Noites atrás, tive um sonho. Naquele devaneio noturno, nosso mundo estava virado ao avesso. Não eram mais nós, que comandávamos o planeta, nem uma civilização alienígena dando as cartas por aqui. Quem é admirador da sétima arte haveria de pensar que seriam os macacos. Nada disso, quem estava mandando no pedaço eram os felinos.
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Nesse mundo onde quem mandava eram os felinos, entre eles havia uma harmonia de fazer inveja. A jaguatirica vivia em paz com gato-maracajá. Teve até uma suçuarana que viveu maritalmente com um leopardo-das-neves. Nada de disputas acirradas em torno do ego de um ou de outro, tanto que o quepardo e chita não ficavam disputando para ver quem era o mais veloz só para se exibirem diante da mansidão de nossa onça pintada. Pensem numa paz! Pelo menos entre eles, tanto que o nosso gato doméstico aí que ficou preguiçoso mesmo, porque não estava na dieta dos grandões. Entenderam? Felino não comia felino, pelo menos no viés gastronômico. Aliás, o impala, a zebra, a girafa, a corça, todos os mais frágeis haviam saído do cardápio.
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Uma preferência no cardápio dos felinos era o “garoto a passarinho”. O pobrezinho era abatido antes dos 7 anos, e a receita sugeria cozimento para a carne ficar mais tenra e depois ir à frigideira e ser frito a alho e óleo. Lambuzavam os beiços com essa iguaria, segundo a onça parda,
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Alguns humanos iam sendo rejeitados à época do abate; por esse descuido alguns chegavam até a envelhecer. Eram chamados de “pelancudos”. A carne era tida com imprestável porque demorava para cozinhar, então eram triturados e servidos aos porcos.
Os que engordavam muito eram guardados para o 4 de outubro, que é o dia de São Francisco de Assis, que passara ser nosso protetor, e não mais dos bichos. Dos rechonchudos, separavam a banha e depois eram assados no rolete nessas festanças. Fatiados e servidos com uma bebida que muito apreciavam, xixi de menino com suor de javali.
O maior drama mesmo era quando estávamos chegando ao ponto de abate. Que tristeza tomava conta do rebanho. Nunca vou me esquecer, que na véspera de um dia de São Francisco foram buscar um gorducho, muito meu amigo. É um escritor lá de Campina Grande, no pesadelo era meu amigo de cela. Como se debateu quando o pegaram. Gritava pela vida diante daquela faca pontuda que trouxeram para espetar e sangrar o pobre. A primeira cutelada não o venceu. Precisaram de outra, mais outra e por fim a última. Entre uma espetada e outra os gemidos lancinantes ao perceber que a vida estava se esvaindo.
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Contei o sonho a um amigo em mesa de bar. Relatei minha indignação entre uma cerveja e outra pela agonia dos bichos quando vão ao abate. Foi quando veio a pergunta:
⏤ Essa tripinha crocante, tá boa?
⏤ Muito! ⏤ disse eu.
⏤ Como você é hipócrita!
⏤ Muito! ⏤ disse eu.
⏤ Como você é hipócrita!
Fingi que não ouvi.