Fosse um batalhão, eu teria, ali, a patente mais rasa, pois a ordem me veio daqueles comensais quase em uníssono: “Você fez o do Natal e vai fazer o bacalhau do Ano Novo”. E pensar que mal havíamos terminado a ceia natalina, na casa do filho mais velho. Sempre assim: cada um levaria à mesa algo previamente combinado a fim de evitar repetições. Os Natais, sem dúvida, exigem a reunião familiar e a participação coletiva nos preparos das carnes, do arroz, da farofa, do salpicão, das saladas e sobremesas, de preferência, com pavês, ou tortas. Isso fortalece a confraternização e,
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individualmente, é bom para cada espírito e cada bolso.
Sobrou-me o encargo do dia 31. Isso e a lembrança da velha expressão popular relacionada às galinhas e à mesa dos mais pobres: “Quando um pobre come galinha, um dos dois está doente”, dizia-se nos meus tempos de menino. Contei isso aos três filhos, às duas noras e aos do ramo da primeira delas convidados à mesma festa. Afinal, Natal também é tempo de histórias.
Pois bem, nos anos de 1950, ou 60, de onde muito de nós advimos, pobre comia mesmo era bacalhau. E não se tratava apenas do peixe seco de hoje em dia, o tal bacalhau nacional vendido na maior parte dos supermercados ao custo dos olhos da cara. Podia ser, também, o norueguês que o Brasil inteiro e o resto do mundo importavam, naqueles dias, a preço de banana e em barricas de madeira.
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Eu sei, eu sei: bacalhau não é uma espécie única de peixe, mas o nome dado aos que passem por um processo de salga e secagem para conservação. Refiro-me, aqui, entretanto, aos da família "Gadidae" como "Gadus morhua" e "Gadus macrocephalus", de sabor intenso e textura única.
Lembro da mercearia do meu tio e do balcão em cima do qual mantas grossas desses peixes se amontoavam, salgadíssimas, umas sobre as outras. O sal, por si só, já os cozinhava. Podia-se tirar lascas com os dedos e
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comê-las, caso se quisesse.
Gente mais abastada torcia os narizes para aquilo, a não ser por ocasião da Semana Santa quando a fé católica obrigava todo mundo ao consumo de peixes secos, ou frescos. Comer carne, nessas ocasiões, significaria desrespeitar o padecimento de Cristo.
Mas peixes frescos de água salgada, naquela época tão desprovida de geladeiras domésticas e frigoríficos comerciais, era privilégio das cidades litorâneas com o mar à porta. Os moradores do interior contentavam-se, então, com as traíras e os curimatãs mirrados de água doce e, à falta disso, com o bacalhau que, amiudamente, atravessava mares nos porões de navios.
Sabem aqueles pares indivisíveis como Romeu e Julieta, Cleópatra e Marco Antonio, Bonnie e Clyde? Pois bem, já era assim, de igual modo, com bacalhau e leite de coco. Onde um estivesse estaria o outro. Por falar nisso, o coco era presença inevitável em cada mesa por ocasião das Semanas Santas.
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Temperava tudo. Não escapava dele sequer o feijão nosso de cada dia.
E eis que não consigo falar de bacalhau sem lembrar de uma das muitas histórias de José Lins do Rego, o paraibano traduzido em mais de dez idiomas.
Em seu “Menino de Engenho”, ele reconta o episódio do qual teve conhecimento nos saraus da Casa Grande do Corredor, onde nasceu. Narra, assim, a queixa do grupo de carpinteiros contratados por um dono de engenho bem sovina para reparos na casa de moenda. Trabalho demorado, de semanas seguidas com bacalhau todo dia na hora do almoço e da janta. Os coitados não mais aguentavam comer aquilo. Não havia água capaz de lhes aplacar a sede. Até que as reclamações chegaram aos ouvidos do dono da casa.
Mas vamos ao nosso romancista e a seu modo saboroso de falar de coisas como esta. Com a palavra José Lins:
José Lins do Rego (1901—1957), escritor paraibano, nascido em Pilar.
Eu passava o dia inteiro rondando os oficiais nas suas confidências. Contavam a história de uns carpinas num engenho do Brejo.
⏤ O senhor de engenho só mandava para eles bacalhau, na janta e no almoço. Passavam o dia inteiro bebendo água com a boca seca. Um dia um deles disse para o negro que não gostava de bacalhau, que não aguentava mais aquilo. No outro dia o tabuleiro com a comida chegou: era peru. E peru de tarde. E a semana toda, peru. Num domingo, o mestre saiu para dar umas voltas nos arredores. Viu um negro com uma porção de urubus nas costas:
⏤ O que é isto, moleque?
⏤ É peru pros carpinas.
Os oficiais anoiteceram e não amanheceram na propriedade. E rebentou ferida pelo corpo deles. Estiveram para morrer um tempão.
Menino de Engenho. Rio de Janeiro, José Olympio.
“Galinha, ovos, queijos e leite”. Que pobre de Jó não morria de medo dessa prescrição médica contra a anemia e a fraqueza? Suportava, quando muito, a despesa com a canja oferecida, em período de recuperação, à mulher saída mais morta do que viva de um parto difícil.
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Mas são tempos idos, minha gente. O mundo e suas voltas modificaram tudo. Décadas e décadas seguidas de pesca predatória confeririam status ao bacalhau, hoje coisa para os mais abastados, sobretudo, quando importado e, então, vinculado à flutuação do dólar.
Enquanto isso, o transcurso dos anos e práticas novas reverteram a situação das galinhas que agora proliferam em qualquer terreiro e, mais do que isso, em criadouros gigantescos para o abate, a embalagem e a venda em toda e qualquer esquina. A distinta clientela, conforme o bolso, pode hoje adquiri-las por inteiro, ou em pedaços que incluem coxas e sobrecoxas, peito, fígado, pés, coração e pescoço.
Ainda bem que, atualmente, nenhum médico receita bacalhau como fonte corriqueira de proteína, minerais, ômega 3 nem de aminoácidos essenciais à musculatura e à saúde em geral. Quanto a mim, entendo que festa é festa. E, assim sendo, eu topo. Cuidarei de preparar com toda a minha disposição e todo o meu carinho a bacalhoada.