Uma justiça injusta que, antes de dar início aos ritos processuais, já decidiu pela condenação, não importando a argumentação da defesa, ignorando provas e engrolando uma sentença com juridiquês e latinório suficientes, para confundir e embair o público, tendo em um dos seus maiores representantes alguém que se expressa sempre com voz macia e educada, encobrindo a malignidade que o habita.
Ministros, políticos e demais acólitos que nunca estão satisfeitos com o que conseguem abocanhar, querendo sempre mais e mais, nas suas investidas solertes e cínicas contra o poder constituído. Uma malandragem e uma bandidagem organizadas se pondo na rua e desafiando abertamente um poder que não pode, por ser reconhecidamente fraco, leniente, complacente e corrupto.
Uma cobrança desmedida de impostos, sufocando o povo já em estado desesperador, cujo dinheiro será revertido em gastança com as inutilidades que parecem úteis, mas só parecem, pois não há investimentos estruturais no Estado.
Amigos leitores, eu vos peço calma. Não penseis mal deste escriba que vos fala. Não façais ilações erradas e não tireis conclusões apressadas e errôneas. O que escrevo, à maneira de um prólogo são referências ao romance Notre-Dame de Paris (Oeuvres complètes, Roman I, Paris, Robert Laffont, 2002), de Victor Hugo, mais especificamente, ao Livro X, Capítulo 5, Le retrait où dit ses heures Monsieur Louis de France.
Vamos aos fatos.
A cigana Esmeralda é acusada da morte do capitão Phoebus de Châteaupers, que fora apunhalado pelo arquidiácono D. Claude Frollo, o vigário de Notre-Dame, e sobrevivera ao ataque. O fato de o capitão dos arqueiros do rei ter sobrevivido à
Quem conduz o processo é o mestre inquisidor, Jacques Charmolue, cônscio e convicto de que está não só fazendo justiça, mas fazendo um bem àquela alma perdida pelo diabo, no caso Esmeralda. Charmolue jamais abandona o sorriso muito bondoso (un sourire très-doux, Livro VIII, Cap. 2, p. 718), a voz afável (la voix caressante, p. 719) e a imperturbável benignidade (imperturbable bénignité, p. 720), ainda que acompanhado de Pierrat Torterue, o torturador.
MS'Art
O resultado do julgamento não é outro, senão a sentença proferida em bassa latinitas (p. 722), como diz o poeta Pierre Gringoire presente ao tribunal, de morte por enforcamento. Não bastam à condenada a humilhação e a morte.
Uma importante parte do cenário da justiça injusta é o perfil que Victor Hugo compõe de Luís XI, rei de França, com que ele abre o capítulo V do Livro X – Le retrait où dit ses heures Monsieur Louis de France (O retiro em que o Senhor Luís de França diz suas horas, p. 803-825).
Luís XI, em pintura de Jacob de Littemont, 1460s ▪ Domínio público
“Je ne vois autour de moi que gens qui s’engraissent de ma maigreur! Vous me sucez des écus par tous les pores!”
"Eu não vejo ao meu redor senão pessoas que engordam com a minha magrém! Vocês me sugam dinheiro por todos os poros!"
Dentre os gastos elencados, com roupas, paramentos e outras futilidades, chama mais ainda a atenção do rei a reforma de uma cela, movendo-o a ir pessoalmente inspecioná-la. A sua conclusão é de que houve gastos além do necessário, um superfaturamento, digamos na linguagem de hoje, e ele ordena ao seu secretário de refazer os cálculos: diante da visão chinfrim, Luís XI constata que o que ali se gastou foi equivalente a “enterrar milhares para desenterrar um centavo” (Enterrer un écu pour déterrer un sou!, p. 807). A cela é, em todos os sentidos, um ultraje.
Mas não fica por aí. As ameaças veladas dos ministros e as intrigas entre eles, para ver quem mais tem ascendência sobre o rei, obrigam-no a compactuar com o orçamento e a distribuir honrarias e cargos,
Trezentos anos depois da cena em questão, a Bastilha desabará. As razões por que isso acontecerá estão nessa visita de Luís XI e na constatação de que o reino se esvai em gastanças, compadrios e ambições pessoais. Do fundo de uma das celas, um prisioneiro, frágil, doente, encurvado pela idade, de voz quase inaudível e, ele mesmo, quase imperceptível, insta a clemência do rei... Diante de um prisioneiro sem dentes, à beira da sepultura (“nous sommes déjà tout prêt pour la porte du sépulcre”, p. 809), e do tanto que se dispensou na construção de uma sórdida cela, o rei só tem a constatar que se gastou um monte de ferro para aprisionar um tão leve espírito – Voilà bien du fer, dit le roi, pour contenir la légèreté d’un esprit! (p. 809). É o prenúncio da queda. Victor Hugo sabia. Ela passaria por isto, 20 anos depois da publicação de Notre-Dame de Paris (1832), entre 1852 e 1870, com a arbitrária ascensão de Napoleão III ao poder.
Napoleão III, em caricatura de Charles Frondat, 1870 ▪ Domínio Público