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Nunca mais foram vistos os meninos com os carrinhos de rolimã. Subiam a ladeira da Borborema, aos risos, carregando os artefatos sob os bra...

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Nunca mais foram vistos os meninos com os carrinhos de rolimã. Subiam a ladeira da Borborema, aos risos, carregando os artefatos sob os braços. As geringonças primitivas: um lastro para sentar, dois eixos para sustentar as rodinhas.

Foi no século passado. Meu pai se vestindo para sair ao trabalho na loja de tecidos. Naquele tempo, anos cinquenta, os vendedores de balcão...

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Foi no século passado. Meu pai se vestindo para sair ao trabalho na loja de tecidos. Naquele tempo, anos cinquenta, os vendedores de balcão no comércio ainda raso da Rua Beaurepaire Rohan e adjacências se punham em traje formal. Era costume adotado. Demorava-se no quarto, engalanava-se para a freguesia razoável. Os shoppings não existiam e o passeio pela área comercial era preferido por muitos que iam gastar a tarde naquelas ruas pacatas, sem riscos maiores de assaltos, mesmo os de pequena monta.

Simplesmente um passarinho. Um passarinho sobrevivente e cantante entre muitos companheiros, neste mundo urbano crudelíssimo. Superlativo v...

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Simplesmente um passarinho. Um passarinho sobrevivente e cantante entre muitos companheiros, neste mundo urbano crudelíssimo. Superlativo vazado da irritação e inquietude que nos traz a falta de um gorjeio. Somente buzinas, alto-falantes cruzando vozes que propagam liquidação de lojas. Ou ritmos pretensamente musicais de mau gosto, barulhentos arreganhados em alto volume em praias ou não, tirando o sossego a ouvidos e sonos. E os pobres passarinhos não mais cantam como antes. Tiram-lhes os espaços e lhes torcem as melodias que não cansam e combatem o estresse.

Queria comprar a calça que vira na vitrine. Era cara, a mesmíssima usada pela atriz da novela na televisão. Tudo atrasado: água, luz, merce...

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Queria comprar a calça que vira na vitrine. Era cara, a mesmíssima usada pela atriz da novela na televisão. Tudo atrasado: água, luz, mercearia. Sequer possuíam cartão de crédito, uma raridade não tê-lo, numa época consagrada ao fetiche de plástico.

Brinca-se de cabra-cega ou de esconde-esconde. A panela não contém bombom. Talvez ou quase certo, esteja vazia. Uma festa ao avesso do povo...

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Brinca-se de cabra-cega ou de esconde-esconde. A panela não contém bombom. Talvez ou quase certo, esteja vazia. Uma festa ao avesso do povo sacolejado pelos desmandos de um roteiro escuro. Às apalpadelas se procura a saída. Tecnologicamente, os padrões se desenham em mapas e projeções com os frios números, numa lógica de desesperação, dentro de um recinto de paredes negras e chão esburacado. Para onde vamos? Nós e o mundo? Nós e as brasílicas potencialidades apanhadas em botijas rasas? Há riquezas de argumentos e afirmações que correm o risco de serem desmanchadas pela crudelíssima realidade.

São outros tempos e as bandas fugiram dos coretos. O da Praça Venâncio Neiva: esquecido num canto do logradouro; o da Praça da Independênci...

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São outros tempos e as bandas fugiram dos coretos. O da Praça Venâncio Neiva: esquecido num canto do logradouro; o da Praça da Independência: invadido por flores.

Alguém me disse que caligrafia está caindo em desuso. Para quê — perguntam? Ao toque de teclados de computador e semelhantes é possível ele...

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Alguém me disse que caligrafia está caindo em desuso. Para quê — perguntam? Ao toque de teclados de computador e semelhantes é possível elevar o pensamento ou o trabalho escrito com muito mais facilidade.

Havia um potrinho na fazendola de tia Moça. Como se diz hoje, no linguajar consumista, era meu sonho, minha grande vontade, correr pelas ve...

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Havia um potrinho na fazendola de tia Moça. Como se diz hoje, no linguajar consumista, era meu sonho, minha grande vontade, correr pelas veredas montado naquele animal gracioso, enfeitado em manchas brancas sobre o pêlo marrom.

Quase ninguém reparou no coletor de resíduos. Ia à frente do carro, puxando-o, cansado, aspirando o parco ar da manhã tórrida. Súbito parou...

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Quase ninguém reparou no coletor de resíduos. Ia à frente do carro, puxando-o, cansado, aspirando o parco ar da manhã tórrida. Súbito parou, vi bem. O carro encostado à sombra de uma árvore. À beira do meio-fio percebeu um embrulho. O que conseguira coletar, desde torneiras, aparelhos sanitários, papelão, até um boneco inflável, iria ser levado a postos de dilapidados objetos. Era de que ele vivia. Nesta fase de desemprego, pessoas sem saída têm, como única vertente, vender restos de utilidades. Questão de sobrevivência.

Minha primeira professora foi Gracilda. Dona Gracilda, por respeito. Não havia descortesia para com a mestra, naqueles anos de civilidade a...

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Minha primeira professora foi Gracilda. Dona Gracilda, por respeito. Não havia descortesia para com a mestra, naqueles anos de civilidade aguçada. Ao contrário, a considerávamos segunda mãe. Chegava alegre à sala de aula. Repositório de garatujas, soletramento, tabuada cantada.

Por acaso, encontrei o vendedor de pirulitos. Arrumada na tábua perfurada, a delícia daqueles bombons que eu não via há muito tempo. Intere...

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Por acaso, encontrei o vendedor de pirulitos. Arrumada na tábua perfurada, a delícia daqueles bombons que eu não via há muito tempo. Interessante como os usos e costumes vão se esfumando: antes, passando pelas ruas, muitos deles transitavam, as crianças esperando a hora, cutucando os pais para pedir as moedas; à época, ninguém tinha nenhum saber sobre diabetes, triglicérides, colesterol bom ou mau.

Encontrei o proprietário de uma alfaiataria que somente costura camisas. Quando se aproximavam os períodos marcantes das grandes festas do ...

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Encontrei o proprietário de uma alfaiataria que somente costura camisas. Quando se aproximavam os períodos marcantes das grandes festas do ano, e mesmo sem que houvesse feriado à vista, nunca faltava encomenda. Eram algumas máquinas de costura, a pedal ou a eletricidade, cansadas de tanto as agulhas correrem sobre os tecidos e cumprirem a data de entrega da encomenda.

Falava-se em costurar a cortina. Havia uma costureira, D. Sandy, famosa pelas peças cosidas e realçadas, verdadeiras obras artísticas; a mo...

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Falava-se em costurar a cortina. Havia uma costureira, D. Sandy, famosa pelas peças cosidas e realçadas, verdadeiras obras artísticas; a modista estivera a medir, traçado um projeto do adorno: prometera ficar a cortina pronta em menos de duas semanas.

Não, não era por acaso que se resolveu pela rejeição daquela nova moradora da rua. Uns a achavam um saco de impropérios, uma mulherzinha ba...

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Não, não era por acaso que se resolveu pela rejeição daquela nova moradora da rua. Uns a achavam um saco de impropérios, uma mulherzinha banal que não iria trazer para ninguém uma convivência prazerosa. Era uma mulher nada serena, advinda de ricas procedências sulistas, neta de algum ricaço empresário da Pauliceia.

Na véspera do São João, íamos à casa de minha avó paterna. Morava na rua Índio Piragibe. Uma casa de frontão, duas janelas e uma porta, aca...

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Na véspera do São João, íamos à casa de minha avó paterna. Morava na rua Índio Piragibe. Uma casa de frontão, duas janelas e uma porta, acasalada a outras do mesmo estilo, erguida sobre uma barreira. O rádio no mais alto volume: gente dançando baião, ao som do aparelho ABC. A criançada soltando fogos. A rua embandeirada em papel de seda.

Serafim entregava sacas de carvão nas casas. Faz tempo. Pouco ou nenhum fogão a gás nas cozinhas, as donas de casa colocavam as pedras negr...

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Serafim entregava sacas de carvão nas casas. Faz tempo. Pouco ou nenhum fogão a gás nas cozinhas, as donas de casa colocavam as pedras negras, molhavam-nas com querosene, riscavam o fósforo no olho de marca, puxavam os abanos de palha entrelaçada para provocar o vento que vinha avivar as brasas. Um cheiro acre percorria todos os recantos, a fumaceira subia para as telhas de barro ou sumia pelas janelas abertas.

Nunca se pensava no ex-concertista sentado, sempre a acender o cachimbo, olhando a imensidão de seu universo musical. Era um ex-violoncelis...

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Nunca se pensava no ex-concertista sentado, sempre a acender o cachimbo, olhando a imensidão de seu universo musical. Era um ex-violoncelista da Orquestra Sinfônica.

Pode ser avistada na varanda do andar mediano do edifício. Pela manhã, consumindo o sol ainda frio, a olhar a paisagem. Bem amadurecida, di...

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Pode ser avistada na varanda do andar mediano do edifício. Pela manhã, consumindo o sol ainda frio, a olhar a paisagem. Bem amadurecida, difícil avaliar seu enquadramento etário.

Os tipos populares escasseiam em nossas ruas. Marreteiro era descendente de escravos, vendedor ambulante. Carregava nos fortes ombros o pes...

jose leite guerra profeta negro ambiente de leitura carlos romero

Os tipos populares escasseiam em nossas ruas. Marreteiro era descendente de escravos, vendedor ambulante. Carregava nos fortes ombros o peso de dois balaios apinhados de frutas.
jose leite guerra profeta negro ambiente de leitura carlos romero
Apinhados, literalmente. Pinhas, sapotis, algumas bananas. Fazia ponto na antiga Estação Ferroviária (a Great-Western).

No tempo em que se usava relógio de algibeira se deu o fato que vou narrar. Era elegante puxar a corrente e trazer à vista o redondo e trab...

jose leite guerra ambiente de leitura carlos romero

No tempo em que se usava relógio de algibeira se deu o fato que vou narrar. Era elegante puxar a corrente e trazer à vista o redondo e trabalhado relógio de metal precioso. Um esnobismo que foi desaparecendo com o surgimento dos relógios de pulso. Atualmente, o celular faz tudo, inclusive marcar as horas. Mas, vamos à história propriamente dita.

Certo senhor de posses, dono de uma das lojas de bom porte, detentor de vultosa fortuna escondida nos bancos, morador de uma grande e confortável residência, saía, a pé, cada manhã para a sapataria de sua propriedade. Imaculadamente trajando branco, terno de linho puro, chapéu de linha, lenço no bolso do paletó, sapatos engraxados. Cumprimentava as pessoas de forma mecânica, por educação, mas sem aquele sabor de quem gosta de se entrosar com os conhecidos da rua onde morava ou passantes. Um pernóstico. Gabava-se de sua riqueza e principalmente do relógio de algibeira importado - fazia questão de acentuar – em ouro maciço, feito por encomenda e personalizado, inclusive com seu nome gravado. O único do planeta. Não vou revelar a identidade do dono, posto ser falta de ética desmesurada, e seria correr o risco de alguém ainda sobrevivente de sua prole elástica ainda estar no meio de nós.

Numa dessas manhãs, logo que dobrou a esquina rumo à loja, não notou ser acompanhado por um homem do povo, a certa distância. Jamais desconfiaria ser seguido por um larápio ou gente que lhe pudesse fazer o mal. Jamais. Na cidade todos o conheciam, inclusive o tal humilde personagem. Este logo se aproximou do ricaço e o cumprimentou com naturalidade, dizendo-se freguês, entrou na sapataria, experimentou um calçado, pagou e saiu. Iria estrear o sapato no casamento da filha. Mas o freguês tinha maléfica intenção que logo mais se saberá.

Próximo, havia uma feira livre extensa. O comprador do sapato, cujo nome omito por motivo óbvio, se aproximou de alguns perus e adquiriu o mais nutrido. Foi-se com a ave debaixo do braço em direção à bela mansão do vendedor de calçados. Chegou-se ao portão de ferro, bateu palmas. Veio atendê-lo a esposa do rico comerciante:

“Que deseja?” Ele respondeu, prontamente, na maior naturalidade:

“Seu digníssimo esposo mandou entregar este peru e pediu que lhe mandasse o relógio de algibeira que ele esqueceu”. A senhora mandou que um dos empregados recolhesse o peru e trouxe a peça, entregando-a ao emissário, em confiança. Agradeceu ao portador com alegria.

Quando o marido chegou para o almoço, a esposa contou o fato. Ele ficou totalmente surpreso. De nada tinha conhecimento. Apenas que esquecera, realmente, o famoso relógio, pois saíra apressado. Ficou perdido em suposições. Aquele perseguidor era um ladrão fino e inteligente. Notara que ele, dono da sapataria, se esquecera de levar na algibeira a raridade. Astuto o rapaz. O valor do peru estava aquém do portentoso marcador de horas fornido a ouro maciço...


José Leite Guerra é bacharel em direito, poeta e cronista