Há livros que não se leem: escutam-se. Azeite, Senhora Avó!, de Aldo Lopes de Araújo, pertence a essa linhagem rara de obras que falam ...

Azeite, Senhora Avó! - O sagrado doméstico da memória

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Há livros que não se leem: escutam-se. Azeite, Senhora Avó!, de Aldo Lopes de Araújo, pertence a essa linhagem rara de obras que falam baixo, quase em tom de confidência, como se temessem acordar os mortos que nelas habitam. Não há urgência em suas páginas. O tempo ali é outro - o tempo da cozinha antiga, do passo lento, do gesto repetido que não se cansa de existir.

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O título, simples e carregado de afeto, já contém a chave simbólica da obra. O pedido do azeite à avó não é apenas uma frase funcional: é uma invocação. Nomear a avó é chamar o mundo ao eixo. O azeite, substância que unge, que alimenta e que preserva, assume um valor ritual. Estamos diante de uma liturgia doméstica, onde o sagrado não se encontra nos altares oficiais, mas na mesa posta, na panela ao fogo, na palavra dita com respeito.

A narrativa de Aldo Lopes de Araújo nasce da memória, mas não da memória monumental ou épica. É a memória mínima, quase invisível, feita de restos, cheiros, silêncios e repetições. O autor parece compreender que são justamente essas pequenas cenas - desprezadas pela história oficial - que sustentam a arquitetura afetiva da existência. Lembrar, aqui, não é um exercício nostálgico, mas um gesto ético: resgatar o que o tempo insiste em apagar.

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A figura da avó ocupa o centro gravitacional do livro. Não como personagem construída à maneira do romance tradicional, mas como presença simbólica. Ela é menos indivíduo e mais princípio. Representa o saber não escrito, a pedagogia do exemplo, a autoridade que não precisa se impor porque já está inscrita no gesto. A avó é memória em estado humano - um corpo que guarda e transmite.

Há, na escrita, uma clara opção pela escuta. Aldo escreve como quem respeita a palavra herdada. Sua linguagem é limpa, despojada de ornamentos supérfluos, mas profundamente carregada de densidade emocional. Cada frase parece ter sido decantada, como se o autor soubesse que, na literatura da memória, o excesso é uma forma de traição. O texto não quer impressionar; quer permanecer.

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Aldo Lopes de Araújo Acervo pessoal
A oralidade é um dos pilares da obra. Não como recurso folclórico, mas como fundamento estético. A frase caminha com a cadência da fala antiga, aquela que não corre, que se demora porque sabe que será ouvida. O narrador parece escrever como quem conversa com os mortos, ciente de que toda lembrança é também um diálogo com o que não responde mais.

O espaço doméstico - a cozinha, a mesa, os objetos, ganha estatuto simbólico. São territórios da memória. Cada utensílio carrega uma história, cada gesto repete um ensinamento. O cotidiano, longe de ser banal, é apresentado como o verdadeiro lugar da formação humana. Nesse sentido, Azeite, Senhora Avó! opera uma inversão silenciosa: o extraordinário não está nos grandes feitos, mas na persistência do cuidado.

Há ainda um subtexto de resistência. Num mundo acelerado, que descarta o velho, o lento e o inútil, o livro reivindica o direito à demora. Ao valorizar a figura da avó e os rituais domésticos, Aldo Lopes se opõe à lógica do
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esquecimento. Sua escrita sugere que perder a memória dos gestos simples é perder também a capacidade de reconhecer a própria humanidade.

O azeite, ao final, permanece como símbolo maior: aquilo que passa de mão em mão, de geração em geração, sem nunca perder completamente seu sabor. Como a palavra, como o afeto, como a memória. O livro inteiro parece dizer que somos feitos dessas substâncias invisíveis - e que a literatura, quando verdadeira, serve para impedir que elas sequem.

Azeite, Senhora Avó! não pretende ensinar nada, e talvez por isso ensine tanto. É um livro que se oferece como lembrança compartilhada, como gesto de gratidão aos que vieram antes. Uma obra que não grita seu valor, mas o deposita lentamente na consciência do leitor, como quem unge o tempo com palavras.

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Escrevo estas linhas como quem devolve o azeite à mesa antiga, consciente de que a crítica, quando verdadeira, também é um gesto de cuidado. Ler Azeite, Senhora Avó! foi reencontrar uma ética da palavra que resiste ao ruído do presente - aquela que não separa memória de pensamento, afeto de forma, literatura de vida. Num tempo que se orgulha de esquecer, este livro lembra. E lembrar, hoje, é um ato radical. Talvez seja isso que ainda nos caiba como leitores: manter acesa a lâmpada mínima do gesto herdado, para que o mundo não se torne definitivamente árido.

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  1. Parabéns, Irani Medeiros, pelo texto bonito e profundamente sensível. Sua leitura de Azeite, Senhora Avó! honra a obra de Aldo Lopes de Araújo ao revelar, com elegância crítica e afeto, a dimensão ética, simbólica e humana do livro. Um comentário que não apenas analisa, mas cuida, como a própria literatura que celebra. Maria das Neves Franca (Nevita)

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