Em 1962, o médico e escritor paraibano Oscar de Castro publicou pela A União Editora seu José Lins do Rego – Depoimento do Amigo , t...

Oscar de Castro e José Lins do Rego: uma amizade da vida inteira

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Em 1962, o médico e escritor paraibano Oscar de Castro publicou pela A União Editora seu José Lins do Rego – Depoimento do Amigo, trabalho apresentado por ocasião do III Congresso Brasileiro de Crítica e História Literária, evento promovido no âmbito do Plano Cultural do Governo Pedro Gondim, confirmando a importância que esse Plano teve à época, ao que parece poucas vezes igualada em governos posteriores.

Uma vez publicada, a saborosa palestra do professor Oscar de Castro converteu-se imediatamente em valioso subsídio para os interessados na pessoa do autor de Menino de Engenho, tendo em vista a fidedignidade e a riqueza das informações trazidas pelo velho e fiel amigo dos bancos escolares, um amigo da vida inteira, como se vê na leitura do texto. Neste, o leitor encontrará mais o homem José Lins que o escritor, o homem visto pelas lentes do afeto e da admiração amicais; encontrará um perfil mais biográfico que literário, ou seja, uma obra menos do intelecto que do coração. O que, ao meu ver, só faz valorizar a publicação, conferindo-lhe a dimensão de pequena joia biográfica, hoje rara, a pedir reedição.

A amizade dos dois começou em 1911, quando estudaram juntos no antigo Colégio Pio X, então instalado no velho Seminário, por trás da Igreja São Francisco, onde meio século mais tarde funcionaria o Colégio Estadual do Roger, onde estudei os quatro anos do ginásio. No mesmo pátio imenso, “à sombra das mangueiras frondosas e de velhos oitizeiros”, no qual brincavam os meninos Zé Lins e Oscar após o almoço, brinquei eu, adolescente, e ainda hoje brinco, através da memória. Um mundo tão remoto, que parece ter mais idade do que de fato tem.

Àquele tempo, no jeito de ser, Zé Lins já era o Zé Lins de sempre, de antes e de depois, segundo o amigo: “entre os da nossa classe, era um jovem desalinhado, desarrumado, nem sempre dócil à disciplina colegial. Na banca era desatento; no recreio, preferindo o foot-ball, ou a cobra cega; no dormitório, às vezes, quebrando o silêncio, com as suas constantes ‘brincadeiras’. Desenjorcado de atitudes e desalinhado no trajar, já mostrava, porém, um aspecto de sua forte personalidade, que era a enorme afeição, que sabia manter, para um determinado grupo de colegas e uma indiferença para os que não penetravam nesse círculo”. Eis aí o inquieto brincalhão, fiel a si mesmo a vida toda, aquele mesmo que José Condé assim descreveu: “era o rei das brincadeiras, apelidava os amigos, falava alto nos cinemas, referia-se a transeuntes esquisitos com palavras de xingamento bem humorado”. Certa vez, iam na barca de Niterói Condé e Zé Lins. Este estava todo vermelho, com urticária, e incomodado com o aperto de gente em torno de si. De repente, teve uma ideia e falou para todo mundo ouvir: “Olha como é horrível essa tal de lepra!”. Foi o bastante para todo mundo sair de perto dele, deixando-o bem folgado.

Essa descrição do Zé Lins aluno do Colégio Pio X corresponde perfeitamente ao que se sabe sobre ele enquanto viveu, criança, no engenho avoengo. Era um moleque mais da bagaceira que da casa-grande, passando os dias ao Deus dará, solto feito bicho, em brincadeiras mais ou menos inocentes com os demais meninos, filhos de moradores de seu avô. Este, observando o neto estabanado, temia, com razão, por seu futuro, até achando que o descendente não daria para nada na vida. De modo que o menino desarrumado, rebelde e gozador que Oscar de Castro conheceu no Colégio Pio X é realmente aquele mesmo descrito no primeiro romance do chamado “ciclo da cana-de-açúcar”. Só com o passar dos anos é que ele iria se domesticando, mas sem perder nunca inteiramente as características essenciais de comportamento da infância.

Presepeiro e hipocondríaco. Castro, amigo e médico, conhecia bem seu paciente:

“O homem vivia preocupado com a morte. Era um espectro sempre presente. Era uma quase angústia permanente, aquele seu nervosismo. De uma feita, José Lins descansava no Engenho Itapuá. Um dia, quando marchava para uma das minhas aulas matinais, pela Avenida Tabajara, ouço o ranger de um carro, que freiava, violento, atrás de mim. Assustei-me. Era José Lins, que viera às pressas, procurara-me, com o seu primo Vieirinha, na direção de uma caminhonete. Não era nada demais... Estava nervoso! Não dormira bem à noite. Era preciso verificar-lhe o pulso e a tensão arterial”.

Além de hipocondríaco, Zé Lins talvez fosse ciclotímico, pois eram famosas suas alterações de humor, frequentemente passando da euforia para o ensimesmamento e vice-versa.

O interesse pelas coisas da literatura surgiu ainda no Colégio Pio X, sob a diligente orientação do Cônego Leão Fernandes, seu professor de língua portuguesa. Nessa época, segundo o amigo, Zé Lins cultivava mais o ensaio. A ficção só viria muitos anos após, com Menino de Engenho, de 1932. Separados em 1917, tendo ido um estudar medicina no Rio de Janeiro e o outro direito no Recife, reencontraram-se apenas quando Zé Lins residia à rua General Garzon, no Jardim Botânico, às margens da Lagoa Rodrigo de Freitas, já célebre como romancista. Mas nunca deixaram de se corresponder, mantendo acesa a chama da amizade da infância. E quando o escritor vinha à capital paraibana, era a vez de incorporar outros amigos à sua afeição, além de Oscar de Castro: Odilon Ribeiro, Juarez Batista, Abel Cavalcante, José Américo e Olívio Montenegro, entre outros. Numa dessas visitas, conta-se, sendo José Américo candidato a governador, Zé Lins admoestou, bem ao seu estilo, a multidão num comício na Lagoa: “O paraibano que não votar em José Américo não tem vergonha na cara!”. Vejam só.

Ele gostava de oferecer almoços aos amigos em sua casa carioca, comprovando sua sociabilidade. Ali eram convivas frequentes Lêdo Ivo, Valdemar Cavalcanti, Simeão Leal, Adonias Filho, Luiz Jardim, entre outros. E também gostava de almoçar na Confeitaria Colombo, no Centro, onde tinha mesa cativa, sobre a qual foi afixada placa de bronze em homenagem ao cliente ilustre. Visitava todo dia seu amigo e editor José Olympio, escrevia regularmente nos jornais do Rio, passeava pelas ruas cariocas e ia às livrarias. A tudo isso assistiu Oscar de Castro, testemunha atenta de seus altos e baixos. De sua eleição para a Academia Brasileira de Letras e de sua mais ou menos longa enfermidade. Na primeira, presenciando o estranho discurso de posse de Zé Lins, no qual o romancista foi deselegante com o ritual acadêmico e com seu antecessor, Ataulfo de Paiva; e na segunda, prestando-lhe assistência médica informal, ao lado dos profissionais oficiais.

Em março de 1957, o amigo retornou à Paraíba para retomar suas obrigações como médico e professor. Em junho, o estado da saúde de Zé Lins se agravou. E em setembro ele partiu, à uma e quinze da madrugada do dia doze, encerrando aquela bela amizade nascida há mais de quarenta anos, no antigo Colégio Pio X.

Esse vínculo afetivo certamente é dos mais antigos de ambos os amigos, já que construído quando eram meninos. No caso de Zé Lins, duas de suas outras grandes amizades, José Américo e Gilberto Freyre, só viriam posteriormente. Quem tem o privilégio de ter um, sabe bem o valor de um amigo de infância.

No derradeiro parágrafo de seu texto, Castro escreveu, entre melancólico e esperançoso: “Quem sabe, se um dia, a Paraíba, não reivindicará para o seu solo, os restos do seu maior romancista”. Imagino que, assim escrevendo, fazia-o em nome de todos os paraibanos.

De fato, quem sabe, se um dia...

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  1. Obrigado, Frutuoso.

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  2. Gil, é a segunda vez que você se refere , de forma negativa, sobre o discurso de Zélins , em seu ingresso na APL. Quero protestar contra sua crítica incabível. Zélins não foi deselegante. Foi sincero, verdadeiro . Ataulfo não tinha perfil para a ABL. Em vez de bajular e mentir, Zelins traçou o perfil de Ataulfo e o imortalizou .As eleições erradas levam a isso . Tb não fiz o elogio do meu antecessor, na APL..Zélins foi minha inspiração.Eu não podia chamar de poeta quem se apresentava assim, mas não era .

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  3. Corrija ; ingresso de Zélins na ABL. Ângela

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  4. Obrigado, professora Ângela, por sua leitura e seu comentário, que me honram. Respeito muito seu ponto de vista e procurarei refletir sobre ele. Zé Lins é uma das minhas devoções literárias e assim continuará sendo. Receba minhas homenagens. Francisco Gil Messias.

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  5. Obrigado, Lúcia.

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  6. “A virtude está no justo meio entre dois defeitos” - Aristóteles.

    Defender como virtude o excesso de sinceridade de Zélins parece ser abrigo precário para discordância pessoal sobre apreciação colegiada de obra existente.

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  7. Não existe excesso de sinceridade. Sinceridade é um traço de caráter, uma opção ética. Nao cabe meio termo .Sinceridade é uma virtude difícil. Jamais pode ser confundida com indelicadeza.Aliás,Zélins faz a ressalva em seu discurso. Ângela

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