Hoje, somente hoje, pude refletir sobre o reencontro. Egoísmo meu. Pude sentir o calor em teu abraço e satisfação em nossos apertos de ...

Carta ao Amigo

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Hoje, somente hoje, pude refletir sobre o reencontro. Egoísmo meu. Pude sentir o calor em teu abraço e satisfação em nossos apertos de mãos. Ainda que breve, nosso abraço inspirou sinceridade; percebi que tua memória retornou ao passado. Logo notei que os que te acompanhavam fizeram questão de cercar-te. Fiquei incomodado, enciumado e senti raiva.

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Lembrei-me de nossa infância, de quão parceiros fomos. Tu eras meu melhor amigo. Éramos inseparáveis. O que o tempo e a distância fizeram de nós? Olhei-te da cabeça aos pés e vi o quanto mudaras. Agora, homem formado, muito diferente daquela feição que eu tinha de ti ainda menino; num breve momento, achei-te transtornado, parecendo ter um grito preso na garganta.

Por um instante, salivei o doce sabor de nossa infância, mas as marcas que eu carrego trouxeram-me à memória o amargo da vida. Fiquei curioso em saber tua idade. Tu eras ao menos dois anos mais novo que eu. Acho que não deves passar dos trinta e cinco, mas parecemos estar mais velhos. Não tive coragem de te perguntar, bobeira minha. Tantas foram nossas aventuras. Quantas vezes te defendi e evitei que tu tomasses uma pisa na rua. E aquelas outras que tomamos juntos? Bons tempos, amigo. Passadas mais de duas décadas, frente a frente, parecemos estranhos. Tempos saudosos frente a este instante estranho: fomos irmãos.

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Soube, por intermédio de outros, que tu estarias totalmente entregue às drogas, que tivesses uma parada cardiorrespiratória. Doeu-me não poder fazer nada. Mas o que eu te falaria depois de vinte e cinco anos? Será que eu poderia? Quem sou eu para julgar-te e opinar em tua vida? Sou eu tão limpo a ponto de dizer o que estaria errado contigo?

Após todo esse tempo sem nos vermos, como iria abordar-te com um assunto tão delicado? Preferi a omissão. Covardia minha. Mas o que eu queria mesmo era te ajudar com isso.
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Na hora em que te vi, pensei naquela música do Raul Seixas e seu amigo Pedro: “eu não tenho nada a lhe dizer, mas não me critique como sou; cada um de nós é um universo, Pedro; aonde você vai, eu também vou”. Não sei o quanto disso poderia ser aproveitado na ocasião, mas foi o que eu usei para o meu consolo em nosso reencontro.

Por que teve que ser assim? Se tivéssemos crescido juntos, será que tu me acompanharias ou eu também faria parte desse teu mundo? Isso já não importa mais. Foi acaso do destino. Fizemos tantos planos sobre o que seríamos e para onde iríamos. Éramos invulneráveis; agora, tantos fracassos em nossas vidas. Ansiei ver-te e apanho-me em decepção comigo mesmo. Coisa de gente grande, sabe?

Certa vez li um texto de Drummond. Eu sempre gostei de Carlos porque a semântica de sua escrita não mostrava apenas poesia, mas, de alguma forma, ele me fazia refletir sobre a vida e as consequências de nossas escolhas.

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Naquele texto, o poeta me falava sobre a palavra “inexorável”. Isso foi ainda em nossos tempos de criança, e eu não sabia o significado nominal daquela adjetivação, tampouco a extensão e os contornos que aquele termo poderia assumir. Conceitos, preceitos e valores. Rebeldia, anarquia e irresponsabilidade. Juventude transviada. Futuro. Vida adulta.

Hoje, meu amigo, posso comprovar quão inexoráveis foram os nossos caminhos. Inexorável é descobrir que não temos o controle da vida e vivemos sob o jugo de muitas outras circunstâncias, adversas ao nosso querer. Inexorável é deixar de ser criança.

Samuel Moraes

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