Escrever, para mim, é um processo doloroso. Chega a ser excruciante encarar a página em branco do Word , que não se preencherá sozinh...

''Aridez criativa'': reflexões em torno de Santa Teresa, Rachel de Queiroz e Adélia Prado

tereza avila rachel queiroz adelia prado
Escrever, para mim, é um processo doloroso. Chega a ser excruciante encarar a página em branco do Word, que não se preencherá sozinha com palavras, períodos e parágrafos. O cursor pisca como se tivesse pressa; como se me cobrasse, impaciente, pela primeira frase. Essa incômoda barra vertical lembra o tic-tac do relógio a indicar que o tempo está se esvaindo, que o deadline se aproxima.

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GD'Art
Talvez a raiz desse bloqueio esteja no meu perfeccionismo excessivo, que me paralisa e me impede de avançar na escrita, ao exigir um padrão irrealista e inatingível, que leva, inevitavelmente, à ansiedade e à procrastinação. Atrás do birô, a cama me chama. Ao lado do computador, o celular aguarda que eu o desbloqueie e siga de um aplicativo a outro: do WhatsApp para o Instagram, do Instagram para o YouTube, do YouTube para o Facebook... e lá se foi uma hora preciosa, que não volta mais.

Um escritor que não consegue escrever é como uma monja enclausurada que não consegue rezar. Faço essa comparação porque, recentemente, concluí a releitura do Livro da Vida, a autobiografia de Santa Teresa d’Ávila, grande mística e doutora da Igreja, reformadora do ramo feminino da Ordem Carmelita no século XVI. Em dado momento da obra, Santa Teresa confessa:

“Muitas, muitas vezes, por muitos anos, estava mais concentrada nas batidas do relógio, desejando que acabasse meu tempo de oração, do que meditando sobre coisas edificantes. Muitas vezes senti que, se me fosse dado escolher, teria preferido fazer qualquer penitência do que me recolher em oração.”
p. 66
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Teresa d'Ávila em oração. ▪ Giovanni Battista Piazzetta, S.XVIII ▪ Museu Nacional, Estocolmo.
Essa dificuldade de rezar é chamada pela santa de “aridez espiritual”. É como tirar “penosamente a água do poço, o que [...] exige um grande esforço para manter recolhidos os sentidos, algo praticamente impossível para quem está acostumado a uma vida de distrações” (p. 89). No meu caso, escrever é precisamente isso: como lançar um balde a uma cisterna, esforçar-me por retirá-lo de lá, e, no final das contas, deparar-me com uma água salobra, cheia de refugos.

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A jovem Rachel de Queiroz, na década de 1920, época em que escrevia O Quinze, seu primeiro romance, publicado em 1930. ▪ Fonte: BN.
A aridez que Santa Teresa experimentou na alma, Rachel de Queiroz experimentou na pele e, de certa forma, ficou gravada no seu coração. A célebre escritora cearense não tinha sequer 20 anos completos quando lançou seu livro de estreia, O Quinze (1930), que retrata uma das maiores secas que o Nordeste já viveu. A aridez representa tanto a seca física do solo e da paisagem da Caatinga, quanto a aridez da fome e da miséria que afetam os retirantes. Embora não fosse religiosa, Rachel de Queiroz traduziu para o português a biografia de Teresa d'Ávila em 1946, intitulando-a de Vida de Santa Teresa de Jesus.

Lembro de Rachel de Queiroz ao falar dessa “aridez criativa” que me acomete, não só pela analogia com Santa Teresa, mas porque, recentemente, vi uma entrevista que ela concedeu ao documentário Memória Política, da TV Câmara, em 2001. Em dado momento, Rachel confessou que nunca gostou muito de escrever. Para ela, a escrita vinha de uma imposição íntima, especialmente nas noites de insônia, quando começava a imaginar histórias. Pela manhã, se julgava a ideia boa, levantava-se e escrevia, ou, pelo menos, tomava algumas notas.
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Rachel de Queiroz (1910—2003), escritora, jornalista e tradutora cearense. ▪ Div.
Para ela, escrever era uma vocação: “Se não tivesse essa vocação, eu daria para bordar, para outras coisas”.

Em seguida, Rachel foi mais enfática:

Escrever não é prazeroso. Escrever é cansativo, é imperioso… Se eu morrer agora, você não encontra uma página minha nova aqui dentro de casa, que já não tenha sido vendida e revendida. Eu tenho uma preguiça horrível de escrever. Eu escrevo um artigo por semana, porque eu preciso do dinheiro [...]. Toda semana eu escrevo para o Estadão, que distribui para o resto do Brasil. Se abrir a minha secretária, onde escrevo, você não encontra uma folha, um papelzinho, uma coisa com nada escrito. Se eu quiser publicar alguma coisa inédita, eu não tenho.

Rachel também confessou seu sentimento de “alívio” ao terminar de escrever um livro. Mas ela nunca avisava que havia concluído a obra, pois sabia que o editor começaria a cobrar antes de ela se sentir satisfeita. José Olympio, seu “amigo e irmão de vida”, era quem insistia em espiar seus manuscritos,
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Adélia Prado, escritora mineira, nos anos 1970. ▪ Acervo AP.
desconfiado de que ela escondia algo pronto.

Outra grande escritora que também conheceu a aridez criativa foi Adélia Prado. Prestes a completar 90 anos, a poeta de Divinópolis ainda se mantém produtiva — acaba de lançar O Jardim das Oliveiras, quase cinquenta anos depois de sua estreia com Bagagem (1976). Ao longo da carreira, publicou mais de 20 livros e, em 2024, recebeu duas distinções máximas: o Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, e o Prêmio Camões, o maior reconhecimento da literatura em língua portuguesa.

Em entrevista ao Roda Viva em 2014, Adélia comentou sua passagem pelo “deserto”, onde viveu num “desamparo total” durante o processo de escrita do livro O homem da mão seca (1994):

Eu comecei o livro. Escrevi talvez um, dois parágrafos, e fiquei empacada. O problema é que eu não sabia o que era. Por que que eu não dou conta de escrever?
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Eu gostava daquele começo, sabe? Achei: ‘vai ser um livro bom!’ Eu estava empolgada e parei. E, quando eu parei mesmo, eu descobri depois que o problema era comigo. Eu acho que era uma depressão profunda, uma coisa que eu nem tinha consciência de que estava padecendo [...] Eu comecei a escrever empolgadíssima e sabia até como ia acabar [...] Tinha começo, tinha fim e não tinha meio. Aí eu descubro que a mão seca era a minha mesmo. Eu fiquei assombradíssima! Eu fiquei sete anos na areia do deserto. Fiquei lá pedindo: Miserere!

Católica praticante, Adélia é uma grande devota de Santa Teresa d’Ávila. Inclusive, escreveu o poema Santa Teresa em êxtase, publicado no livro A duração do dia (2010):

O que me dá alegria não faz rir. É vivo e sem movimento. Quando desaparece todos os meus ossos doem.
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A escritora Adélia Prado, durante evento em 2017, no qual foi homenageada pelo Clube Atlético Mineiro. ▪ Imagem: B. Cantini / CAM, via Flickr.
Os arroubos místicos de Santa Teresa, no auge da oração, expressos no poema de Adélia, contrastavam radicalmente com os longos períodos de aridez espiritual que ela também enfrentou. A santa os descreve como “uma forte chuva, quando o Senhor rega a terra sem nenhum esforço de nossa parte” (p. 88).

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Teresa d'Ávila J.A. Tejedor, 1884 ▪ Museu do Prado, Madri
A aridez criativa é impiedosa. Atinge crentes e não crentes. Tanto Rachel de Queiroz, que declarava não ter fé, quanto a católica Adélia Prado foram suas vítimas. Talvez seja necessário a todos nós, que nos dedicamos ao ofício da escrita, enfrentar a travessia solitária desse deserto, à custa de silêncio e esforço, munidos da “determinada determinação” de não desistir, como dizia a mesma Santa Teresa. Pois, como também ela lembrava: “é justo que muito custe o que muito vale”.

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