Então, acorda. Pelas três da madrugada. E o que vem, como uma imensa onda de alegria e alívio: era apenas um pesadelo em forma de sonho, ou sonho em forma de pesadelo, que, felizmente, acabou. E, de novo, recrimina-se como pode ter tido um sonho assim. Retomar a dormir trazia o risco de voltar. Se era intensa a sua dor, também era imenso o seu alívio. Ele era normal, afinal.
Pensa naquele instante como a vida parece ser feita da mesma matéria dos sonhos, e que, afinal, como vociferava Macbeth, que o ser é apenas um ator num palco, representando uma história cheia de fúria e som, contada por um idiota.
RANT 73
O que restava era levantar, então. Levantar e prosseguir. A solidão, afinal, tinha lá suas vantagens. Foi o que exatamente pensou, porque, naquele exato momento, percebeu como seu pensar era na verdade estar falando alto sozinho. Aliás, um dos prazeres de estar perfeitamente só era falar sozinho. Dar voz aos pensamentos. Não haveria ninguém com quem se preocupar, ou para imaginar que falar sozinho poderia ser um ato de loucura. E, por consequência, pode até comemorar feito um rei, como se o mundo existisse apenas porque ele existia.
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* Excerto do livro de Hélder Moura, 'A insana lucidez do ser', publicado recentemente (Editora Ideia), disponível na 👉🏽 Livraria do Luiz.
"Em certa passagem o autor se pergunta como os sonhos, sendo realizações do desejo, tomam a forma de pesadelos. Seu texto responde bem a isso, pois a nossa mente não é composta apenas pelo libertador e gratificante id; há nela também o superego, que nos sonhos projeta as suas garras. O pesadelo, como observa Freud, satisfaz o desejo dessa inclemente instância censora. (Chico Viana)"
"Em certa passagem o autor se pergunta como os sonhos, sendo realizações do desejo, tomam a forma de pesadelos. Seu texto responde bem a isso, pois a nossa mente não é composta apenas pelo libertador e gratificante id; há nela também o superego, que nos sonhos projeta as suas garras. O pesadelo, como observa Freud, satisfaz o desejo dessa inclemente instância censora. (Chico Viana)"