é uma alusão à já citada montanha, cujas grimpas correm para o poente, revelando a proteção natural de Canudos, parte importante na composição das dificuldades que as forças expedicionárias
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Lazzarotto, 1956
encontraram para vencer os jagunços, devido às adversidades da geografia sertaneja e a um inimigo que mal se percebe, pela capacidade de mimetizar-se com o meio, seu protetor, conforme se vê no Capítulo III (p. 251):

“A Serra do Cambaio é um desses monumentos rudes.

Certo ninguém lhe pode enxergar geométricas linhas de cortinas ou parapeitos bojando em redentes circuitados de fossos. Eram piores aqueles redutos bárbaros. Erigiam-se à têmpera dos que os guarneciam. E a distância, indistintos os ressaltos das pedras e desfeitos os vincos das quebradas, o conjunto da serra incute, de fato, no observador, a impressão de topar, de súbito, fraldejando-a, subindo por elas em patamares sucessivos e estendidas pelas vertentes, as barbacãs de velhíssimos castelos, onde houvessem embatido, outrora, assaltos sobre assaltos que os desmantelaram e aluíram, reduzindo-os a montões de silhares em desordem, mal aglomerados em enormes hemiciclos, sucedendo-se em renques de plintos, e torres, e pilastras truncadas, avultando mais ao longe no aspecto pinturesco de grandes colunatas derruídas...

Porque o Cambaio é uma montanha em ruínas. Surge, disforme, rachando sob o periódico embate de tormentas súbitas e insolações intensas, disjungida e estalada — num desmoronamento secular e lento.

A estrada para Canudos não a torneja. Ajusta-se-lhe, retilínea, às ilhargas, subindo em declive, constrangida entre escarpas, mergulhando por fim, feito um túnel, na angustura de um desfiladeiro.
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Lazzarotto, 1956
A tropa por ali enfiou...

Naquela hora matinal a montanha deslumbrava. Batendo nas arestas das lajens em pedaços os raios do Sol refrangiam em vibrações intensas alastrando-se pelas assomadas, e dando a ilusão de movimentos febris, fulgores vivos de armas cintilantes, como se em rápidas manobras forças numerosas ao longe se apercebessem para o combate. Os binóculos, entretanto, percorriam inutilmente as encostas desertas. O inimigo traía-se apenas na feição ameaçadora da terra. Encantoara-se. Rentes com o chão, rebatidos nas dobras do terreno, entaliscados nas crastas — esparsos, imóveis, expectantes — dedos presos aos gatilhos dos clavinotes, os sertanejos quedavam, em silêncio, tenteando as pontarias, olhos fitos nas colunas ainda distantes, embaixo, marchando após os exploradores que esquadrinhavam cautelosamente as cercanias.

Caminhavam vagarosamente. Atulhavam as primeiras ladeiras cortadas a meia encosta. Seguiam devagar, sem aprumo, emperradas pelos canhões onde se revezavam soldados ofegantes em auxílio aos muares impotentes à tração vingando aqueles declives.

E foi nesta situação que as surpresou o inimigo.

Dentre as frinchas, dentre os esconderijos, dentre as moitas esparsas, aprumados no alto dos muramentos rudes, ou em despenhos ao viés das vertentes — apareceram os jagunços, num repentino deflagrar de tiros.

Toda a expedição caiu, de ponta a ponta, debaixo das trincheiras do Cambaio.”

Ajunte-se a maneira mística como Euclides da Cunha descreve Estêvão, “o guarda do Cambaio” – “negro reforçado, disforme, corpo tatuado a bala e a faca, que lograra vingar centenas de conflitos graças à disvulnerabilidade rara” (“O Homem”, Capítulo V, p. 188) – e teremos a visão mais ampla da estruturação das partes, em que nada está isolado ou é excrescente.

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Lazzarotto, 1956
A nossa intenção é, em um próximo texto, destrinçar cada um dos cinco capítulos de “A Terra”, de modo a orientar melhor o leitor iniciante de Os sertões, mostrando-lhe, inclusive, a sua construção literária. Adiantamos, contudo, que na leitura dessa primeira parte da obra de Euclides da Cunha, há trechos memoráveis, por onde um professor poderia iniciar o processo de cativação do leitor. Vamos a eles:

1
O trecho inicial, em três parágrafos (Capítulo I, p. 17), que nos mostra a movimentação da terra e como Euclides da Cunha entende esse dinamismo, transformando o habitual estatismo da descrição;

2
A cinta de montanhas (Capítulo II, p. 35-36), num traçado elíptico, ao redor de Canudos, numa primeira apresentação do arraial, colocando o leitor com um ponto de vista que parte de cima do morro da Favela – “Em roda uma elipse majestosa de montanhas...” (idem, p. 35);

3
O soldado mumificado, retomando o famoso soneto do poeta francês Arthur Rimbaud, “Le Dormeur du Val”, um dos higrômetros inesperados e bizarros (Capítulo III, p. 42);

4
A gota de chuva que, na invernada, se transforma em tromba d’água, na metamorfose do sertão adusto, em terra fértil e abundante, e que, paradoxalmente, faz parte de um processo que favorece a degradação do solo (Capítulo IV, p. 48);

5
A floração ridente e virente, como contraposição aos ares urentes e ao solo exsicado. O sertão, organismo vivo, ganha cor, cheiro, movimento e som, torna-se algo mais do que a estorcida flora espinescente da seca, fazendo-se folhas agradáveis ao tato. O sertão atinge todos os sentidos de seus habitantes ou de quem o visita, na descrição magistral do cajueiro (Capítulo IV, p. 50-51).

6
A ode ao umbuzeiro, árvore sagrada do sertão (Capítulo IV, p. 56-7);

7
A garrulice álacre das aves, no reviver da natureza sertaneja, após as chuvas; no renascimento do sertão como um paraíso (Capítulo IV, p. 58).

8
“O mar interior” como solução aos “mares de pedra”, em que o mais importante não é a atenuação da sede, mas a debelação do deserto (Capítulo V, p. 69).



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  1. Apurado o texto, em verdade vosmincê é um febrento!
    Vitorioso em excelente uso de nosso vernáculo, em contraponto ao Febrônio, derrotado e infeliz com suas balas perdidas.

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