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Existem obras literárias que formam com a crítica e a história espécie de conjunto a que recorre o leitor, em seu esforço interpretativo, co...


Existem obras literárias que formam com a crítica e a história espécie de conjunto a que recorre o leitor, em seu esforço interpretativo, com férteis e valiosos resultados. Esse conjunto se constitui, por assim dizer, em etapas interdependentes e harmoniosas, de modo que as tantas possibilidades ou estágios de leitura complementam e aprofundam o entendimento da realidade da ficção.

Assim, na avaliação da crítica, a obra se desvela; enquanto a palavra da história, fundamentando-se em conclusões críticas reveladoras, recusa a exclusividade ou supremacia dos fatos externos. Não é que inexistam conflitos neste percurso. Pelo contrário. Eles cumprem aí seu papel, garantindo os confrontos, a pluralidade que somente enriquece o ângulo de visão. Assegurado o julgamento, na amplitude da perspectiva. Iluminados o texto e o leitor.



Na perspectiva de Goldmann, isto é, considerando a relação entre o romance moderno e a totalidade social, Alfredo Bosi propõe quatro tendências pelas quais é possível distribuir o romance brasileiro moderno: romance de tensão mínima, de tensão crítica, de tensão interiorizada e de tensão transfigurada. O segundo tipo define-se como aquele “em que a tensão atingiu ao nível da crítica, os fatos assumem significação menos "ingênua" e servem para revelar as graves lesões que a vida em sociedade produz na pessoa humana: logram por isso alcançar uma densidade moral e uma verdade histórica muito mais profunda. Há menor proliferação de tipos secundários e pitorescos: as figuras são tratadas em seu nexo dinâmico com a paisagem e a realidade sócio-econômica (Vidas secas, São Bernardo, de Graciliano Ramos), e é dessa relação que nasce o enredo.



A Bagaceira - “um grito de justiça!”

Considerando-se os elementos integrantes da estrutura narrativa, torna-se inadmissível identificar com a seca a temática do livro de José Américo de Almeida. Quando isto acontece, é porque fica ignorado o outro lado da antítese: o meio físico e social que a bagaceira personifica. Em destaque a partir do título. Comprometendo-se com esta mutilação o entendimento da própria ideologia do romance.



Desmistificando a seca, o romance paraibano encontra sua força de denúncia na ironia do contraste estabelecido entre a "natureza privilegiada" do brejo e a degradação humana. Vinculando-se o estado degradado à estrutura moral e sócio-econômica que a bagaceira personifica. Nesta perspectiva, a funcionalidade da paisagem não deixa margem a que se confunda sua exuberância com o descritivismo de efeito meramente pitoresco. Pois, além de tornar mais chocante a miséria humana, "a verdura perene" desmascara a face desértica forjada como identificação do Nordeste, em decorrência da ação dos "exploradores das secas". Em tais circunstâncias, o paisagismo de A bagaceira se faz intencional recurso expressivo no sentido de superar a falsa imagem dos problemas da região, "cujas reais possibilidades de desenvolvimento passaram a ser subestimadas, falando-se na inevitabilidade de seu progressivo abandono".

(Excertos de Re-leitura de A Bagaceira)



"Não é o artista quem inventa o feio, o chocante. A dor da vida é que é assim, quando não idealizada. Se lembrarmos bem, não foi propri...


"Não é o artista quem inventa o feio, o chocante. A dor da vida é que é assim, quando não idealizada. Se lembrarmos bem, não foi propriamente a figura humana que os olhos do mundo viram pisar no deserto da lua. Mas um pacote disforme, inflado, trôpego e desengonçado, no qual seria impossível identificar os traços de Gagarin ou de Armstrong. E ainda havia a pergunta: Para quê? Pois a corrida espacial, consumindo cifras incalculáveis, sempre recebeu críticas, pelo sacrifício que impunha aos deserdados habitantes da terra."



Não posso deixar de imaginar a reação do Mestre Juarez da Gama Batista, se pudesse presenciar minha ansiedade - timidez mesmo - no cuidado extremo de encontrar o ponto de equilíbrio para o trato com a sua produção intelectual. Um sorriso suave, complacente, os olhos quase fechados, a cabeça levemente inclinada para trás - o seu jeito afetuoso de subestimar minhas preocupações e inseguranças. Depois, as palavras de encorajamento, refletindo sempre uma expectativa maior que as minhas possibilidades. Tantos anos passados, e ainda me apóio na força desta lembrança.



É isto a festa de Centenário: um desafio à morte absoluta. A presunção de que, sem o lugar à mesa, mesmo assim, é possível a consubstanciação de uma outra forma de presença. Que não responde à premência da saudade e dos afetos. Mas é pesada substância que se impõe ao tempo, na dimensão da memória e da palavra. Uma festa cuja realização traz sempre o caráter de excepcionalidade. Pois, apenas o tempo não a justifica, nem tampouco a morte. Somente a vida.



(fragmentos sobre Zé Lins...)

"Quem não identifica, na realidade contemporânea, os milhões de “moleques Ricardos” excedentes, marginalizados pela revolução tecnológica e pela ideologia da globalização? Milhões de Ricardos para quem sobrou a última classe e nenhum destino."



"Usina coloca em discussão os aspectos da ecologia que constituem, hoje, preocupações mundiais. A devastação dos ecossistemas, da biodiversidade, a poluição das águas e a degradação dos homens. E em sua percepção o que sobressai é a visão de conjunto, a apreensão da problemática no vértice de suas implicações. Não se trata de salvar apenas as baleias ou o mico-leão-dourado ou as tartarugas marinhas.

A obra de Zelins antecipa a consciência crítica de hoje que preconiza uma articulação ético-política entre os três registros ecológicos: o do meio ambiente, o das relações sociais e o da subjetividade."



"Uma característica que diferencia a construção ficcional de José Lins do Rego é a densidade dramática que ele imprime aos seus personagens, sem distinção da classe social que representem. E um aspecto do tratamento dispensado à cultura popular, fonte original de sua criação, que não se deforma na superficialidade da abordagem folclórica. Elimina não apenas o distanciamento entre a cultura erudita e a popular mas, sobretudo, a hierarquia entre essas duas formas do saber."

(Excertos)


Nem sempre as homenagens referendam um merecimento. Com muita frequência, a motivação para que elas se efetivem é tão exterior, tão circun...



Nem sempre as homenagens referendam um merecimento. Com muita frequência, a motivação para que elas se efetivem é tão exterior, tão circunstancial, que fica difícil estabelecer o nexo entre a distinção e a história de quem a recebe. Assim, algumas homenagens tornam-se gestos desfigurados pela impossibilidade do convencimento e da emoção.



Quando o tema são homens de letras, existe um lugar-comum que parece não ser possível evitar. A constatação de um largo descompasso entre o valor que eles representam para a sociedade e os gestos que exprimem a consciência e o reconhecimento desse valor.

O grande silêncio da Paraíba em relação à memória do professor Juarez da Gama Batista é mais um exemplo a confirmar esta generalidade. Tem a mesma natureza do abandono a que está exposto Augusto dos Anjos, esculpido em bronze, mas afogado no lixo, atropelado pelos camelôs da Lagoa. São aspectos ostensivos do permanente descaso pelo essencial, a refletir a inversão das hierarquias verdadeiras. O velho "desconserto do mundo".



De que outra maneira é possível compreender que instituições, cujos objetivos incluem a preservação da memória cultural, sejam completamente omissas em relação a nomes fundadores de sua própria História, senão admitindo a predominância de uma ordem valorativa equivocada?



Ao estilo e à erudição é preciso acrescentar ainda a ousadia, característica indispensável a todo criador, atitude sem a qual deixariam de existir o novo e o original.



Odilon Ribeiro Coutinho dedicava-se habitualmente a elaboração de textos que eram trabalhados com rigoroso perfeccionismo, em busca da sintaxe, da imagem, do ritmo, da palavra cabível, enfim, dos recursos de expressão que correspondessem ao apurado conceito de forma, que orientava sua consciência crítica. Sem nenhuma dúvida, é de um escritor que estou falando. Do verdadeiro escritor, "que põe o pulsar e o calor de suas veias nas palavras com que fia a túnica diáfana e inconsútil de seu pensamento; e instila, no verbo que se faz carne literária, o seu próprio sangue e as emoções, delírios e fantasias que jorram das fontes interiores de sua vida."

(excertos de "Um certo modo de ler")


“Manter a mulher confinada aos limites do lar fazia parte deste processo ideológico de submissão que também imprimia à palavra liberdade um...


“Manter a mulher confinada aos limites do lar fazia parte deste processo ideológico de submissão que também imprimia à palavra liberdade uma conotação depreciativa. Referindo-se ao ser feminino, liberdade sempre se confundiu, propositadamente, com devassidão ou libertinagem. Até bem pouco tempo. E a ameaça da mancha moral, mais devastadora que a lepra, foi a grande força repressiva na manutenção da mulher submissa, dependente, sem vez e sem voz.”

“Uma sociedade que não enxerga a educação como valor essencial, também é insensível à preservação da memória, indiferente à necessidade de transmissão da cultura. Por mais duro que seja admitir, não é outra a realidade.”

“A inclusão da crônica entre as formas ou espécies literárias não comporta mais discussão. Mesmo que a teoria e a crítica tivessem silenciado a respeito deste gênero ou pós-gênero literário, como classificou pioneiramente o professor Eduardo Portella, bastaria a intensidade da produção para que a crônica se impusesse como fato consumado. Diante de Rubem Braga, de Rachel de Queiroz, de Carlos Drummond de Andrade, como negar identidade literária à expressão que integra, na conformação da narrativa, a densidade poética?”

“São tantas as afinidades entre as Memórias e a ficção romanesca, que a aproximação entre as duas espécies narrativas se impõe, naturalmente. Encontrando-se algo de romance em toda memória e muito de memória em quase todo romance.”

“O amor à terra natal é uma motivação que se afirma em muitos projetos humanos, mesmo sendo este amor discutível em sua origem, polêmico em sua razão de ser. A ele costumam ser creditadas realizações de naturezas as mais diversas, transparecendo a sua influência, de modo mais ostensivo, no campo da atividade intelectual.”

“O tempo que aniquila é também acumulação e memória. Duração da consciência, como, queria Bergson . Experiência vivida que se insere num infinito continuo de durações, segundo a compreensão da fenomenologia de Husserl. Perspectiva essa que permite o dimensionamento da visão de imortalidade, em termos que corrigem não apenas a distorção da utopia, mas também o desvio do culto à individualidade.”

(Excertos de "Um certo modo de ler")


O telefone iluminando a manhã. E a pergunta contida, alterando levemente a voz quase imperceptível, mas de dispensável identificação. — ...



O telefone iluminando a manhã. E a pergunta contida, alterando levemente a voz quase imperceptível, mas de dispensável identificação.

— Leste os jornais de hoje?

Um atraso na entrega. Ainda não lera. Que traziam de especial?

— É Sindulfo. Escreveu sobre minha besteirinha de ontem, dizendo umas coisas. Não sei. Estou sem jeito.

Como eu insistisse, pude escutar, em seguida, as palavras entusiásticas às quais não se ajustava o tom de voz. A voz traía a emoção da surpresa. Do espanto. Um homem encurralado pelo reconhecimento.

Habituado a fazer transitar pelos seus registros uma multidão, a Paraíba inteira, o cronista experimenta inesperadamente outra situação. Agora, ele é personagem e matéria para o companheiro de ofício que, extasiado ante a qualidade de sua criação, com ele se regozija.

Gonzaga sabe de seus inumeráveis leitores. De quantos o esperam para o encontro marcado de todas as manhãs. Mas este traz de especial a responsabilidade da permanência. o peso da leitura escrita que analisa e avalia. Embora apaixonada a expressão, não está ali o elogio gratuito, vazio. O homem culto, de sensibilidade, isenta-se de "arrumar palavras convencionais na conformidade das regras". Aprendeu com o poeta (e o mar, agitado ou sereno, também lhe diz) que apenas “navegar é preciso". Por isso, entregou-se à correnteza. Deixou-se levar. Mas não, sem antes estabelecer o rumo e a bandeira da descoberta.

No alto do mastro, a inscrição definitiva: Um Novo Trevisan. E o companheiro de geração exposto, no processo comparativo que a translação implica.

Pela síntese intuitiva e, reservando-se o prazer da alegria, Sindulfo dispensou-se do detalhamento analítico. Das formulações teóricas — necessárias — porém, muitas vezes, bloqueadoras da sensibilidade e da comunicação. Preferiu a confiança do gesto espontâneo, para surpreender o menino acanhado em suas artes.

Não falou de adesão à síntese renovadora, do mesmo tom pungente, da obsessão pelo essencial. Não referiu a identidade de tema, de situação ou de personagem. Nem mesmo, a preocupação com a fragilidade e desamparo do homem pelas ruas da cidade. Não houve tempo.

Pois, mal começou a ler, já estava no meio da rua "sem um pingo de sangue". Dividindo com seu Luís e a mulher gorda o mesmo agoniado espaço e a pesada expectativa. Conduzido pela movimentação do diálogo, pela tipificação exemplar, pela certeza do verossímil. Completamente envolvido pela urdidura do desfecho (de ouro?) que valoriza e aprofunda o acento trágico da narrativa, deslocando para seu centro o inesperado e silencioso personagem. Desarticulando a perspectiva estratificada do perigo.

Assim, um meninote vindo não se sabe de onde, com apenas um gesto e dizendo quase nada, toma conta de tudo. Resolve, com um tempo de verbo, as perguntas que ficaram no ar. E abre com o seu silêncio a voragem, o precipício.

Lição de mestre a indicar que a morte em si não constitui o verdadeiro problema. Mas a fragilidade do desespero ou a gravidade da aceitação.

Que importa o convencional limite entre as formas narrativas ou sua discutível hierarquia?

Diante deste meninote, que o Mago Gonzaga faz aparecer e crescer com suas encantadas poções de palavras, é outra a questão que se coloca. A de sua inflexível vocação de narrador, transcendendo o limite jornalístico da crônica que fosse apenas relato, registro do episódico.

É sempre assim, quando encontra um motivo e o tempo está a seu favor. Senhor das palavras em suas "mil faces secretas". Reinventando a realidade, no reino da linguagem. Salvando, na forma ou na força do dizer, a substância humana que o cotidiano reduz e amesquinha.

Este Momento na Rua não será, portanto, uma realização isolada no universo já consolidado do cronista da terra. Permito-me associá-lo a outros em que o lirismo trágico domina por completo a narrativa. Conto ou crônica, nesta direção inexiste a possibilidade de falha para o escritor. Sobretudo, se a matéria provém de uma daquelas criaturinhas deserdadas, a exemplo do que ocorre em Printed e Só fez olhar. Como em várias outras, onde Nino se vai fracionando ou multiplicando na expressão densa e comovida que é, a um só tempo, sentimento e denúncia. Consciência e recusa da desordenada ordem social. Realização lírica na concepção teórica mais atual.

Gonzaga já não pode conter esses meninos — personagens que lhe saltam dos dedos para viver um instante de inocência, eternizado no mais pungente desamparo. Será esta a vertente mais significativa de sua obra, longe ainda de ser esgotada. Mas é provável que o autor, diversificando tanto seus temas, ainda não se tenha apercebido de quanto pode esta infância em suas mãos.

(Jornal O Norte, 4/5/87)


O centenário é da morte de Augusto dos Anjos, mas o tema é a vida. O tema é "o Futuro em diferentes / florestas, vales, selvas, glebas,...


O centenário é da morte de Augusto dos Anjos, mas o tema é a vida. O tema é "o Futuro em diferentes / florestas, vales, selvas, glebas, trilhos, / Na multiplicidade" da poesia, semente da árvore arrancada, antes que sua primeira safra pudesse ser colhida. Poesia-semente em que se cumpre a antevisão do eu, na certeza com que se irmana ao Tamarindo: "Depois da morte, inda teremos filhos!".

Fugindo à tradição editorial, que se fixou no Eu e outras poesias, a Biblioteca Mário de Andrade e a Edições Narval preferiram o Eu original, seleção e edição do autor, lançado no Rio de Janeiro em 1912. Essa escolha confere um significado bem particular à publicação e à homenagem que representa. Fixando-se na primeira e única edição contemporânea do poeta, traz Augusto por ele mesmo. Redivivo.

Numa apropriação e livre tradução dos versos de Walt Whitman, pode-se repetir que "este não é apenas um livro. Quem toca nele, toca no homem". Pois a configuração do Eu condensa o sentido maior da existência de Augusto, sendo de toda propriedade afirmar que o poeta se impôs o sacrifício extremo para salvar do estreito horizonte provinciano sua criação original e antecipadora de concepções modernas. Tinha a exata consciência de que, sem chegar ao eixo onde se concentrava o prestígio da visibilidade cultural do país, seus poemas dificilmente conquistariam a repercussão a que estavam predestinados.

Sem condições financeiras favoráveis, sem renda certa que lhe garantisse a subsistência, lançou-se ao desconhecido para uma luta obstinada. Deixou a Paraíba e foi morar no Rio de Janeiro, determinado a sobreviver com a precária remuneração obtida pelas aulas particulares que ministrava. Em "Notas biográficas" para a trigésima edição do Eu, Francisco de Assis Barbosa registra que o poeta "residiu em dez casas de diferentes bairros, quase sempre em quartos de pensão", durante os anos de permanência no Rio, entre outubro de 1910 e julho de 1914.

O escritor José Oiticica, vindo de Minas, compartilhou com Augusto dos Anjos essa fase que classificou de "horrível", de "penúria". E revela: "o que mais o amargurava era a injustiça social em premiar os ruins, dourar as falcatruas, entronar os endinheirados, iludir os honestos, os sonhadores, os retos de entendimento e de coração. Essa revolta íntima o levava a descrer do mundo, a ver em tudo podridão física e moral".

Parece natural a presunção de que o organismo frágil se debilitou nesse processo de desgaste físico e emocional. De tal forma que Augusto, já instalado em Leopoldina como diretor do grupo escolar Ribeiro Junqueira, não resistiu a uma pneumonia, deixando a vida com apenas trinta anos, em 12 de novembro de 1914.

Nunca mais voltou à Paraíba. Nem mesmo os seus restos mortais. E um documento firmado em cartório pelos filhos Guilherme e Glória "Proíbe que isso possa acontecer". Os filhos ratificam a decisão altiva do poeta ante a mediocridade burocrática que negou ao erudito professor Augusto dos Anjos, uma licença para viajar ao Rio, onde trataria da publicação do Eu.

A morte do poeta paraibano teve pouca repercussão na imprensa. Destaque para o artigo de José Américo de Almeida, no trigésimo dia, e para o ensaio de Antônio Torres, no qual se insere o tocante perfil que define Augusto como um idealista "na mais nobre, na mais vibrante e, digamos, na mais dramática acepção do vocábulo".

A crítica, desorientada pelo choque, pelo desconhecido que a poesia do Eu representava, oscilou inicialmente entre a aceitação e a recusa dos recursos de expressão que caracterizavam a criação lírica sem precedentes. De modo que o livro pelo qual o poeta sacrificou a própria vida permaneceu algum tempo numa espécie de limbo, incompreendido.

Nem os modernistas ensimesmados alcançaram a poesia predeterminada "Para cantar de preferência o horrível". Do observatório em que estavam situados, não perceberam que, em 1912, comparada a "um paralelepípedo quebrado":

a lua de augusto
é uma lua nova

uma lua cheia
de modernidade

a lua de augusto
é uma pedrada

em olavo brás martins dos guimarães bilac

Em 1920, o jornalista paraibano Órris Soares, contemporâneo e amigo de Augusto, toma a iniciativa de organizar e prefaciar a segunda edição do Eu. Acrescentou novos poemas, selecionados, sobretudo, entre os escritos após a primeira edição, e colocou o subtítulo (poesias completas). Sem dúvida, o mais marcante de Órris Soares em relação à poesia de Augusto foi o gesto. A iniciativa do publicá-la, quando o poeta já não existia e parecia tão esquecido quanto seu livro único. Implícita, nesse gesto, a capacidade de compreender, antecipadamente, que, sem se filiar a nenhuma escola, o Eu, em "seu individualíssimo sentir", representava a "riqueza e glória das letras brasileiras". É o que se lê no prefácio histórico, entre outras assertivas acolhidas pela crítica contemporânea.

A ética da "obrigação intelectual da verdade" motivou essa publição póstuma, "como uma sagrada dívida" que Órris se impôs. Ele era motivado por valores dessa ordem, segundo o testemunho de Carlos Drummond de Andrade que considerava o amigo Órris um dos homens mais livres, mais conscientes e mais fiéis à inteligência. Numa perspectiva semelhante, o grande Houaiss também reconheceu a suma importância da segunda edição feita por amor e devoção, como um instante decisivo na história do Eu.

Essa publicação paraibana despertou o interesse da Livraria Castilho, responsável pela terceira edição, em 1928, com o titulo Eu e outras poesias, que se tornou definitivo. Foi tal o fenômeno da recepção que os jornais da época chegaram a registrar três mil volumes escoados cm quinze dias e 5.500 vendidos em menos de dois meses. A partir de então o sucesso de público não abandonaria jamais a poesia de Augusto dos Anjos. Equiparando-se o poeta aos mais populares do Brasil, recitado de cor pelos admiradores dos mais diferentes níveis culturais. Assim, as edições se sucederam através de selos consagrados: Livraria Castilho, Bedeschi, Livraria São José, Companhia Editora Nacional, José Olympio, Ática, Paz e Terra, Civilização Brasileira, Nova Aguilar, Bertrand Brasil, Martins Fontes, etc.

O grande número de publicações e a pluralidade de editoras que as representam corresponderam no crescente interesse do público pela poesia de Augusto dos Anjos. Mas esse fenômeno, que tem na recepção um dado positivo, também deu margem a que muitas gralhas ou alterações gráficas passassem a interferir nos originais do poeta. Somente a partir da 29ª edição, comemorativa do cinquentenário de lançamento, o texto do Eu começa a receber a atenção especializada. O filósofo Antonio Houaiss e Francisco de Assis Barbosa foram os pioneiros que se dedicaram à correção dos erros acumulados em meio século de publicações. No entanto, foi a trigésima edição, com a nota editorial de Houaiss, que atingiu a confiabilidade reclamada para o texto poético de Augusto dos Anjos.

Em 1977, Zeni Campos Reis acrescenta, com absoluta segurança, novo cuidado ao estabelecimento do texto. Publica Augusto dos Anjos: poesia e prosa, ampliando, com sua pesquisa exaustiva e competente, informações sobre a obra do poeta do Eu, tornando-se fonte de consulta indispensável para os estudiosos.

Enfim, em 1994, com a publicação da Obra completa de Augusto dos Anjos, pela Nova Aguilar, temos a mais ampliada edição, depurada dos antigos e persistentes erros. Organização, fixação do texto e notas, sob o critério de Alexei Bueno, impõem às próximas iniciativas uma responsabilidade maior em relação à fidedignidade do texto de Augusto e à coerência das leituras críticas.

Diante do Eu ,a morte se desfigura, perde sua força dominante. Resume-se a um episódio, um traço biográfico, uma data. Nada mais. E já não sabemos dizer se é homem ou mito este singularíssimo poeta que, tendo testemunhado menos de duas décadas do século XX, foi por ele consagrado como criador de uma linguagem, de um ritmo, de uma concepção poética que surpreendeu a Literatura Brasileira e a ela se acrescentou como renovação e sinalização de outras formas de sentir, compreender e dizer.

Se, do ponto de vista do processo mimético, é verdade, como entende Eduardo Portella, que o poeta "só é poeta quando converte imaginariamente o horizonte, quanto morre na vida da obra'', também não é menos verdadeiro que, do ponto de vista da continuidade histórica, o poeta se perpetua na obra, como o criador na criatura, como o homem particular no universal. O poeta continua na obra, não no equivocado entendimento de que esta seja a sua biografia em versos, ou a mera confissão de particularidades sentimentais. Continua porque na obra está a sua compreensão do mundo, a sua forma escolhida de participação no projeto humano, a complexidade do seu tempo transubstanciada na linguagem que corporifica o gesto inaugural da expressão lírica.

A presente edição ergue um monumento ao poeta, tornando acessível o livro de Augusto no formato que se fez uma preciosidade bibliográfica. Um monumento vivo, o Eu, na plenitude do reconhecimento. Constituindo um fenômeno editorial sem termos de comparação. Mantendo uma popularidade que levou o autor a ser eleito o paraibano do século XX, por uma diversidade de admiradores que é "transcendentalíssimo mistério". Acumulando em sua trajetória uma elevada compreensão crítica que destaca a obra de Augusto dos Anjos "como a mais patética indagação já feita, na poesia brasileira, acerca da existência do mundo e do sentido da vida humana". Com a ressalva de que "jamais, antes dele, essa indagação se fizera em tal nível de urgência existencial e de expressão estética''. É a conclusão do poeta Ferreira Gullar, em sua leitura plena de descobertas e elucidações.

"Salvo pelo povo" e consagrado pela crítica, há muito o lugar do poeta do Eu está definido com propriedade no quadro da Literatura Brasileira. O mestre Eduardo Portella explicita que:

"[Augusto] se localiza numa peculiar encruzilhada do pós e do pré, entre elaborações retardatariamente românticas, parnasianas, simbolistas, a essa altura debilitadas, e esboços ou manifestações discursivos, prenúncios do modernismo. O Eu se projeta como avatar de radicalização da modernidade. Ele desidealizou o conceito do gosto para dessacralizar a linguagem e, com isto, verbalizar despreconceituosamente a experiência humana. A precoce, e não raro prematura, desestetização corresponde ao programa de descarte do sublime".

O ensaio do professor João Adolfo Hansen, escrito especialmente para esta edição do Eu, integra-se à tradição da crítica que ilumina o texto do poeta. Retoma importantes aspectos sobre os quais fixa precisos fundamentos. Chega a elencar as múltiplos razões dos estudiosos que o antecederam e reconheceram a poesia ou "a boa poesia", no realismo mágico da linguagem criada por Augusto.

Um estudo erudito e atual que valoriza de modo superlativo da homenagem ao poeta do Eu. A Leitura do "Monólogo de uma sombra", como "a profissão de fé poético-científica do autor", é original e prepara o leitor para absorver a tradução da teoria do conhecimento implícita na obra de Augusto dos Anjos, integrada poeticamente pela representação metafórica.

A marca de conciliar o gosto popular e o erudito não se apagará da poesia de Augusto. Ela continuará encantando o povo e desafiando os críticos. O poeta já é febre entre os internautas, com milhares de vídeos e páginas de acesso. Enquanto a crítica universitária, à luz de diversos postulados teóricos, projeta cada vez mais a sombra incandescente do Eu. Vale registrar a tese O evangelho da podridão, em que o professor Chico Viana analisa a tematização da culpa como elemento estruturante da poesia de Augusto. E mais uma hipótese se acrescenta como justificativa para a popularidade do Eu. Além do estranhamento e da estrepitosa musicalidade da linguagem, a possibilidade da catarse para a civilização da culpa.

A construção fantástica de palavras misteriosas, estranhas ou íntimas demais, que transita sem limite entre a realidade, a fantasia, o sonho, a loucura e os tempos imemoriais, expandindo-se em ásperos sons, agônicos e dissonantes fascina e haverá de atrair sempre um público de características culturais extremamente diversificadas.

É o homem universal vencendo o homem particular, cumprindo-se o credo existencial do poeta.



(O Blog Carlos Cronista tem a honra de publicar o texto, inédito na Paraíba: "Augusto para todos os séculos", que prefaciou a homenagem da Biblioteca Mário de Andrade (foto da ilustração) no Centenário da morte do poeta Augusto dos Anjos, de autoria da Professora Ângela Bezerra de Castro)