Pode ser avistada na varanda do andar mediano do edifício. Pela manhã, consumindo o sol ainda frio, a olhar a paisagem. Bem amadurecida, di...

Voo rasante

jose leite guerra balzac ambiente de leitura carlos romero

Pode ser avistada na varanda do andar mediano do edifício. Pela manhã, consumindo o sol ainda frio, a olhar a paisagem. Bem amadurecida, difícil avaliar seu enquadramento etário.

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Deram-lhe uma alcunha condizente com seu jeito de apreciar altos panoramas. Observa as edificações até onde a vista alcança. “Eita, ali estão construindo mais um! Vem ver Anastácia” – Anastácia é uma balzaquiana (desculpe, leitor, alguém ignora a origem do termo, vindo da obra de Honoré de Balzac, “A Mulher de Trinta Anos”).

A convidada para admirar a paisagem urbana é ligada vinte e cinco horas e um minuto na tela do zapzap. Faz que olha (não quer desagradar a, digamos, avó) indiferente ao deslumbre exterior.

A mulher, como ia escrevendo, foi apelidada de Hosana – me informou um frequentador de praça. O porquê do nome? No andamento litúrgico é cantado um hino com a expressão.

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Mas, o hosana significa, dentro da linguagem sacra, alegria, e tem uma conotação diferente. Quando criança, conheci uma Hosana que desejava ser miss Brasil. Temia as alturas.

Muitas pessoas das proximidades, moradoras de apartamentos fronteiriços, ou mesmo quem transita, episodicamente, pela rua, olha a mulher, a Hosana falada, como se fosse um destaque, uma mascote, e ninguém explica a razão. Vemos com naturalidade gente debruçada nos peitoris de outros edifícios.

Procurei investigar melhor o fato. Por sorte, deparei-me com um senhor calvo, a barriga à mostra, fumando seu charuto de aposentado. Coincidentemente, um filho solteirão da amiga Hosana. Cheio de emoção transbordante numa tímida lágrima enxugada na ponta da manga, gaguejou e me contou tudo: a personagem, sua mãe, desejava ser aeromoça. Não realizou seu sonho. Na velhice dela, comemoramos seus oitenta anos, presenteando-a com o apartamento. Vive sua fantasia, sobrevoando com a vista parca os arredores. Todavia, reclama: “Aqui é baixo, preparar-se para o pouso, voo rasante...”


José Leite Guerra é bacharel em direito, poeta e cronista

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