A beleza da simplicidade no canto regional e na ancestralidade expressa uma forma de estar no mundo, de preservar identidades e de transmitir saberes que atravessam gerações. Esses elementos, quando combinados em uma obra de arte — por exemplo, a arte de cantar — produzem uma experiência armazenada de memória, emoção, pertencimento e dignidade. É dessa combinação que nasce a espontaneidade, na qual é possível encontrar uma vivência que resiste ao engessamento da técnica excessivamente formalizada. Nela, há o gesto natural do corpo que pulsa para cantar, tornando o palco um espaço de empatia e partilha, no qual cada espectador se reconhece no cancioneiro, na poesia e na melodia. Esse processo eu observei durante o show da paraibana Mayana Neiva, no dia 6 de dezembro, no Teatro Paulo Pontes, em João Pessoa (PB).
A cantora Mayana Neiva no show do Teatro Paulo Pontes, dia 6 de dezembro de 2025, em João Pessoa (PB) vivasscomunicacao.com.br
O canto regional nasce da vida simples, das festas de colheita, do trabalho no campo, dos rituais comunitários e das histórias contadas pelos mais sábios. Por isso, carrega uma espontaneidade que não é improviso desordenado, mas uma sabedoria de vida incorporada — transmitida oralmente — que emerge naturalmente do convívio familiar e social, como expressão da própria beleza de existir diante dos conflitos. Essa pureza garante que cada interpretação seja única, marcada por emoções intensas e pelo prazer de viver com dignidade o momento presente. É o caso de Mayana Neiva, que resgata um modo de cantar que privilegia o sentir antes do executar, acolhendo ainda a participação de cada espectador como novos instrumentos de seu grupo musical e permitindo que deem voz às suas ancestralidades e afetos.
Mayana Neiva
A simplicidade de Mayana, como força estética na arte do canto, manifesta-se na pureza espontânea de uma menina que irradia alegria. Sua voz, nos versos e nas melodias, revela-se num impulso que transcende experiências coletivas e desperta um gosto estético consciente. Essa beleza simples valoriza seu timbre natural, seu ritmo corporal e o espaço afetivo das identidades — a casa, o terreiro, a roda, o chão batido, o cheiro da terra molhada, a brisa do amanhecer, o sagrado pôr do sol da tarde. Tudo isso brilha no palco e na dança do seu corpo. A partir desses elementos, sua existência é um estado de arte que permite que sua voz conte histórias e recite poemas com verdade e reconstrução de memórias afetivas.
A ancestralidade não apenas inspira o canto regional — ela fala através dele. Cada frase melódica, cada entonação, cada modo de narrar e cantar é sustentado pela memória das lutas por dignidade, das celebrações no aconchego das famílias, das superações das crises existenciais e das resistências contra a violência e o ódio. Cantar ancestralmente é também preservar aquilo que o tempo não destrói, especialmente o desejo de amar e de permitir-se ser amado conforme o outro deseja amar. Por isso, a simplicidade e a espontaneidade possuem uma dimensão política e cultural, pois resistem à homogeneização e afirmam a singularidade e a unidade dos povos em suas diferenças culturais e ideológicas.
Mayana Neiva
Na fusão entre pertencimento, memória e dignidade no canto, a voz não é apenas instrumento — é corpo, é palco, é território, é chão, é o próprio espectador. O modo de cantar expressa a relação com a natureza local, com a feira, com o clima, com o trabalho e com os modos de vida tradicionais. A espontaneidade de Mayana Neiva permite que seu corpo seja livre e que sua simplicidade seja a voz de todos, justamente por ser verdadeira; seu respeito e carinho ao nomear outras cantoras femininas preservam uma linhagem que se mantém viva como patrimônio cultural. Essa fusão cria um campo estético no qual cantar e viver tornam-se gestos inseparáveis e imortais.
A beleza que reside no coletivo costuma florescer na roda de danças, no encontro, no improviso compartilhado. Já a ancestralidade é fortalecida pela coletividade, pois ninguém canta sozinha sua própria herança cultural. A simplicidade abre espaço para que todos participem, tornando o canto menos espetáculo e mais união. Nesse sentido, o canto regional reeduca sensibilidades e reconstrói afetos — ensina pertencimento, respeito e continuidade das tradições.
Por isso, Mayana Neiva tem a habilidade de revelar o humano em sua forma mais pura, livre de regras rígidas. Sua arte de cantar une a poesia do passado ao presente, o indivíduo à comunidade, o corpo ao pertencimento. Trata-se de uma beleza que depende da autenticidade de quem canta e da força de lutar por liberdade e respeito. Assim, seu canto é gesto de preservação, resistência e empatia — um modo de manter viva a chama que une gerações e liberta a alegria do embrutecimento humano.