Em 2023, tive a oportunidade de publicar dois trabalhos que considero importantes. O primeiro foi o livro Biu Ramos: o timoneiro da Arca de Sonhos, resultado do meu mestrado no Programa de Pós-Graduação em Jornalismo, da Universidade Federal da Paraíba (PPJ/UFPB),
sob orientação da professora Joana Belarmino. Posteriormente, a biografia foi lançada com selo da Editora A União, graças aos esforços generosos de Naná Garcez, William Costa, Alexandre Macêdo, Benvenuta Sales e de toda a equipe da editora.
O segundo foi consequência do primeiro. Após o lançamento da biografia, o historiador e coordenador de Cultura do município de Araruna, Wellington Rafael, perguntou-me se eu já havia ouvido falar em Antônio Joaquim Pereira da Silva. Disse-lhe que não. Ele, então, respondeu que o ararunense A. J. Pereira da Silva — ou simplesmente Pereira da Silva — havia sido o primeiro paraibano a alcançar os louros da imortalidade acadêmica, integrando o seleto grupo de imortais da Academia Brasileira de Letras (ABL).
Questionei-me sobre como jamais havia ouvido falar numa figura tão importante para nossa literatura e nossa cultura. Como pôde o poeta ser relegado ao mais completo esquecimento pelos próprios conterrâneos? Logo percebi que não estava sozinho. Muitos ararunenses também o desconhecem,
Pereira da Silva (1876—1944), poeta e jornalista paraibano, natural de Araruna, usando o traje (fardão) da Academia Brasileira de Letras, na década de 1930.
embora no brasão da cidade estejam estampadas as letras “P. S.”, em sua homenagem. Além disso, o hino da cidade faz alusão ao poeta: “[...] Pelas letras és tu a primeira; conquistando um título ideal; majestosa, feliz, sobranceira; como mãe do primeiro imortal.”
Diria que não foi a ABL que alçou Pereira da Silva à imortalidade, mas a teimosia de um conterrâneo seu, que insistia em manter viva a memória do poeta: o professor Humberto Fonseca de Lucena (1941–2024). Em 1993, Humberto lançou o livro A. J. Pereira da Silva — Documento. Na esteira de seu trabalho vieram a tese Pereira da Silva no Campo Literário: O Discurso das Críticas e dos Periódicos (1890–1960), publicada em 2015 pela doutora em Literatura pela UFPB, professora Gilsa Andrade, e o livro O Esquecido Poeta Pereira da Silva: Primeiro Paraibano na Academia Brasileira de Letras, do desembargador federal Rogério Fialho, publicado em 2023.
Especialistas na obra de Pereira da Silva: professor Humberto Fonseca de Lucena (1941–2024), professora Gilsa Andrade e desembargador Rogério Fialho.
Em outubro daquele ano, publicamos — Wellington e eu — um Correio das Artes especial em alusão aos 120 anos da estreia de Pereira da Silva na literatura com Vae Soli!, em 1903, e aos 90 anos de sua eleição para a ABL três décadas depois, em 1933. À época da publicação, o suplemento literário de A União era editado por André Cananéa.
Correio das Artes, suplemento cultural do jornal A União (Paraíba), edição de outubro de 2023. ▪ Fonte: A União
A princípio, Biu Ramos e Pereira da Silva não teriam muito em comum, exceto o fato de ambos serem paraibanos e terem atuado no jornalismo — Biu como repórter e colunista; Pereira da Silva como ensaísta e crítico literário. Mas havia algo mais profundo que os unia: ambos eram homens negros que sofreram, cada um a seu tempo, as consequências do racismo, como procurei evidenciar nos dois trabalhos.
O racismo vem a galope
Quando afirmo ser o autor de uma biografia sobre Biu Ramos, se o interlocutor conhece minimamente sua trajetória, inevitavelmente me pergunta sobre um episódio folclórico — um caso que, na verdade, nunca aconteceu. Mas, como diria John Ford em O Homem que Matou o Facínora (1962), “quando a lenda é maior que o fato,
Biu Ramos, em fotografia da década de 1980.
publique-se a lenda”. E Biu levou à risca tal indicação.
Conta-se que, na manhã do golpe militar, em 1º de abril de 1964, um soldado do Exército teria chegado a cavalo à sua casa com ordens expressas para prendê-lo. Alheio a tudo que acontecia, ele regava tranquilamente o jardim quando foi pego de calças curtas — literalmente. Estava apenas de bermuda, sem camisa, quando o oficial apareceu e perguntou-lhe, do alto de sua montaria:
⏤ Ô, crioulo! É aqui que mora o jornalista Severino Ramos?!
⏤ É, nhozinho — respondeu Biu, percebendo que o militar não o reconheceu.
⏤ Ele está?
⏤ Não, acabou de sair. Tomou o ônibus ali na esquina e foi embora — esquivou-se Biu.
Ao chegar ao quartel, o soldado bateu continência, tirou o quepe e comunicou ao superior, constrangido:
⏤ Senhor, o jornalista Severino Ramos fugiu. Na casa dele só estava o jardineiro, um neguinho de pés tortos...
⏤ Imbecil! Esse é o tal do Biu Ramos! — bradou o superior, indignado.
Esse episódio, ainda que fictício, demonstra como o racismo vem a galope. Muitos o tratam como uma anedota — inclusive o próprio Biu. Mas ele compreendia que, por trás da aparente brincadeira, subjazia o racismo. Para aquele soldado, o jornalista Severino Ramos não poderia ser negro.
"Ele devia pensar que eu fosse um loiro, alto, de olhos azuis... Isso também é uma manifestação de preconceito. Quer dizer, aquele neguinho não tinha aparência, nem jeito, nem porte de jornalista."
Biu deu essa declaração ao jornalista Ademilson José, no programa Câmera Aberta, da TV Câmara, que foi ao ar em 2008. Na mesma entrevista, ele citou outros dois casos de racismo dos quais foi alvo.
A reportagem do “negrinho”
O primeiro caso aconteceu quando ele trabalhava no Correio da Paraíba e foi designado para cobrir a chegada de um navio da Moore McCormack Lines no Porto de Cabedelo. A companhia de navegação americana, fundada no pós-guerra, era famosa por suas embarcações sofisticadas, equipadas para atender às exigências mais requintadas dos exportadores e viajantes da época.
A embarcação SS Brazil, da empresa Moore McCormack Lines, transportava passageiros e cargas entre Nova Iorque e os principais portos da América do Sul, nas décadas de 1930, 1940 e 1950. ▪ Fonte: Ocean Liner Society
O armador responsável por receber o navio convidou a imprensa para um coquetel, no qual o comandante da embarcação, que era americano, concederia uma entrevista coletiva. Além de Biu, estavam presentes os jornalistas Linduarte Noronha, designado por A União, e Wills Leal, enviado por O Norte. Em dado momento da recepção, o armador tomou Wills pelo braço e falou-lhe ao pé do ouvido, em tom de reprovação:
⏤ Wills, como é que o Correio da Paraíba manda um negro para entrevistar o comandante americano?
Wills Leal (1936—2020), jornalista, professor e escritor paraibano, natural de Alagoa Nova. ▪ Fonte: Coisas de Cinema
⏤ Mas este é Biu Ramos, um repórter muito conhecido e uma das melhores penas do estado! ⏤ retrucou Wills.
Dias depois, quando o McCormack já tinha zarpado para prosseguir sua rota pelos mais importantes portos do Atlântico, o armador encontrou-se por acaso com Wills Leal e acabou por reconhecer:
⏤ Rapaz, a reportagem do negrinho foi a melhor de todas!
Ao comentar o caso, Biu disse: “Aí, mais uma vez, eu me impus. Na ocasião, ele [o armador] não viu meu talento, viu minha cor. Mas, por baixo da minha cor, tinha outras qualidades que ele não conhecia”.
Biu tinha plena consciência de episódios como esse são “resquício da escravidão — uma das coisas mais dolorosas do mundo”, declarou também a Ademilson José, dessa vez em entrevista para o programa Nossa Gente, da TV Câmara, que foi ao ar em 2014.
Biu nasceu em 1938, apenas 50 anos depois da abolição da escravatura — um arco temporal muito curto. Ele era descendente direto dos escravizados nas lavouras de cana-de-açúcar da Várzea do Paraíba, sendo que seu avô paterno era “filho do ventre livre”.
À mesa com o preconceito
O segundo caso de racismo aconteceu em 1962, quando Biu trabalhou na campanha de Teotônio Neto para deputado federal pelo Partido Social Democrático (PSD). Ele era o editor
Teotônio Neto (1918—2021), empresário e político paraibano, fundador do Jornal Correio da Paraíba, nascido em Santana dos Garrotes. ▪ Fonte: facebook
do jornal De mãos dadas, no qual registrava o périplo de Teotônio e sua comitiva por diversas cidades sertanejas.
Numa determinada cidade do Vale do Piancó, foi oferecido um farto almoço a Teotônio, sentado à cabeceira da mesa, ladeado por Biu e pelo fotógrafo Machado Bittencourt, que também fazia parte da comitiva. Os comensais eram servidos pela dona da casa — “uma loira alta, de olhos verdes”, segundo a descrição de Biu. Tendo servido a Teotônio, a anfitriã pulou o prato de Biu e serviu Machado Bittencourt e os demais convidados. Percebendo a atitude racista da mulher, Teotônio tomou seu próprio prato e ofereceu a Biu, dizendo:
⏤ Tome, Severino, eu não vou comer arroz.
Ao ver a cena, a dona da casa foi tomada por constrangimento:
⏤ Ah, mil perdões! Eu passei direto... é que são muitos convidados e estou só com minhas filhas servindo! ⏤ justificou-se a mulher, que, a partir de então, passou a guarnecer o prato de Biu com toda sorte de iguarias.
“Ela tinha pulado de propósito!", disse Biu. "Para ela, seria uma grande humilhação servir a um negro na mesa dela. Teotônio Neto teve presença de espírito e deu o prato dele para mim”.
A tradição branca
Outro episódio marcante na biografia de Biu — e que ele não mencionou na entrevista — foi sua passagem pela direção de A União, em 1971. À época, ele tinha apenas 33 anos, mas já acumulava 16 de experiência na labuta jornalística. Sua nomeação, no entanto,
causou frenesi em determinados setores da sociedade, “impregnados de um indisfarçável sentimento de despeito e inveja, chegando às vezes ao extremo da negação do mérito ou do valor”, como ele próprio escreveu no livro Memórias de um Repórter.
Na obra A União — 120 anos: uma viagem no tempo, organizada por Alarico Correia Neto e Juca Pontes e publicada em 2013, Biu reafirmou, em entrevista à jornalista Rafaela Gambarra, que “certas pessoas não admitiam que alguém assim como eu, além do mais, preto, fosse para a direção de A União, que tradicionalmente era ocupada por gente da elite política ou social do estado”. Muito acertadamente, o título dado por Rafaela à entrevista foi: “Biu Ramos quebrou a tradição branca”.
Quando eu fui nomeado ⏤ continuou Biu ⏤ houve uma certa perplexidade e instalou-se uma rede de intrigas contra mim. Um certo jornalista chegou, inclusive, a escrever um artigo contra minha nomeação, lembrando que o cargo tinha uma tradição de diretores pertencentes a famílias ilustres, e a minha nomeação quebrava toda essa corrente [...] Foi uma reação preconceituosa, que ainda hoje existe, embora em menor escala, por conta das leis que proíbem esse tipo de comportamento.
O “certo jornalista” a que ele se referia era decano da imprensa paraibana, que publicou no jornal O Norte uma crítica velada, irônica e elitista ao “novo diretor do jornal decano do periodismo regional”.
Biu Ramos (1938—2018), jornalista e escritor paraibano, natural de Santa Rita. ▪ Fonte: PB Criativa
Em nenhum momento Biu é citado nominalmente. O autor prefere uma estratégia sutil: faz um desfile de antigos diretores de A União, exaltando seus “títulos acadêmicos”, sua “categoria intelectual” e seu “padrão social” — um recurso retórico que, ao enaltecer os antecessores, diminui o sucessor. Segundo o artigo, o “critério de rigorosa seleção” fora quebrado pela nova nomeação. O elogio aos nomes ilustres do passado funcionou, assim, como contraste implícito à escolha recente, sugerindo que o novo diretor não possuía o mesmo “gabarito social”.
O fecho do artigo, à primeira vista elogioso, termina por carregar o veneno da ironia. Ao afirmar que o jornal continuava “honrando a memória do seu fundador” ao receber “mais outro valor de projeção cultural e gabarito social”, o articulista deixava entrever o que não disse: que, para ele, Biu Ramos — negro, jovem e de origem humilde — não se enquadrava nesse retrato.
A candidatura naufragada
Biu também usou seu espaço no jornal para denunciar episódios de racismo. Na entrevista que me concedeu para Biu Ramos: o timoneiro da Arca de Sonhos, o jornalista Nonato Guedes relembrou um caso emblemático ocorrido no Iate Clube da Paraíba.
Biu Ramos e Nonato Guedes.
Conta Nonato que, no estatuto do Iate, havia a figura do “comodoro”, equivalente ao diretor do clube. À época — na década de 1980 — o cargo era ocupado por um indivíduo declaradamente racista.
Num domingo ensolarado, um casal do high society pessoense foi ao Iate com os filhos pequenos e os deixou sob os cuidados da babá, que era negra. As crianças brincavam na piscina e, em certo momento, a babá também entrou na água para garantir-lhes a segurança. Ao ver a cena, o comodoro agarrou-a pelos cabelos e a retirou da piscina num ato explícito de humilhação e exposição pública.
A notícia correu a cidade em poucas horas. Tomado de indignação, Biu decidiu denunciar o episódio em sua coluna.
Tempos depois, foram marcadas as eleições para a diretoria do Iate, e Djair Nóbrega, amigo de Biu, resolveu candidatar-se ao posto, desafiando o comodoro. No dia da votação, Biu publicou uma nota em sua coluna dominical — As Domingueiras — onde se lia:
“Hoje é dia de eleição no Iate Clube. O comodoro [X], uma figura racista, é candidato a se perpetuar no cargo e se apresenta com este título: ‘Velas ao mar, [X] vai voltar’. Isto não é um slogan, é uma ameaça.” — fulminou Biu.
Mureta do Iate Clube da Paraíba, na praia do Bessa, em João Pessoa. ▪ Foto: P. Gabinio / via GMaps
Bastaram poucas linhas para que a candidatura naufragasse. Exemplares do Correio circularam pelo Iate naquela manhã, e o próprio Biu foi até lá, no fechamento das urnas, para testemunhar a derrota do comodoro.
⏤ Biu era cáustico — afirmou Nonato. — Ele demolia com uma frase [...] Ele tinha esse dom, esse poder.
A ABL ameaçada pelos “homens de côr”
Pereira da Silva se candidatou três vezes a uma cadeira na ABL antes de ser finalmente eleito. A primeira tentativa foi em 1919, na vaga de Olavo Bilac, para a qual foi eleito Amadeu Amaral. Voltou a bater às portas da imortalidade em 1927, na vaga de Osório Duque Estrada, que ficou com Roquette-Pinto. A terceira tentativa ocorreu em 1931, com a morte de Silva Ramos; mais uma vez Pereira foi preterido pela Academia, dessa vez em favor de Alcântara Machado.
Alcântara Machado
Amadeu Amaral
Roquette-Pinto
O poeta só foi eleito na sua quarta tentativa, em 23 de novembro de 1933, na vaga deixada pelo poeta Luís Carlos, de quem era amigo pessoal. Assim, ele se tornou o quinto ocupante da cadeira de nº 18, cujo patrono é João Francisco Lisboa. Foi escolhido logo no primeiro escrutínio,
Alcides Carneiro (1906—1976), advogado, poeta e político paraibano, natural de Princesa Isabel.
derrotando o poeta Álvaro de Alencastro, por 28 votos a 1.
Mas a situação financeira de Pereira da Silva era tão crítica, que o advogado Alcides Carneiro remeteu um telegrama para o então Interventor Federal da Paraíba, Gratuliano de Brito, pedindo que o estado natal do novo imortal custeasse o tradicional fardão dos acadêmicos:
Nosso conterrâneo, Pereira da Silva, eleito para a Academia, precisa de fardão e não tem tostão. Pedimos a ajuda da Paraíba, lembrando que ela ainda deve ao poeta o enxoval do batizado.
Atendendo ao apelo, Gratuliano de Brito publicou o decreto de nº 548, de 30 de julho de 1934, que abriu crédito especial de 6 contos e 500 mil réis, para a pagar o fardão de Pereira da Silva, diante de sua situação financeira “das mais modestas”.
O acadêmico Humberto de Campos deu detalhes da eleição e da posse de Pereira em seu Diário Secreto, que permaneceu guardado nos cofres da ABL por 15 anos após sua morte, em 1934. Decorrido o prazo, os textos foram publicados em fascículos na revista O Cruzeiro e reunidos em livro em 1954, causando escândalo pelas observações francas sobre figuras notórias da época.
Trecho do Diário Secreto de Humberto de Campos que reproduz o diálogo com Celso Vieira, publicado pela revista O Cruzeiro em maio de 1951. ▪ Fonte: Hemeroteca Digital/Biblioteca Nacional.
Pereira da Silva tomou posse na ABL em 26 de junho de 1934, e foi recepcionado pelo acadêmico Adelmar Tavares. No dia seguinte, Humberto de Campos registrou as impressões de Fernando Néri, diretor da Secretaria da Academia,
⏤ Estêve boa [sic.] — diz. — Gente pobre, de subúrbio, pessoal da Estrada de Ferro, mas em boa quantidade [...].
Como se não bastasse o preconceito de classe de Fernando Néri, Pereira também seria alvo de racismo explícito por parte de Celso Vieira, que sequer havia tomado posse na Academia.
No domingo, 23 de julho de 1934, menos de um mês após a cerimônia, Humberto de Campos recebeu a visita de Celso, que viera acertar detalhes de sua própria posse na cadeira 38, na sucessão de Santos Dumont. Celso queria que Campos o recebesse, mas este recusou, alegando problemas de visão, e sugeriu outros nomes. A conversa, então, tomou um rumo assustador:
⏤ Nós devemos cuidar, meu caro Humberto, ⏤ diz-me, ⏤ de dar a impressão de que a Academia é um instituto representativo de um país dominado pela raça branca. E ela está ameaçada pelos homens de côr [sic.].
Teodoro Sampaio (1855—1937), engenheiro, geógrafo, escritor e historiador baiano, nascido em Santo Amaro da Purificação.
Campos recorda que, ao ouvir isso, pensou em Teodoro Sampaio, que nunca fora eleito para a Academia, embora fosse um dos grandes intelectuais brasileiros. Defendeu-o dizendo: “É o maior representante da raça negra, na hora presente, em todo o mundo.”
Diante da resposta, Celso Vieira explicou-se:
⏤ Não, eu não quero referir-me ao Teodoro [...] Teodoro é um erudito. Eu falo é dos poetas mulatos e desleixados, como o Pereira da Silva. É um grande poeta? Não é. E nem ao menos procura impor-se pela compostura das roupas e das maneiras. Contou-me o Adelmar [Tavares] que, outro dia, querendo levá-lo
em sua companhia, no Fórum, no elevador destinado aos Magistrados e aos Advogados, o cabineiro não consentiu, tal era o seu aspecto. E agora, fala-se no Ribeiro Couto, com aquela cabeça de prêto que corta o cabelo rente para disfarçar.
⏤ O Ribeiro Couto não é mais candidato, — desculpo. — E o Pereira entra por testamento. É o herdeiro do Luis Carlos.
⏤ Ah, mas não está certo! Precisamos reagir contra o sentimentalismo nas escolhas. Eu, na Academia, bater-me-ei sempre pelos homens de cultura [...].
As presenças de Biu e de Pereira eram incômodas. O primeiro não era bem-vindo no porto, à mesa no Sertão ou na direção do mais antigo jornal do Estado. O segundo não era bem-vindo na “Casa de Machado de Assis” — negro como ele —, nem mesmo em um simples elevador. Tudo por causa da cor da pele e de suas origens humildes.
Hoje é a ausência de Biu e de Pereira da Silva que incomoda: seu apagamento, seu esquecimento. Cumpre a nós sempre lembrá-los, tê-los sempre presentes, como exemplo. Porque, como escreveu o padre Antônio Vieira, “o efeito da memória é levar-nos aos ausentes, para que estejamos com eles, e trazê-los a nós, para que estejam conosco.”