O centenário é da morte de Augusto dos Anjos, mas o tema é a vida. O tema é "o Futuro em diferentes / florestas, vales, selvas, glebas,...

Augusto para todos os séculos


O centenário é da morte de Augusto dos Anjos, mas o tema é a vida. O tema é "o Futuro em diferentes / florestas, vales, selvas, glebas, trilhos, / Na multiplicidade" da poesia, semente da árvore arrancada, antes que sua primeira safra pudesse ser colhida. Poesia-semente em que se cumpre a antevisão do eu, na certeza com que se irmana ao Tamarindo: "Depois da morte, inda teremos filhos!".

Fugindo à tradição editorial, que se fixou no Eu e outras poesias, a Biblioteca Mário de Andrade e a Edições Narval preferiram o Eu original, seleção e edição do autor, lançado no Rio de Janeiro em 1912. Essa escolha confere um significado bem particular à publicação e à homenagem que representa. Fixando-se na primeira e única edição contemporânea do poeta, traz Augusto por ele mesmo. Redivivo.

Numa apropriação e livre tradução dos versos de Walt Whitman, pode-se repetir que "este não é apenas um livro. Quem toca nele, toca no homem". Pois a configuração do Eu condensa o sentido maior da existência de Augusto, sendo de toda propriedade afirmar que o poeta se impôs o sacrifício extremo para salvar do estreito horizonte provinciano sua criação original e antecipadora de concepções modernas. Tinha a exata consciência de que, sem chegar ao eixo onde se concentrava o prestígio da visibilidade cultural do país, seus poemas dificilmente conquistariam a repercussão a que estavam predestinados.

Sem condições financeiras favoráveis, sem renda certa que lhe garantisse a subsistência, lançou-se ao desconhecido para uma luta obstinada. Deixou a Paraíba e foi morar no Rio de Janeiro, determinado a sobreviver com a precária remuneração obtida pelas aulas particulares que ministrava. Em "Notas biográficas" para a trigésima edição do Eu, Francisco de Assis Barbosa registra que o poeta "residiu em dez casas de diferentes bairros, quase sempre em quartos de pensão", durante os anos de permanência no Rio, entre outubro de 1910 e julho de 1914.

O escritor José Oiticica, vindo de Minas, compartilhou com Augusto dos Anjos essa fase que classificou de "horrível", de "penúria". E revela: "o que mais o amargurava era a injustiça social em premiar os ruins, dourar as falcatruas, entronar os endinheirados, iludir os honestos, os sonhadores, os retos de entendimento e de coração. Essa revolta íntima o levava a descrer do mundo, a ver em tudo podridão física e moral".

Parece natural a presunção de que o organismo frágil se debilitou nesse processo de desgaste físico e emocional. De tal forma que Augusto, já instalado em Leopoldina como diretor do grupo escolar Ribeiro Junqueira, não resistiu a uma pneumonia, deixando a vida com apenas trinta anos, em 12 de novembro de 1914.

Nunca mais voltou à Paraíba. Nem mesmo os seus restos mortais. E um documento firmado em cartório pelos filhos Guilherme e Glória "Proíbe que isso possa acontecer". Os filhos ratificam a decisão altiva do poeta ante a mediocridade burocrática que negou ao erudito professor Augusto dos Anjos, uma licença para viajar ao Rio, onde trataria da publicação do Eu.

A morte do poeta paraibano teve pouca repercussão na imprensa. Destaque para o artigo de José Américo de Almeida, no trigésimo dia, e para o ensaio de Antônio Torres, no qual se insere o tocante perfil que define Augusto como um idealista "na mais nobre, na mais vibrante e, digamos, na mais dramática acepção do vocábulo".

A crítica, desorientada pelo choque, pelo desconhecido que a poesia do Eu representava, oscilou inicialmente entre a aceitação e a recusa dos recursos de expressão que caracterizavam a criação lírica sem precedentes. De modo que o livro pelo qual o poeta sacrificou a própria vida permaneceu algum tempo numa espécie de limbo, incompreendido.

Nem os modernistas ensimesmados alcançaram a poesia predeterminada "Para cantar de preferência o horrível". Do observatório em que estavam situados, não perceberam que, em 1912, comparada a "um paralelepípedo quebrado":

a lua de augusto
é uma lua nova

uma lua cheia
de modernidade

a lua de augusto
é uma pedrada

em olavo brás martins dos guimarães bilac

Em 1920, o jornalista paraibano Órris Soares, contemporâneo e amigo de Augusto, toma a iniciativa de organizar e prefaciar a segunda edição do Eu. Acrescentou novos poemas, selecionados, sobretudo, entre os escritos após a primeira edição, e colocou o subtítulo (poesias completas). Sem dúvida, o mais marcante de Órris Soares em relação à poesia de Augusto foi o gesto. A iniciativa do publicá-la, quando o poeta já não existia e parecia tão esquecido quanto seu livro único. Implícita, nesse gesto, a capacidade de compreender, antecipadamente, que, sem se filiar a nenhuma escola, o Eu, em "seu individualíssimo sentir", representava a "riqueza e glória das letras brasileiras". É o que se lê no prefácio histórico, entre outras assertivas acolhidas pela crítica contemporânea.

A ética da "obrigação intelectual da verdade" motivou essa publição póstuma, "como uma sagrada dívida" que Órris se impôs. Ele era motivado por valores dessa ordem, segundo o testemunho de Carlos Drummond de Andrade que considerava o amigo Órris um dos homens mais livres, mais conscientes e mais fiéis à inteligência. Numa perspectiva semelhante, o grande Houaiss também reconheceu a suma importância da segunda edição feita por amor e devoção, como um instante decisivo na história do Eu.

Essa publicação paraibana despertou o interesse da Livraria Castilho, responsável pela terceira edição, em 1928, com o titulo Eu e outras poesias, que se tornou definitivo. Foi tal o fenômeno da recepção que os jornais da época chegaram a registrar três mil volumes escoados cm quinze dias e 5.500 vendidos em menos de dois meses. A partir de então o sucesso de público não abandonaria jamais a poesia de Augusto dos Anjos. Equiparando-se o poeta aos mais populares do Brasil, recitado de cor pelos admiradores dos mais diferentes níveis culturais. Assim, as edições se sucederam através de selos consagrados: Livraria Castilho, Bedeschi, Livraria São José, Companhia Editora Nacional, José Olympio, Ática, Paz e Terra, Civilização Brasileira, Nova Aguilar, Bertrand Brasil, Martins Fontes, etc.

O grande número de publicações e a pluralidade de editoras que as representam corresponderam no crescente interesse do público pela poesia de Augusto dos Anjos. Mas esse fenômeno, que tem na recepção um dado positivo, também deu margem a que muitas gralhas ou alterações gráficas passassem a interferir nos originais do poeta. Somente a partir da 29ª edição, comemorativa do cinquentenário de lançamento, o texto do Eu começa a receber a atenção especializada. O filósofo Antonio Houaiss e Francisco de Assis Barbosa foram os pioneiros que se dedicaram à correção dos erros acumulados em meio século de publicações. No entanto, foi a trigésima edição, com a nota editorial de Houaiss, que atingiu a confiabilidade reclamada para o texto poético de Augusto dos Anjos.

Em 1977, Zeni Campos Reis acrescenta, com absoluta segurança, novo cuidado ao estabelecimento do texto. Publica Augusto dos Anjos: poesia e prosa, ampliando, com sua pesquisa exaustiva e competente, informações sobre a obra do poeta do Eu, tornando-se fonte de consulta indispensável para os estudiosos.

Enfim, em 1994, com a publicação da Obra completa de Augusto dos Anjos, pela Nova Aguilar, temos a mais ampliada edição, depurada dos antigos e persistentes erros. Organização, fixação do texto e notas, sob o critério de Alexei Bueno, impõem às próximas iniciativas uma responsabilidade maior em relação à fidedignidade do texto de Augusto e à coerência das leituras críticas.

Diante do Eu ,a morte se desfigura, perde sua força dominante. Resume-se a um episódio, um traço biográfico, uma data. Nada mais. E já não sabemos dizer se é homem ou mito este singularíssimo poeta que, tendo testemunhado menos de duas décadas do século XX, foi por ele consagrado como criador de uma linguagem, de um ritmo, de uma concepção poética que surpreendeu a Literatura Brasileira e a ela se acrescentou como renovação e sinalização de outras formas de sentir, compreender e dizer.

Se, do ponto de vista do processo mimético, é verdade, como entende Eduardo Portella, que o poeta "só é poeta quando converte imaginariamente o horizonte, quanto morre na vida da obra'', também não é menos verdadeiro que, do ponto de vista da continuidade histórica, o poeta se perpetua na obra, como o criador na criatura, como o homem particular no universal. O poeta continua na obra, não no equivocado entendimento de que esta seja a sua biografia em versos, ou a mera confissão de particularidades sentimentais. Continua porque na obra está a sua compreensão do mundo, a sua forma escolhida de participação no projeto humano, a complexidade do seu tempo transubstanciada na linguagem que corporifica o gesto inaugural da expressão lírica.

A presente edição ergue um monumento ao poeta, tornando acessível o livro de Augusto no formato que se fez uma preciosidade bibliográfica. Um monumento vivo, o Eu, na plenitude do reconhecimento. Constituindo um fenômeno editorial sem termos de comparação. Mantendo uma popularidade que levou o autor a ser eleito o paraibano do século XX, por uma diversidade de admiradores que é "transcendentalíssimo mistério". Acumulando em sua trajetória uma elevada compreensão crítica que destaca a obra de Augusto dos Anjos "como a mais patética indagação já feita, na poesia brasileira, acerca da existência do mundo e do sentido da vida humana". Com a ressalva de que "jamais, antes dele, essa indagação se fizera em tal nível de urgência existencial e de expressão estética''. É a conclusão do poeta Ferreira Gullar, em sua leitura plena de descobertas e elucidações.

"Salvo pelo povo" e consagrado pela crítica, há muito o lugar do poeta do Eu está definido com propriedade no quadro da Literatura Brasileira. O mestre Eduardo Portella explicita que:

"[Augusto] se localiza numa peculiar encruzilhada do pós e do pré, entre elaborações retardatariamente românticas, parnasianas, simbolistas, a essa altura debilitadas, e esboços ou manifestações discursivos, prenúncios do modernismo. O Eu se projeta como avatar de radicalização da modernidade. Ele desidealizou o conceito do gosto para dessacralizar a linguagem e, com isto, verbalizar despreconceituosamente a experiência humana. A precoce, e não raro prematura, desestetização corresponde ao programa de descarte do sublime".

O ensaio do professor João Adolfo Hansen, escrito especialmente para esta edição do Eu, integra-se à tradição da crítica que ilumina o texto do poeta. Retoma importantes aspectos sobre os quais fixa precisos fundamentos. Chega a elencar as múltiplos razões dos estudiosos que o antecederam e reconheceram a poesia ou "a boa poesia", no realismo mágico da linguagem criada por Augusto.

Um estudo erudito e atual que valoriza de modo superlativo da homenagem ao poeta do Eu. A Leitura do "Monólogo de uma sombra", como "a profissão de fé poético-científica do autor", é original e prepara o leitor para absorver a tradução da teoria do conhecimento implícita na obra de Augusto dos Anjos, integrada poeticamente pela representação metafórica.

A marca de conciliar o gosto popular e o erudito não se apagará da poesia de Augusto. Ela continuará encantando o povo e desafiando os críticos. O poeta já é febre entre os internautas, com milhares de vídeos e páginas de acesso. Enquanto a crítica universitária, à luz de diversos postulados teóricos, projeta cada vez mais a sombra incandescente do Eu. Vale registrar a tese O evangelho da podridão, em que o professor Chico Viana analisa a tematização da culpa como elemento estruturante da poesia de Augusto. E mais uma hipótese se acrescenta como justificativa para a popularidade do Eu. Além do estranhamento e da estrepitosa musicalidade da linguagem, a possibilidade da catarse para a civilização da culpa.

A construção fantástica de palavras misteriosas, estranhas ou íntimas demais, que transita sem limite entre a realidade, a fantasia, o sonho, a loucura e os tempos imemoriais, expandindo-se em ásperos sons, agônicos e dissonantes fascina e haverá de atrair sempre um público de características culturais extremamente diversificadas.

É o homem universal vencendo o homem particular, cumprindo-se o credo existencial do poeta.



(O Blog Carlos Cronista tem a honra de publicar o texto, inédito na Paraíba: "Augusto para todos os séculos", que prefaciou a homenagem da Biblioteca Mário de Andrade (foto da ilustração) no Centenário da morte do poeta Augusto dos Anjos, de autoria da Professora Ângela Bezerra de Castro)



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