Disseram que minha mãe morreu. Tolos – não conheceram minha mãe. Não sabem de seus poderes e mistérios. Se a tivessem conhecido, saberiam que agora vive em outro país, lugar de sonhos que ela passou a vida inteira construindo e para onde me leva sempre que sinto saudades. Sem alarde, infiltrou esse lugar em todos os meus sentidos. Tomou-os, preenchendo-os com fina poeira de poesia. Agora, só os cegos de alma não me veem passeando em seu país, onde é rainha e bailarina, espalha conchas cheias de mar, põe flores nas portas, assa bolos de ilusão e sua voz é o som de um violino no Natal.
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De repente eu me vi diante de uma cômoda. Eu a conhecia bem, ela existia na minha antiga casa. Era marrom, feita pelo meu avô. Minha mãe a pintou e preencheu as gavetas com coisas metodicamente arrumadas. A mais importante era a primeira, a dos perfumes. Chamava-se “A Gaveta da Felicidade”.
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Não usava os tesouros aromáticos. Guardava na gaveta, onde tudo impregnavam. “Quando você estiver triste, abra a gaveta da felicidade e sinta o perfume”, dizia. Era tão bom aquele cheiro de cura e conforto, que muitas vezes fingi que estava triste para sentir o aroma da felicidade. Era uma artista a minha mãe, dessas que já nascem prontas e transformam em beleza tudo o que tocam. Fazia bolos mergulhada em quietude. Eu colava os olhos na massa bicolor. O som metálico do garfo na tigela era hipnótico: eu via na massa desenhos de castelos, casas, bichos e aves. Um bolo batido à mão, recheado de ilusão. Bolo de luz e sombra, dizia.
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Sentava na cadeira de balanço nas tardes de inverno, olhando para as árvores frutíferas. Sempre com os gatos no colo, esperava a época das flores e da colheita dos frutos, quando fazia seus doces em fogo lento e os punha em potes de vidro com um pequeno laço colorido. Em seguida, saía a entregar os mimos.
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O mundo das maravilhas de minha mãe é como a casa em que ela viveu aqui na Terra: um abrigo para os órfãos de afetos. Um deles, lembro-me sempre, era o Nato, um morador de rua que perambulava pela vila, carregando latas penduradas no pescoço, pedindo café.
Vinha todos os dias, bem cedinho. Mamãe mandava eu encher a lata dele com café quente, leite e bastante açúcar “pra esquentar e dar força”. Por vezes não tínhamos pão, ela então fazia farofa de ovos – para nós e para o Nato.
Minha mãe carregava na alma todos os poemas do mundo. E me dava. Como no dia em que perguntei como era o mar. “Filha, é tão lindo que chega a doer os olhos. É azul, com espuminha branca, e lá no fundo encontra o céu”. Devagar, colocou uma concha no meu ouvido e sussurrou com suavidade: isso é o barulho do mar.
“E tem cheiro, mãe?”
“Tem, filha, mas não consegui trazer”.
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Ela tinha a grande mania de encantar. Alice era o seu nome. E pôs em mim um país inteiro, feito de pequenas maravilhas. Nele, ela vive.
* Este texto é inspirado nas memórias e textos de Miriam Murakami sobre sua mãe.