Na esquina da minha memória, moram dois personagens. O primeiro é o Senhor da Chave. Um homem corpulento, de trajes impecáveis, que car...

Apreciando a paisagem

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Na esquina da minha memória, moram dois personagens. O primeiro é o Senhor da Chave. Um homem corpulento, de trajes impecáveis, que carrega no bolso do colete um único objeto: uma chave antiga, pesada, que não abre porta alguma que eu conheça. Ele a exibe não como quem abre, mas como quem pode abrir.
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Seu poder está no tilintar metálico quando caminha, no gesto de tocar o bolso como quem confirma uma arma secreta. Ele fala pouco, mas quando fala, as pessoas se inclinam levemente, como gravetos sob um vento súbito.

Do outro lado da rua, na sombra de uma árvore, está a Menina do Livro. Não é mais criança, mas carrega no rosto a perplexidade perpétua de quem está sempre descobrindo algo. Seus livros são velhos, emprestados, com anotações nas margens. Ela não tem chave alguma, mas sabe coisas: sabe por que o musgo cresce no lado norte dos troncos, conhece a história da rua antes do asfalto, decifra os padrões das nuvens antes da chuva. Seu saber é silencioso, despretensioso, como o zumbido de abelhas numa colmeia distante.

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Por anos, achei que poder e saber eram duas ruas paralelas que nunca se cruzavam. O poder era barulhento, imediato, concreto. O saber era paciente, acumulativo, às vezes invisível. Até o dia em que a chuva forte alagou nosso bairro.

O Senhor da Chave saiu à porta, tilintando seu símbolo, dando ordens. "Fechem as comportas!". As pessoas corriam, mas a água subia, desobediente, sem hierarquias.

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Foi então que a Menina do Livro, de calça encharcada, apontou para o beco dos fundos. "A água não vem só do rio, vem das antigas galerias romanas que passam debaixo do mercado. Estão entupidas com entulho da obra nova. É por ali que ela força a passagem". Ela não deu ordens. Apenas sabia. Sabia da história que os mapas não mostravam, da rede subterrânea que os tubos modernos ignoravam.

O Senhor da Chave parou. O tilintar cessou. Ele olhou para a chave no bolso, depois para a enxurrada, depois para a menina. E pela primeira vez, seu poder parecia pequeno, como uma chave de brinquedo
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diante de uma enchente real.

O que se seguiu foi uma dança curiosa. O poder, desarmado, precisou se inclinar ao saber. E o saber, para se materializar, precisou do poder de convocar pessoas, máquinas, recursos. Juntos—o homem com sua autoridade e a menina com seu conhecimento dos segredos subterrâneos, dirigiram o esforço para o lugar certo. A água recuou. No dia seguinte, o Sol encontrou um bairro diferente.

O Senhor da Chave ainda tilinta ao caminhar, mas agora às vezes para na sombra da árvore. Conversa com a Menina do Livro. Pergunta sobre histórias, sobre os nomes antigos das ruas, sobre por que certas árvores resistem melhor ao vento. Ela, por sua vez, aprendeu algo sobre o peso das decisões, sobre a solidão de quem precisa escolher por muitos, sobre como uma chave simbólica pode, afinal, abrir espaços para que o saber chegue aonde é necessário.

Descobri, então, que poder sem saber é como uma chave sem fechadura: só serve para fazer barulho no bolso. E saber sem poder é como um livro fechado
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a sete chaves: contém mundos, mas não os liberta.

O verdadeiro mistério talvez não esteja em escolher entre um e outro, mas em reconhecer que eles são, no fundo, irmãos separados na infância. O poder anseia pelo saber para não se tornar tirania vazia. O saber anseia pelo poder para não se tornar melancolia estéril.

Agora, quando vejo o Senhor da Chave e a Menina do Livro conversando na esquina, percebo que talvez a maior sabedoria seja saber quando ceder o poder. E o maior poder seja o de reconhecer o próprio desconhecimento.

E carregamos os dois dentro de nós: uma chave imaginária no bolso, e uma biblioteca infinita no silêncio da mente. A vida é um permanente aprender quando tilintar, e quando simplesmente ficar quieto apreciando a paisagem.

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