Meu Mundo-Sertão é repleto de mistérios, de belezas ocultas que se descortinam devagar, apenas para aqueles mais sensíveis, que não têm pr...



Meu Mundo-Sertão é repleto de mistérios, de belezas ocultas que se descortinam devagar, apenas para aqueles mais sensíveis, que não têm pressa, que se deixam levar. Fui para o Mundo-Sertão, desci a boca do Cariri, através da PB 138 (por Catolé de Boa Vista). Não tive a sensação tão esperada de após passar pelo distrito de São José da Mata e na entrada do sítio Tambor, a 704 metros de altitude, descer aquele corredor margeado pelas serras do Maracajá e do Engenho até a Praça do Meio do Mundo. É a partir dali que me sinto adentrar neste mundo mágico, repleto de sortilégios, mas não tive aquela costumeira e a esperada sensação.

Não fui pelo caminho habitual através da rodovia transamazônica porque desejava trilhar pela estrada que nos conduz a Catolé de Boa Vista, e em seguida ao município de Boa Vista, já na BR 412. Esse caminho já fiz algumas vezes, mas totalmente no asfalto ainda não. Segui. Estava na companhia dos amigos historiadores Erik de Brito (Neto) e Josemir Camilo que atenderam prontamente ao meu convite de participar da Reunião Ordinária do Instituto Histórico e Geográfico de Serra Branca em comemoração ao aniversário de 59 anos da cidade.

Partimos ao entardecer. Na boquinha da noite passávamos pelo tranquilo distrito de Catolé de Boa Vista; mais à frente, após passarmos por Boa Vista, já a caminho de São João do Cariri, vimos, como um sinal, um clarão, um relâmpago que parecia ser lá pelas nascentes do Rio Paraíba, em Monteiro. Minutos após sentimos um forte cheiro do mato, marmeleiros e juremas pretas parece que haviam entrado pelos dutos do ar condicionado nos inebriando, como é possível? Neto e eu nos olhamos, eu sorri. Aquilo era só mais um sinal da natureza chamando a contemplá-la. Desliguei o ar, desci os vidros, diminui a velocidade. Noite de lua cheia! Mata, serrotes, rodovia, tudo iluminado. Aproveitando a soledade de nosso carro, desliguei o farol. Nada de artificial em genuínas sensações e sentimentos. À margem direita da estrada, na famosa muralha do meio do mundo cacheada de blocos rochosos, o alumiar da lua beijava o contorno das serras, dava forma aquele horizonte, um sol de prata “prateando a solidão”, cenário mágico, luar do Mundo-Sertão.

Neto e eu nos deslumbrávamos a cada momento, contemplávamos as estrelas, vi a ursa maior, um êxtase difícil de quantificar. Naquele momento acho que o Prof. Josemir Camilo, que só observava o nosso movimento, pensava que aqueles garotos tinham endoidecido, talvez seu habitué metropolitano não permitira tal desfrute. Ora, já dizia Pedro Nunes, quando se aprende a amar o Mundo-Sertão, chega dá gosto pisar em cima dele, sentir o chão estremecer, mergulhar em seus mistérios, e assim fazemos quando a vida nos leva pr’aqueles rincões.

Em São João do Cariri, paramos em Roque Santeiro para comer uma fatia de bolo de mandioca com queijo coalho (dali mesmo!) bem assado, acompanhado de café puro e forte. Sentei na primeira mesa e, vez em quando, fitava ao longe as curvas do rio Taperoá, refletindo a lua e nos provendo uma brisa úmida e fria, vinda do sul.
Cheiro de terra molhada anunciava chuva próxima…
Chegando a Serra Branca, a lua faceira cintilava na Serra do Jatobá - a Serra Branca. Um espetáculo, aquela cena. Já na cidade, chegamos ao destino, a Escola Vasconcelos Brandão. Professor Zé Pequeno, na calçada a nos esperar, nos chama: – Thomas, vamos entrar, tá chuviscando!

Um fino chuvisco, sem a densidade de uma neblina, não incomodava, ao contrário: – Zé, vamos prosear por aqui, contemplar o luar, esse chuvisquinho p’ra banhar nossa alma, e ali conversamos um pouco... ao mesmo tempo que via o movimento ao longe, nos arredores da praça, afinal era um sábado e, além do mais, festivo para Serra Branca.

“Não há, oh gente, oh não, luar como esse” do Mundo-Sertão...


Thomas Bruno Oliveira é historiador e jornalista / e-mail.

Chegar em Londres para mim é uma experiência mais afetiva que geográfica. Reporto-me aos tempos dos meus doze anos de idade e da Cultura I...



Chegar em Londres para mim é uma experiência mais afetiva que geográfica. Reporto-me aos tempos dos meus doze anos de idade e da Cultura Inglesa (a primeira, uma casinha na Av. D. Pedro I), quando e onde comecei a estudar Inglês, com Mr. Barlow e D. Nair. Como não re-viver a primeira vez que vim, ver e falar de perto, a língua que aprendia nos livros e com os Beatles nos anos 60! E já foram tantas vezes! E a vez maior, quando morei na Universidade de Warwick em 1986/87. Naquela experiência, tantos sentimentos contraditórios. Uma parte de mim, cosmopolita e querendo conhecer os mundos. Outra parte, tendo que lidar com as escolhas! O difícil caminho das mulheres e das mães. Eu fiz as minhas. E assumi as consequências. As saudades também. Chegar em Londres é sempre um susto. Uma sensação de dejá vù . De outros tempos da juventude, agonias e felicidades tantas.

Perguntaram-me o que dessa vez, eu queria ver em Londres? Nem eu sabia. Nunca quero muito. Simplesmente estar nessa cidade. Queria perambular. E foi o que fiz: Almoçar no Borough Market, ouvindo aquele Senhor com um sotaque esquisito vendendo morangos frescos, no meio daqueles tons ocres do mercado, que parecia cenário de filme, e/ou dos romances de Charles Dickens. Depois caminhar pelo Bankside, avistando a Torre de Londres de um lado, a paisagem cinzenta (não seria Londres se assim não o fosse). Passar em frente do Globe Theatre, me lembrar de Vitória Lima e as aulas sobre Shakespeare. Seguir, por entre pubs, turistas, até chegar a Tate Modern. Esse, meu lugar favorito das artes. Uma exposição especial de Picasso (The EY Exhibition Picasso 1932 - Love Fame Tragedy), e ficar deslumbrada novamente com sua obra e esse ano específico chamado de “ Year of Wonders”. Vi montes de crianças pintando pessoas com olhos dis-formes. Criança que visita museu, com certeza terá outros olhares/ângulos quando adulto. Penso. Do sexto andar, do café, a vista do Tâmisa. E aquele cenário de uma Londres futurista com seus novos prédios gigantes: O Shard (em forma de pirâmide), o Gerky (em forma de ovo), e o Walkie Talkie (um tijolo!). O novo se contemporizando com a tradição da arquitetura gótica de Westminster e das Houses of Parliament.

Atravessei a Millenium Bridge. A ventania quase leva minha sombrinha com as cores da bandeira inglesa, que havia comprado na London Eye, por entre turistas outros. Uma moça cantarolava com sua voz delicada. Mais ventania. Mas como resistir ao Tâmisa? Seguia, e numa das pontes, um latino tocava “Despacito” na sua sanfona. O eco daquela música, varreu de mim qualquer preconceito. Parei. Ouvi. Dei-lhe uma moeda. E me emocionei. Quase dancei! Depois, ao longo do Queen´s Walk avistava o London Pride e os barcos naquelas águas caudalosas. Quase pude ver uma tela de Turner e seus mares escuros. O Big Ben em reforma estava vestido, se escondia de mim, mas a ponte de Westminster, com seus Double Decks circulando, tudo me remetia aos sonhos de menina e a Cultura Inglesa. No meio do caminho vi uma estatua de Sir Lawrence Olivier, um edifício da London School, com o nome de Virginia Woolf, e as aulas de literatura Inglesa também vinham pelo caminho. Mrs Dalloway passeava!

Mas sou fascinada por mercados. E Londres é a cidade dos mercados: Notting Hill/Portobelo, Peticoat, Broadway Market, Borrough Market, Camden Town e tantos outros. Gosto de circular por esses lugares no meio da rua. Saborear comidas exóticas. Provar roupas diferentes. Broches. Chapéus. Echarpes. E mais, aquela multidão diversa de todos os lugares do mundo. Essa é a magia.

Portobelo Road no Sábado. Aquela cerejeira em flor branca me esperava. Tantas lojas, brincos, prata, âmbar. De novo ficava zonza. Não sabia o que comprar. Tantos anos indo ali. Julia Roberts era eu! E escutava Charles Aznavour cantando She. Sentei num dos banco típico. Tomei café com Brownie. E entrei na livraria do filme esperando encontrar Hugh Grant...

Seguimos para desbravar Shoreditch, o bairro descolado da cidade. Nova área revitalizada. Grafites. Bansky pelas paredes. Chuva. Mind the Gap. Comprei o cartão Oyster para poder rodar nos undergrounds. Viajar é para os fortes. Léguas de andanças. Muitas escadas para ir num Roof Terrace (levada pela minha sobrinha Natália), – baladas de sábado à tarde! Domingo foi em Brick Lane. Chove Chuva, mas mesmo assim, mercados de comida, vestidos e flores.

Oxford Street é decadente? Talvez. Para mim, ver os Double-decks é uma volta aqueles livros da língua Inglesa. Uma cena de cartão postal. Assim como Carnaby Street, a loja Liberty, Totterham Court Road (estação que serviu de abrigo nos tempos da Guerra), Regent Street. Passear pelas lojas, entrar e sair pelas grandes Department Stores.

Em Covent Garden gosto de tomar um chá. Ouvir os artistas de rua. Comprar cartões, souvenirs, ouvir um moço cantando ópera, ir até a Neal´s Yard e ficar embriagada com o cheiros de lavanda, lima da Pérsia, hortelã e bergamota. As cores daquela esquina, me lembram da exuberância de Frida Khalo: vermelho, verde e roxo! Todos se sentam na pracinha para contemplar o exagero daquela encruzilhada perdida naqueles tons de cinza da cidade. Na esquina do tube station, os motoristas do tuk tuk sorriem. Mais flores lhe dão as boas vindas à esse mercado que um dia já foi para cavalos. A Crabtree & Evelyn me convida para aromas de abacate e laranja. Não resisto. E aquele moço de smoking e chapéu coco, me vende uma bolsinha vintage feita por ele. Conversamos sobre corte e costura! Logo eu, que não sei dá um ponto. Sem nó!

Uma amiga de infância, Silvia Helena, me convidou para um Gin and T, num outro Roof Terrace com vista para a St. Paul´s Cathedral. E de lá, vi Londres aos meus pés. A felicidade existe ! falou Mrs. Dalloway! Em As Horas!

Da estação de Paddignton segui (como nos filmes), para Cardiff, para encontrar meu refúgio em Penarth (no Vale de Glamorgan, endereço de fadas e duendes), na casa da minha irmã, Teca, que tem cheiro de alfazema e cartões de boas vindas. A cozinha com aromas outros, gulodices (mirtilos e Pavlova; samosas e espinafres frescos; mais Gin and T!). Beleza, placidez, aconchego, palm tree, e um pé de louro no quintal (trouxe umas folhas na mala para por no meu feijão). Até retalhos da calçada de Copacabana tem no seu oitão, quadros de Flávio Tavares e Isa do Amparo, para que ela sinta um pedaço do Brasil iá iá.

A vizinhança? um silêncio só! Fazia frio, galhos secos de fim de inverno. Lojas de caridade, Café Number One! cheio de poemas de Eliot e Byron. Uma Senhor lê o jornal e toma seu chá. O Brasil pegando fogo com notícias tristes e eu, tão longe, vendo aspargos frescos, soldadinhos de chumbo e ruas de Oliver Twist. Flanando por essas ruas de casas com bay windows. Tudo tão plácido! Lixo reciclado. Pessoas que falam baixo. Lampiões acesos em plena luz do dia e um sol fraco que não esquentava. Tinha a sensação que estava morando ali, tamanha era a distancia da minha casa.

Cenas da natureza tem o poder de nos sugerir certos valores – os carvalhos, dignidade; os pinheiros, resolução; os lagos, calma – e, de maneira discreta, podem agir como inspirações de virtude. ( pensamentos de William Wordsworth em A Arte de Viajar, Alain de Botton).

Fiz passeios por Cowbridge, Ogmore-by-Sea e Southerndown, ali eu era a Filha de Ryan ou A mulher do Tenente Francês. Thatched houses, ruínas castelos, penhascos, daisies, daffodils, ventos, névoas, brumas, céus, seixos, gaivotas, hills, horizontes infinitos, mares gelados e uma sombra marrom do lado de lá – a Inglaterra !.Ovelhas no countryside, e, aos sons cortantes das gaivotas, me reportava para outros tempos.

Viajamos pela região de Cotswolds, (cenário do filme O amor não tira férias , 2006, com Jude Law e Kate Winslet). Cidadesinhas medievais; um mercado do ano de 1.100. Uma cottage chamada de Horse and Groom, com lareira e paredes centenárias . Lugarejos com nomes compostos: Bourton-on-the-Water, Stow-on-the-Wold, Burford, Moreton Marsh, Chipping Camden…. Riachos, ruelas, recreios! Não sabia mais para onde focar a beleza. Nenhuma máquina seria capaz de captar as lojinhas, as ovelhas, os trecos nas portas das casas, os casais fazendo trecking pelas trilhas, as tea houses. E tantas outras belezas e iguarias. Pensei em Harry Porter ou nas histórias de Jane Austen. Os recantos Britânicos são indescritíveis. Os verdes, os cinzas, e os horizontes perdidos nas estradinhas fora dos circuitos das motor ways.

Pensei no filme Thelma & Louise, Teca e eu, naquele seu carrinho branco e preto, livres por entre as lanes, as off roads, por entre as florzinhas amarelas dos campos de canola....uma felicidade. Sem tempo , mas com direção. E sem a violência do filme, claro! Voltaríamos logo para casa. O pub nos esperava. E quem sabe outras aventuras, espantos e diários.

Viajar é bom. Voltar também. Registrar, re-contar, e fazer diários, para mim. Somente.


Ana Adelaide Peixoto Tavares é doutora em teoria da literatura e escritora.

Quanto de dor já escorreu nas frestas Quanta coragem foi ali bradada Quanto de lágrima foi derramada Por entre as tábuas que aqu...


Quanto de dor já escorreu nas frestas
Quanta coragem foi ali bradada
Quanto de lágrima foi derramada
Por entre as tábuas que aqui nos emprestas?

Quantos momentos de folguedos festas
Quantas vitórias  fúteis declamadas
Quantas paixões, quão tórridas noitadas?
Quantas tramóias, tramas desonestas?

É testemunha a mesa e suas tábuas
Do ser humano que acumula mágoas
E as impregna com a sua dor...

Porém não raro, deixa ali gravados
Comuns vestígios dos apaixonados
Os mais bonitos versos de amor...

* (Ouvindo o bom “Fado das Mesas de Tábuas” na, ainda melhor, companhia do Mestre Sonetista Fernando da Cunha Lima.)


Stelo Queiroga é engenheiro e poeta E-mail

Esta história me foi contada pelo inesquecível Romero Peixoto, meu amigo querido, companheiro do xadrez do Esporte Clube Cabo Branco,...


Esta história me foi contada pelo inesquecível Romero Peixoto, meu amigo querido, companheiro do xadrez do Esporte Clube Cabo Branco, da qual foi testemunha ocular.

Ia ser o noivado do ano. Filho de tradicional família paraibana, o jovem cirurgião dr. Augusto de Almeida Filho finalmente decidira se casar.

O dr. Augustão, como era carinhosamente chamado pelos seus discípulos, na juventude tinha se destacado por três características: aluno estudioso, sendo o melhor da sua turma; personalidade forte, o que o fazia se impor sobre os demais; e pavio muito curto, que o fazia brigar quase todas as manhãs, na saída do colégio Pio X. Foi assim no ginásio e no científico.

No curso superior, revelou-se um acadêmico brilhante, concluindo Medicina com louvor. Partiu, então, para Harvard, onde se especializou em cirurgia digestiva. Após passar três anos, pavio mais curto, retornava a João Pessoa, tornando-se o maior partidão entre as moças casadoiras da época.

Pois não é que o dr. Augustão se embeiçou pela Fatinha!? Garota linda, charmosa, rostinho coquete, mascando chiclete, era uma rosa de bonita. E muito prendada. A sua beleza tinha o DNA da mãe: dona Ilda era belíssima! Tanto que ela foi a primeira Miss Paraíba.

A filha do Seu João Celso, grande comerciante, correspondeu ao flirt do dr. Augustão. Namoraram, e após um bom tempo decidiram se casar, para alegria das duas famílias.

Representante da Alta Sociedade local, a dona Ilda entendeu que o pedido-de-mão da sua filha, logo por dr. Augustão, tinha que ser um acontecimento marcante. E decidiu organizar um jantar em grande estilo para marcar a data.

Convidou, entre outros nomes da nata da sociedade: o comendador e industrial Renato Monteiro; o comendador Aluisio Ribeiro Coutinho; o industrial José Nilson Rolim; o economista Pavlov Baltar; o industrial do sorvete, Manuel Tropical; o famoso urologista dr. Jacinto Londres de Medeiros, com grande clientela na rua Maciel Pinheiro; o gerente do Banco do Brasil, David Trindade, com a sua Margot; o arrebatador tribuno Mocidade; o presidente do Tribunal de Justiça, Desembargador Sarmento; o arcebispo Dom José Coutinho; o major Ciraulo; o governador João Ramalho; o engenheiro Fernando Dias; o prefeito da Capital, dr. Luis de Oliveira Lima; o bardo Manuel Caixa-D’Água; o comendador Romero e Terezinha Peixoto; o grande dermatologista dr. Arnaldo Tavares, com a sua esposa Otaviana; o advogado famoso Tiburtino Rabelo de Sá, acompanhado de sua discreta esposa, dona Toinha. E completou a lista com a socialite Isabel Bandeira Brasileira e com Agá, o mais presente cronista social da sua época.

Assinava o jantar dona Carmélia Ruffo. As empadinhas, os pastéis açucarados e os pastéis-de-nata não poderiam ser de outra senão da dona Nisa Siqueira. Organizou o serviço o ágil garçom Forzinho.

Na grande noite, como seu pai se encontrava enfermo, o dr. Augustão tomou como padrinho o seu irmão médico dr. Ney Almeida, cirurgião há muitos anos radicado no Rio de Janeiro, e que viera tão sòmente para o evento.

Lá chegando, o noivo apresentou seu irmão aos futuros sogros, ao governador, ao prefeito, ao bispo, ao engenheiro, ao industrial, ao major, aos três comendadores, ao gerente; e a todos os demais presentes.

O dr. Ney recebeu de Forzinho uma dose de Old Parr e sentou-se na roda. Homem bem humorado, o dr. Ney, muito espirituoso, logo soltou uma piadazinha leve, tipo balão-de-ensaio; ou uma isca, como querem outros.

Bonachão, amante da boa comida e do bom whisky, o Seu João Celso (logo o pai da noiva!), que adorava uma piada, foi justamente quem mordeu a isca.

E logo iniciou-se um delicioso duelo: um contava uma piada, o outro respondia com outra pior. O outro replicava, e assim por diante.

Versaram sobre tudo que é tema: piadas de bêbado, de doido, de corno, de bicha. Piada de crente, de católico, de apostólico, de romano; de gregos e troianos, de turcos e judeus.

E para desespero dos noivos, a cada rodada caía mais o nível das piadas, num crescendo (ou num descendo!) qual um Bolero de Ravel picante.

A noiva assombrada correu para dentro de casa e contou à mãe o que estava acontecendo. Esta apressou os trabalhos e chamou todo mundo para o jantar.

Mas, para desespero dos noivos, a dupla de humoristas continuou a desfilar seus piores repertórios à mesa. Dr. Augustão, vermelho, suava às bicas. Foi quando um beliscão por baixo da mesa, dado por dona Ilda, fez o Seu João Celso se tocar. Então ele disse:

“Dr. Ney, vamos parar por aqui, pois, o senhor sabe, a mesa é um lugar sagrado...”

E, para horror do dr. Augustão, seu irmão respondeu:

“É uma pena, pois só de “c*” ainda tenho umas seis...”

O dr. Augustão mergulhou debaixo da mesa, de onde só saiu depois do último convidado.


José Mário Espínola é médico e escritor E-mail

Nunca devemos desprezar a coragem de construir a História com “H” maiúsculo. É preciso não deixar que os acontecimentos mudem os rumos das ...


Nunca devemos desprezar a coragem de construir a História com “H” maiúsculo. É preciso não deixar que os acontecimentos mudem os rumos das coisas projetando um porvir reacionário e retrógrado. Há a necessidade de trabalhar transformações de idéias objetivando formar conceitos novos, sem perder a consciência das responsabilidades inerentes a uma democracia. Gestar o futuro a partir da análise reflexiva e crítica dos acontecimentos sociais, políticos e econômicos, em obediência aos valores morais e éticos que se afirmaram na transferência de gerações.

O engajamento cívico em favor das causas que interessem ao país é, antes de tudo, uma atitude de cidadania. No entanto, é inaceitável que os envolvimentos em projetos de mudanças sociais, se façam de forma irresponsável, guiados por interesses escusos, pressionados por campanhas midiáticas patrocinadas pelos que ambicionam o usufruto de benefícios em detrimento das demandas coletivas. A História com “H” maiúsculo preza pela desapaixonada visão interpretativa dos fatos, aproveitando-os como norteadores de uma posteridade que sirva a todos e honre nossas tradições.

Os acontecimentos emblemáticos da contemporaneidade, na análise dos seus significados, devem produzir narrativas de caráter histórico que engrandeçam e valorizem a cultura do nosso povo. Elaboremos uma memória social e politica válida, de maneira que nossos descendentes se orgulhem do protagonismo que exercemos na atualidade. Que as ações do hoje sejam compreendidas no futuro como determinantes na edificação de um Brasil cada vez melhor.

Façamos então bom proveito desse clamor por moralidade no exercício do “fazer política”, mas prioritariamente nos comprometendo a combater as velhas práticas que caracterizam o comportamento nacional, já conhecido no mundo inteiro como “o jeitinho brasileiro de querer levar vantagem em tudo”. Urge uma revolução cultural, mudanças rápidas e radicais nessa forma viciada e corrupta de atuar enquanto atores sociais. Só assim, iniciando com a cobrança de nossas próprias posturas, poderemos exigir dos outros que ajam em consonância com as regras morais e éticas que nos livrarão definitivamente da chaga da corrupção.

Não joguemos por terra a oportunidade de escrever a História com “H” maiúsculo, atacando um bem conquistado através de muita luta, que é a democracia. Na História com “H” maiúsculo não se admitem retrocessos, volta às experiências que nos fizeram sofrer, fortalecimento de idéias que alienam e subvertem os conceitos que nos garantem o inalienável direito de agir e pensar livremente. A História com “H” maiúsculo não consegue registrar ocorrências que violem ordenamentos jurídicos ou preceitos constitucionais, no afã de atender interesses menores liderados por agentes políticos descomprometidos com as questões nacionais.


Rui Leitão é jornalista e escritor E-mail

Um sociólogo francês, Michel Maffesoli, afirma que o cotidiano é a fonte de todo conhecimento. Para mim, particularmente, é fonte ...


Um sociólogo francês, Michel Maffesoli, afirma que o cotidiano é a fonte de todo conhecimento. Para mim, particularmente, é fonte de vida. A experiência de 50 anos como repórter leva-me a esta constatação. Sou um eterno “repórter”, título carinhoso outorgado pelo saudoso Carlos Romero quando defendia meu pão diário como aprendiz de fotografia.

Ser chamado precocemente de “repórter” por Dr. Carlos Romero – Juiz de Direito, Professor Universitário e Escritor – foi o maior elogio que poderia receber. O mesmo foi a primeira pessoa notória em João Pessoa a me acolher com sua serenidade e sua humanidade.

Já escrevi várias vezes sobre a felicidade que tinha em ser cumprimentado por Dr. Carlos: - Como vai repórter? É que sentia nesse gesto simples, um mistério insondável do destino, um fato determinante que catalisou o metabolismo da minha carreira jornalística.

Sou do interior e fui tangido para a capital pela necessidade. Na minha cidade ninguém acreditava em mim, até mesmo alguns familiares que debochavam quando dizia que iria ser locutor, fotógrafo e repórter. A labuta era grande e o trabalho árduo e pesado. Daí esse sentimento místico e até um pouco supersticioso de que Dr. Carlos Romero profetizou-me a profissão dos meus sonhos.

Quando menos esperei estava no inesquecível jornal O Norte, inicialmente como fotógrafo e, depois, como repórter-fotográfico propriamente dito, aquele que batia as fotos, redigia a matéria titulava e fazia tudo que a redação me solicitava. Sou o pioneiro e o único nessa modalidade, pelo menos, na Paraíba. Fazia “carreira solo”, ou seja, não necessitava de pauta, a não ser em casos excepcionais.

O expediente iniciava às 14 horas e não tinha hora para terminar. Chegava às 13, tomado banho e cheiroso a “Lancaster”, ou “Toque de Amor”, da Avon. Batia o ponto e saía da avenida Pedro II direto para o velho prédio da Prefeitura, no Varadouro. Em seguida ia para Central de Polícia e, depois, para o Centro Administrativo. Isso a pé e carregando uma bolsa pesada com uma câmera fotográfica, um flash e um gravador. Com o tempo isso me deu uma escoliose que a tenho como troféu da juventude.

Ao terminar a coleta das notícias voltava para a redação, revelava os filmes, copiava as fotos e redigia o texto. Achava mágico andar a pé sorvendo a beleza dos velhos casarões da avenida Trincheiras e bendizia uma profissão que me pagava para “andar”. Essa felicidade era maior quando era designado para viagens pelo Estado e pelo país. – Quem já viu ser pago para viajar e luxar? Era a rotinização do cotidiano do inesperado. De repórter-fotográfico cheguei até a editor, em rádios e em outros periódicos.

O tempo foi mostrando que deveria optar por uma carreira mais sólida o que me fez cursar faculdade e, depois, seguir a docência universitária, na inesquecível Universidade Federal da Paraíba. Hoje me chamam “doutor”! No entanto, o que me deixa mais feliz é quando, igual a Dr. Carlos Romero, chamam-me “Repórter”!.


Josinaldo Malaquias é jornalista, advogado e doutor em sociologia pela UFPB E-mail

A história se sabe. Mozart possuía o gênio, Salieri apenas o talento. Mozart, sendo gênio, nem se dava conta de sua genialidade, que pa...


A história se sabe. Mozart possuía o gênio, Salieri apenas o talento. Mozart, sendo gênio, nem se dava conta de sua genialidade, que para ele nada custava, por ser absolutamente natural; Salieri, sendo apenas talentoso, ralava para cultivar seu pequeno engenho, e percebia a grandeza do outro, e a invejava, querendo-a, sem esperanças, para si. Mozart gozava seu gênio e ria sem motivo, como um louco; Salieri, cara amarrada, gemia suas limitações e sofria sua angústia em silêncio. Mozart, celebrado universalmente; Salieri, apenas lembrado como um apêndice acidental do outro.

O filme “Amadeus”, como é sabido, retrata a história de ambos os compositores, ressaltando Mozart, é claro, mas oferecendo ao expectador a oportunidade de refletir sobre o drama pessoal de Salieri, sua tragédia, sua maldição. E aí, milagre da arte, a pequenez de Salieri se impõe à nossa atenção, porque é nela que se revela mais nossa humanidade e não na genialidade de Mozart, privilégio de poucos, mais deuses que homens. Admiramos Mozart, mas nos enxergamos em Salieri. Mozart, tão alto, resta distante; Salieri, ao rés do chão, ao nosso alcance.

Pessoalmente, demorei a descobrir Salieri desse ponto de vista. No começo, talvez como todos, ou como a maioria, só tive olhos para Mozart, para sua excepcional aptidão, para seu dom quase divino. Sua luminosidade era tanta que ofuscava tudo e todos ao seu redor, inclusive Salieri, pobre mortal a contemplar o Olimpo, consciente de que não podia entrar naquele reino. Mas felizmente o tempo trouxe, ainda a tempo, a compreensão desse sofredor e, com ela, a identificação com sua dor tão humana. Salieri finalmente conquistou um lugar no altar de minhas devoções.

A genialidade, sabemos, é bela e extasiante, não há como não admirá-la como um prodígio sobre-humano. Mas por ser um dom, uma graça, é como se ela fosse de certo modo gratuita, revelando-se quase sem esforço por parte de quem a possui. E, paradoxalmente, essa gratuidade diminui sua grandeza, porque esta, cremos, só é verdadeiramente valiosa quando conquistada com esforço e não apenas recebida, como o maná que caía do céu para os judeus no deserto.

Hoje aprecio melhor Mozart e Salieri. Mozart diminuído? Jamais. Apenas Salieri tornado maior do que inicialmente imaginei. Do mesmo modo, muitas outras coisas e pessoas com o tempo aprendi a compreender e avaliar melhor. Relativizando para melhor ajuizar e encontrando por baixo do corriqueiro, do trivial, riquezas ocultas, insuspeitadas. Mozart está às vistas, Salieri precisa ser descoberto. Mozart é um super-homem, Salieri é nosso irmão.


Francisco Gil Messias é ex-procurador-geral da UFPB e escritor E-mail E-mail

Carlos Romero é um mestre da crônica que traz a melodia dos canaviais, a sonoridade dos riachos e a musicalidade dos pássaros de Alagoa N...


Carlos Romero é um mestre da crônica que traz a melodia dos canaviais, a sonoridade dos riachos e a musicalidade dos pássaros de Alagoa Nova, sua terra, cheia de encanto, que caminha com ele. Ele nasceu como metal modulado, aos poucos lapidado pelos pais. Escreve para ser lido ouvindo Chopin.

Tomando a paisagem como inspiração, no seu lugar se contempla a beleza entre morros, aos cuidados do vento e com água da chuva nos meses de maio a julho, revela-se quadro com noção de universo, ali aprendeu a distinguir a beleza que em emoldura a vida e nos insufla a amar o lugar.

Carlos Romero é personagem do meu círculo de admiração construído há 40 anos, quando eu dava os primeiros passados no Jornalismo, em afortunada aproximação, da qual recolhi as palavras que ajudaram a construir o edifício de minha vida, porque pronunciadas ao som da melodia que trouxe do seu mundo, os mesmos arredores de onde viemos, porque Alagoa Nova e Serraria nos dão a mesma sina.

Alguns tiveram o talento como destino maior, enquanto outros continuam com o bisaco vazio. Os que a fome não atrofiou os miolos, puderam conquistar espaços. Há alguns que encontraram alguém que abasteceu a esperança, mostrou que nem tudo está perdido para os que nascem nas grotas e carregam o jeito de andar como papagaio.

Ao longo dos anos recolho dele a visão do mundo composta de paz, silêncio, de modo apaziguador. Suas crônicas lidas e as palavras escutadas durante nossos encontros casuais, na redação, nas livrarias ou na Academia, deram base sólida para que eu soltasse a imaginação a vaguear por um mundo onde vive somente quem desenvolve e entende as manobras do espírito.

Nossos encontros repetidos na Academia, entre as prateleiras, nas livrarias e por meio de suas crônicas, deixaram-me lições inesquecíveis. Assim como foram as vezes que estive em sua casa para uma troca de prosa e de livros. Nestes momentos falamos de miúdas reminiscências dos nossos lugares, de literatura, de música clássica.

Sempre o escuto com alegria restaurada. Lhano, voz sem rompente, alinhado com as palavras, com serena feição, não se eleva em porte nem manja badalações ou retóricas. Pronuncia frases em sequência simétrica, sem cortes nem vacância.

Os leitores adentram-lhe a intimidade por meio de seus escritos, tão pessoais e adornados de sabedoria. Têm fervor literário que extravasa a leitura e o formato do texto. Faz deles o húmus para a mente e estímulo às ideias que habitam seu território íntimo.

Ele chegou a ser exagerado quando escreveu um prefácio para o livro de crônicas que publiquei em 2007, impulsionando-me a continuar rabiscando textos sobre Serraria e esta Capital, que me acolheu há 43 anos.

Peço-lhe a benção ante os verdejantes de nossa terra de canaviais, diante dos morros enfeitados por palmeiras, onde escutamos a zoada da água cristalina das cacimbas, o zunir do vento rodopiando entre os córregos, ouvindo o coaxar das rãs escondidas entre o milhã no regato. Por que nosso Brejo é mágico.

Amigo sem falhas, Carlos Romero é um escritor que nos tira a tristeza - relegai se não sou bom aluno! Ele é o cronista que supera o poeta.



José Nunes é cronista e membro do IHGP
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Nunca imaginamos que nossa geração viveria uma pandemia. Sem guerras, nem pestes, prosseguíamos aos trancos e barrancos, caindo e levant...


Nunca imaginamos que nossa geração viveria uma pandemia. Sem guerras, nem pestes, prosseguíamos aos trancos e barrancos, caindo e levantando entre os altos e baixos próprios da vida na Terra.

Aos com mais idade, resta toda sabedoria. Impossível não ser sábio aquele que amadurece por inteiro, e assim, esquece ou não sente a idade que tem. “Tem a idade que sente”, como diz Carlos Romero.

Mas, a vida prega peças, e assim nos trouxe mais uma. Como se não bastasse a guerra ideológica que passamos a experimentar após a recente escolha do presidente atual, fruto de posições extremadas, por vezes radicais, de ambos os lados, não raro intolerantes. Quem dera nos inspirássemos no célebre ensinamento para “não fazer aos outros aquilo que nos desagrada – esta, a essência de qualquer conduta humana e que bem reflete o que nos ensinou Jesus. Ah se lembrássemos de Voltaire: “Discordo de tudo o que você diz, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-lo”. Mas, ensinamentos são como conselhos. Semeados em terra árida não criam raízes tampouco florescem...

Assim, em meio às angústias da instabilidade política, estoura uma pandemia. Que coisa! Sabe Deus a dimensão do que está por vir. Não em consequência da doença, que, entre muitas das que padecemos não tão fatal nos parece. Mas dos efeitos da recessão que a humanidade experimentará em breve.

Nesses tempos de recato, nada como a reflexão interior para reforma íntima de conceitos e preconceitos, a nos renovar princípios de tolerância e compreensão. Foi daí que veio à tona uma bela lição de Chico Xavier, do livro “Vida e Sexo”, ditado por Emmanuel, que trata da homoafetividade e dos respectivos preconceitos da sociedade, ainda verificados, sem liberdade, igualdade nem fraternidade. Vejamos:

"A homossexualidade, definida no conjunto de suas características por tendência da criatura para a comunhão afetiva com uma outra criatura do mesmo sexo, não encontra explicação fundamental nos estudos psicológicos que tratam do assunto em bases materialistas. Observada a ocorrência, mais com os preconceitos da sociedade, constituída na Terra pela maioria heterossexual, do que com as verdades simples da vida, essa mesma ocorrência vai crescendo de intensidade e de extensão, com o próprio desenvolvimento da Humanidade, e o mundo vê, na atualidade, em todos os países, extensas comunidades de irmãos em experiência dessa espécie, somando milhões de homens e mulheres, solicitando atenção e respeito, em pé de igualdade ao respeito e à atenção devidos às criaturas heterossexuais”.

“Em minhas noções de dignidade do espírito, não consigo entender porque razão esse ou aquele preconceito social impedirá certo número de pessoas de trabalhar e de serem úteis a vida comunitária, unicamente pelo fato de haverem trazido do berço características psicológicas e fisiológicas diferentes da maioria. “Acreditamos que o tempo e a compreensão humana traçarão normas sociais susceptíveis de tranquilizar quantos se vinculam a semelhante segmento da comunidade, assegurando-se-lhes a benção do trabalho com o respeito devido a todos os filhos de Deus. Até que isso se concretize, não vejo qualquer motivo para críticas destrutivas e sarcasmos incompreensíveis para com os nossos irmãos e irmãs portadores de tendências homossexuais, a nosso ver claramente iguais às tendências heterossexuais que assinalam a maioria das criaturas humanas”.

"Dia virá em que a coletividade humana aprenderá, gradativamente, a compreender que os conceitos de normalidade e de anormalidade deixam a desejar quando se trate simplesmente de sinais morfológicos, para se erguerem como agentes mais elevados de definição da dignidade humana, de vez que a individualidade, em si, exalta a vida comunitária pelo próprio comportamento na sustentação do bem de todos”.



Germano Romero é arquiteto e bacharel em música E-mail: germanoromero@gmail.com

Abril viaja pela sua metade. Já é outono, mas o Sol castiga como se ainda fora verão, coisa típica dos trópicos. As chuvas costumam vis...


Abril viaja pela sua metade. Já é outono, mas o Sol castiga como se ainda fora verão, coisa típica dos trópicos. As chuvas costumam visitar a região litorânea em pancadas noturnas, rápidas e fortes, enquanto a invernada já chegou desde janeiro ao Sertão para alegrias e festas dos corações, fazendo o verde ressurgir como o renascimento/ressurreição de um Domingo de Páscoa. Mas abril sempre teve das suas tempestades. 

E este em que (sobre)vivemos é um novo "Abril Despedaçado" (citando o filme do diretor Walter Salles, baseado no romance "Prilli i Thyler" do albanês Ismail Kadaré). Sem armas de fogo ou facas, mas com matança em muitos lugares, abril de um inimigo que avança perigoso, e quebra o silêncio com lágrimas e falas desconexas, que tem alguns humanos como aliados improváveis, já que também são vítimas inescapáveis. 

Eis que surge abril que se anunciava em janeiro. Como um vírus perturbador das almas inconsoláveis, até mesmo com um aviso libertador para os espíritos elevados. 

Abril tem dessas coisas. Mês de encerramentos, transições abruptas, rupturas. A história mostra isso, mesmo que tenham por esperteza "criado" um 31 de março escapar do 1 de abril, o Dia da Mentira. A vida pessoal idem, quando surge com trovoadas e raios e barra de nuvens escuras no horizonte. Em abril inacabado, quando se deixa uma "impressão" sempre é possível encontrar uma nova, mesmo que digital.

Mas se abril é de mudanças inesperadas, eis que, por tabela, é tempo de (re)aberturas. Se é término de estrada, por que não ser um reinício de jornada? Aí abril que se despedaçou terá colado mais à frente suas partes, reunidas em outro formato. Não necessariamente nesse mesmo abril, talvez em mês algum de igual nome, talvez se chame junho, outubro ou um dezembro natalino. 

Fundamental é seguir o rio, absorver a força da tempestade. E aí "the soft rain of april are over" (as leves chuvas de abril terminaram), pois que as tempestades se tornam mais leves após ir embora ou até a natureza em fúria explodir novamente. 

E assim será quando abril fechar sua passagem.

Clóvis Roberto é jornalista (João Pessoa-PB). cclovisroberto@gmail.com

Um vírus me trouxe o inverno. Em menos de um mês, sem chover, trovejar, céu claro e sol forte, uma tormenta caiu como grossas camadas...


Um vírus me trouxe o inverno.

Em menos de um mês, sem chover, trovejar, céu claro e sol forte, uma tormenta caiu como grossas camadas de neve e gelo sobre mim. Portas fechadas. Ligações esparsas e, muitas vezes, movidas aos acordes da carência dos outros. 

Estes também isolados em seus medos invernais. Tediosos de filmes, páginas de livros mal lidos naquela hora de afogamento. Reinventando o mesmo, o si mesmo, o mais mesquinho de si. Outros se mascarando, como sempre quiseram, sob o domínio de um medo que nem bem conhecem. Temem não o vírus, presente no planeta mesmo antes do homem. Temem o outro. Este outro possível portador, como os medievos temiam a peste negra, como os europeus temiam a gripe espanhola, como os africanos temiam o ebola, como os americanos temiam o antraz. Temer o outro passou a ser nossa segurança. Além disto, mais que temer o outro, perder o sentido de solidariedade que seria um traço humano diante das tragédias que a vida anuncia.

Peguei minha toalha e fui ao banho. Permiti as águas correrem e talvez me saciarem, quem sabe me limparem deste infecto mundo. Os felpos de algodão engoliam as gotas d´água sobre minha pele, tal qual um vírus a uma célula. Meus cabelos ainda molhados e desgrenhados à luz do espelho que sempre me vigia, faziam com que finos rios de água escorressem ainda sobre minha face. Nela, percebi minhas rugas. Leitos de rio de sabedoria da pele. Dobras da minha subjetividade que uns chamam velhice. Dentro daqueles sulcos havia rios. O que era antes liso, minha pele juvenil, foi erodida pelo tempo, senhor máximo da vida. Estes secos rios de pele e dobra desenharam em mim um outro. Um outro que sou eu e de quem gosto. 

Bem que eu poderia ser seduzido pelas mágicas fórmulas da juventude a qualquer preço. Por cremes e ácidos preenchedores, atenuantes, revitalizadores, e cirurgias correcionais. Não. Este é meu corpo no seu tempo. Evocar um corpo que superou o tempo é viver uma caricatura de si mesmo. Não quero portar máscaras nenhumas.

Ao pensar nisto diante da minha imagem, esbocei um sorriso. Um sem números de outras rugas e marcas apareceram do nada. Eram parte do meu sorriso. Ri mais ainda. Ri demasiadamente. E quanto mais ria, mais dobras, mais marcas, mais sombras, mais vigor, apareciam. Meus riachos e ribeirinhos de marcas eram também minha doçura diante dos diários apocalipses. Feito isto, chorei. Muitas marcas se foram, como que dissolvidas no sal das lágrimas. Feito terra arada quando chove, que nada mais se vê a não ser a fina lâmina d´água que vivifica o chão sulcado. Meus castanhos olhos se inundaram de borbulhantes fontes. A água escorria pelas colinas das maçãs do meu rosto, pelo vale profundo margeando as narinas, desaguando ora no abismo da minha boca, ora escorrendo no precipício do meu queixo. 

Ali, água, células, bactérias e vírus se juntavam em rodas de vida. Ali, naquele momento, nada os diferenciava como as vãs nomenclaturas da Ciência que vive da separação classificatória. 

Suspirei por um segundo. O espelho se enevoou com o vapor da minha respiração. Desapareci por um tempo por entre o véu quente que soprou entre meus lábios. Por um instante quis me devolver à imagem do espelho. Podia desanuviar o borrão. Não o fiz. Aquele também era eu. Um eu entre nuvens, um eu que se via esfumado e talvez distorcido. Lentamente minha imagem reapareceu. Lentamente meu rosto ressurgiu com seus sulcos e planícies de pele. Havia tantos eus naquela imagem... Sou um eu caleidoscópico, múltiplo e dinâmico. 

Terminei o ritual e fui à janela. Outros tantos ali trancafiados. Outros tantos além isolados. Isolados dos outros. Isolados de si.



Adriano de Léon é Professor de Ciências Sociais (João Pessoa-PB). adrianodeleon77@gmail.com

O século XV apresenta na história da França, um período dificilmente a ser superado por uma época tão conturbada e não menos dramática, co...


O século XV apresenta na história da França, um período dificilmente a ser superado por uma época tão conturbada e não menos dramática, com seu cortejo de surpresas trágicas, violência e crimes, às vezes também, com atos nobres e grandes feitos. Inicialmente, a França retrocedeu após o reinado reparador de Carlos V o Sábio nos desastres da Guerra dos Cem Anos, governando a França durante 16 anos (1364-1380), 11 anos depois do auge da peste negra entre 1346 e 1353, uma das maiores pandemias da história humana, resultando na morte de 75 a 200 milhões de habitantes da Europa e da Ásia. Era o filho mais velho de João II o Bom. Posteriormente sob o trono de um rei louco Carlos VI (1368-1422), sucedendo o pai quando tinha apenas doze anos, com um governo aviltado por um período de 42 anos. Foi rei da França a partir de 1380 até a sua morte em 1422. A regência era estabelecida por seus tios os duques de Bourbon, Anjou, Berry e Borgonha, todos eles engajados na luta pelo poder. Paris, ensanguentada pelos Armagnacs e Borguinhões. Esses dois grupos constituíam os dois partidos oponentes que travaram uma guerra civil, na França paralelamente à Guerra dos Cem Anos. Esse conflito envolvia, de um lado, o Duque da Borgonha, João sem Medo e, do outro Luís, duque de Orléans. Desde 1393, quando Carlos VI enlouquecera, a França era governada por um conselho de regência presidido pela rainha Isabel. A guerra civil entre os Armagnacs e Borguinhões teve início em 23 de novembro de 1407, quando o Duque d'Orleans foi assassinado, por ordem de João sem Medo. A batalha decisiva de Azincourt ocorrida na Guerra dos Cem anos em 25 de outubro de 1415, dia de São Crispim, no norte da França, resultou em uma das maiores vitórias inglesas durante a guerra. O local onde a luta aconteceu foi perto de Artois, cerca de 40 km ao sul de Calais. A vitória de Henrique V da Inglaterra, contra um exército francês numericamente superior, foi um golpe duro para a França e marcou um período sombrio para o país em meados dessa guerra. O rei da Inglaterra coroado rei da França em Notre Dame de Paris. É quase o fim da França.

Revendo o resumo que escrevi acima, lembrei-me da atual situação no nosso Planeta Azul. Uma nova e moderna pandemia transformada em uma guerra brutal, devastadora e cruel, contra um microscópico inimigo que ninguém vê, chamado de coronavírus, que tem a capacidade de matar em pouquíssimo tempo, milhares e milhares de pessoas. Políticos, cientistas, médicos de todo o planeta, desorientados, sem saber o que fazer contra tão potente inimigo. Mais de 100 mil mortes em todo o mundo. Países considerados mais desenvolvidos e ricos, como os Estados Unidos, com um número muito maior de mortos do que seria esperado.

Considerando nosso país de dimensões continentais, e imensas desigualdades sociais e econômicas, não podemos estar otimistas nesta guerra. Quão devastada estará nossa população e nossa economia nos anos que se avizinham? Mais de 30 milhões de pessoas sem direito à água potável e 100 milhões de habitantes sem acesso a esgotos sanitários (TRATA Brasil 2018); pelo menos 12 milhões de pessoas com mais de 15 anos analfabetas (IBGE 2019) e IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) de 0,761 compilado pela ONU em 2018, quando o país ficou em 78o lugar, no mundo.

Comecei então a comparar a situação atual do Brasil com a França do século XV. A peste negra e a pandemia atual do coronavírus. Os Armagnacs e Borguinhões com sua guerra civil e os bolsonaristas e petistas a estimular ódio mortal entre eles, sem a mínima ideia do que poderá ocorrer devido a esse comportamento leviano. Políticos dos mais variados partidos exigindo do governo todo tipo de recursos para seus objetivos pessoais, sem nenhuma preocupação com o erário público e com a difícil situação econômica que grassa no país. O governo federal contra os governos estaduais e municipais. Dezesseis anos de governos anteriores com o maior índice de corrupção desde o descobrimento do Brasil. Os três poderes, cada qual interferindo em áreas fora de suas jurisdições, desprezando totalmente a população brasileira. Grande maioria dos internautas a disparar “fake news” pelos WhatsApps entre si, sem nenhuma preocupação com o prejuízo que essas falsas mensagens poderiam causar ao Brasil. O rei louco Carlos VI na França e nosso presidente atual, totalmente desequilibrado, com seus instintos ditatoriais, continuando a inflamar o país diariamente, indo contra tudo e contra todos, ameaçando com seu lápis-tinta Bic, os ministros escolhidos por ele próprio, pensando apenas nas eleições de 2022.

Depois de tudo que passou, finalmente, a recuperação da França. Joana d'Arc; o duque de Orléans livre; uma série de vitórias; a coroação do rei da França na Catedral de Reims; a pátria francesa quase restaurada; enfim, o duque Felipe de Borgonha, mais poderoso que o rei da França, árbitro entre as duas nações divididas pela luta centenária, lembrando que era filho da França, finalmente vendendo caro o Tratado de Arras, quando foi firmado um acordo entre esse país, o Ducado da Borgonha e a Inglaterra em 1435, na cidade francesa de Arras, no final da Guerra dos Cem Anos, sua adesão definitiva à aliança francesa e à paz. Tratado esse que representou enormes fracassos para os ingleses e grandes vitórias para a França.

Espero que após vencermos esta terrível pandemia, com bom senso e solidariedade para com nossos irmãos mais desassistidos, nosso querido Brasil possa se equilibrar economicamente nos próximos anos. E que os investimentos prioritários a ser efetuados sejam direcionados principalmente para as áreas da saúde, educação e segurança, e que estas sofridas lições nos levem a um país muito mais igualitário e justo.

Sérgio Rolim Mendonça é Engenheiro Sanitarista e Ambiental (João Pessoa-PB)

Numa noite, no ano de 1956, ele entrou estabanado na sala de uma residência em Teixeira – Pb, no pleno decorrer de uma Cantoria de Vi...


Numa noite, no ano de 1956, ele entrou estabanado na sala de uma residência em Teixeira – Pb, no pleno decorrer de uma Cantoria de Viola entre Lourival do Pajeú e Pinto do Monteiro. A forma inoportuna de sua chegada provocou mais uma sextilha famosa de Louro do Pajeú:

Ô Pinto, preste atenção / O mundo está transformado / Veja só Pedro Compasso / Como vem com o passo errado / Os outros compassos riscam / Mas este já vem riscado

Natural da Serra do Teixeira, Pedro Compasso foi um dos primeiros motoristas a se aventurar por aqueles contrafortes da Borborema, tendo se iniciado nos mistérios que passam da centelha à combustão, da tração à rotação e guia, quando ainda bem jovem, levado que foi pela mão do legendário ‘Bibiu’ – decano dos chauffeurs teixeirenses -- para ser seu ‘’moleque de ajuda’’ por acidentadas viagens durante aquele pós-guerra de 1930.

Para a sorte de ambos, o destino os poupou de errar pela “Ladeira da Verônica” (também chamada de Ladeira da Onça, tinha esse nome por ter sido ali onde Verônica Lins de Vasconcelos, esposa do sertanista pernambucano Manoel Lopes Romeu, havia matado uma onça – a facão, diriam uns, a arcabuz, diriam outros – quando à frente de um pequeno bando de serviçais, sobe a serra no ano da graça de 1773, numa ação mais do que temerária, e que tivesse por único objetivo recuperar seu marido que, a pretexto de uma caçada, estava se demorando por aquelas paragens muito além do que fosse recomendável), que era o pesadelo de tantos quantos tivessem de tomar o rumo Norte, que leva ao sertão. Isto devido à descida extremamente abrupta e íngreme a que essa aclive levava, uns 200 metros mais na frente.

Mas, os tempos mudavam. Senhores mais abastados começavam a importar automóveis de diferentes marcas, e, uns anos depois, o Brasil via surgirem os caminhões popularmente conhecidos como Fenemês, da nascente indústria nacional, e isso era razão de sobra para o Estado Novo de Getúlio Vargas resolver espalhar estradas pelo país, e assim, no começo da década de ‘40, iniciou-se a construção da chamada Estrada de Rodagem, que era o que podia haver de mais moderno para aqueles habitantes da serra.

‘Governar é Abrir Estradas’, dizia um jargão da época, e essa máxima se estendeu por todo um período que ia do final dos anos ’30 até a década de ´60. Naquele início, é possível dizer que a vida parecia sorrir para o legendário Bibiu, e, por tabela, para Pedro Compasso.

Aconteceria, porém de, nos anos posteriores, quando já houvesse Bibiu largado a profissão, vitimado por um acidente que lhe comprometeu parte da mobilidade física, que continuasse seu pupilo, Pedro Compasso, a frequentar boléias, e até conseguisse adquirir para si um caminhãozinho velho. Comumente chamado de “fubica’’, este lhe permitia, no entanto, manter-se como autônomo, dono de seu tempo, longe das ordens dos senhores brancos e abastados.

No começo de todo aquele processo, porém, a Serra do Teixeira registraria grande quantidade de acidentes fatais. Os caminhões produzidos na época pela indústria internacional – Studebaker, Alpha Romeu, etc -- não tinham ainda tecnologia satisfatória para enfrentar condições tão adversas em estradas que iam sendo construídas sem observância de quaisquer dos princípios básicos de segurança, tais como hoje os entendemos: acostamento, barras de proteção, sinalização, etc. O sistema de freios, a incipiente resistência do material utilizado na confecção da barra de direção, para citar alguns pontos vulneráveis, não suportavam torções e pressões quando submetidos ao transporte de cargas muito pesadas em ladeiras com inclinação próxima dos 40 gráus.

O carro de Antonio Pereira / Em baixa velocidade / Virou, matando a metade / Do povo bom de Teixeira / Gente boa, hospitaleira / Se acabou nesta enrascada / Com gente ruim não há nada / Não há sequer embaraço / Cadê que Pedro Compasso / Nunca morreu de virada?

(poeta Zé Marcelino)

Mas essa inovação na vida dos brasileiros começara, em Teixeira como em todo canto, a produzir novos profissionais do volante. As continuadas politicas desenvolvimentistas alcançariam seu auge nos anos ’50, e, nas imediações da bomba de gasolina de Aristeu Guedes, onde motoristas faziam ‘ponto’, tornou-se cena comum esses novos profissionais troçando do velho Pedro Compasso (que por esse tempo dividia a antiga constância no volante por essa mais recente, de consumir aguardente) com seu maquinário ultrapassado.

Zombeteiros, aqueles moços punham em dúvida não só a capacidade profissional do velho caminhoneiro, como a da sua esgarçada ferramenta de trabalho, um antigo Volvo de cor escura indefinível, e cuja máquina demorava-se cada vez mais em ceder aos apelos da manivela. Jocosos, gritavam de longe suas provocações a Pedro Compasso. Faziam isso, certamente, para ouvir as respostas espirituosas de sempre:

-- Aonde eu entrar no Recife com 60 km/h de ré, vocês não entram com 30 de frente!”

Magro e alto, Pedro Compasso tinha braços e pernas que, por serem muito longos faziam dele um tipo bastante desengonçado, e que parecia estar sempre ocupando o espaço na forma mais imprevisível. Bebendo em um bar, ele agitava-se e falava num tom de voz que era sempre em sustenido maior. Falava como se estivesse no meio de uma feira abarrotada de pessoas. E talvez por sua verve pitoresca, gostasse, como poucos de se fazer presente às cantorias de viola.

Encerremos com esse verso primoroso do poeta Zé Marcelino, escrito momentos após ‘convencer’ Pedro Compasso a se retirar do seu bar, numa hora da noite já bem tardia. Feito como verdadeiro desabafo, após fechar as seis portas de seu bar:

O diabo que joga o laço / Em tanta gente de bem / Porque um dia, não vem / E leva Pedro Compasso?/ Lhe deixe lá no espaço / Na esfera sideral / Onde seu corpo anormal / Que tanto incomoda e erra / Fique longe cá da terra / Não se veja nem sinal.


Alberto Lacet é artista plástico e escritor. lacet.alberto@gmail.com

A obra mais pontuada – “As bênçãos de Nossa Senhora das Neves” – foi a que, paradoxalmente, mais sofreu revezes com a comissão. Endeusad...


A obra mais pontuada – “As bênçãos de Nossa Senhora das Neves” – foi a que, paradoxalmente, mais sofreu revezes com a comissão. Endeusada de início, alijada em seguida, recuperada depois, essa flutuação de opiniões se deveu à ousadia da proposta. Com sete metros de altura, toda branca, uma face elegantemente recortada, outra praticamente lisa, pareceu, a princípio, pecar contra a exigência de que toda escultura em rotatória tivesse informação e beleza em todos os 360º que sua visão oferecerá aos que transitam de automóvel na cidade. Aos poucos, no entanto, saltou à vista a elegância cônica da imagem vista de costas, que culmina com uma minúscula cruz vazada no alto da “cabeça da Virgem”, repassando sua mensagem a todo o “obelisco” a que parecia se limitar, como se fosse uma capela concebida por Le Corbusier. A comissão discutiu, então, o que se passaria em quem desse uma volta completa ao redor da estátua e descobriu algo mágico: a gradativa revelação que essa “viagem” proporcionará, até que a magnífica Nossa Senhora – criada apenas com recortes no metal – surja em toda a sua singeleza, com a cabeça inclinada, compassiva, o manto com suas dobras criadas apenas com cortes no aço. Outro fator: a idéia, do autor – Marco Aurélio Alcântara Damaceno (Orcan) – de fazer, com a luz, à noite, com que sua obra se metamorfoseie noutra, ainda mais esplêndida, com a cruzinha, na parte de trás, luzindo lá em cima, num requinte impressionante que empresta sentido a todo o resto de seu corpo.

Erickson Campos Brito – pseudônimo Augusto dos Anjos – apresentou o tema “Saudação ao Sol” – de motivos óbvios, já que em João Pessoa o sol nasce primeiro em todo continente americano. Esse escultor teve o mérito de ser o primeiro artista a ter apoio unânime da comissão. Sua obra, compacta, vistosa, majestosa, densa de sentido, bem desenvolvida, cativou imediatamente todos os julgadores, sem exceção. Sua “Saudação ao Sol” impressionou a todos pela beleza de seus seis volumes de ferro em vermelho vivo, o conjunto lembrando, imediatamente, as famosas estátuas que “montam guarda” na costa litorânea da Ilha de Páscoa. Nossa sugestão é a de que o grupo fique voltado para o nascer do sol em Tambaú. Achou-se por bem, ainda, que se negocie com o artista que aumente a altura da obra, de três para cinco ou seis metros, para que sua monumentalidade marque presença em nosso litoral. Ele, evidentemente, também sairá ganhando com isso.

“Guardiã da Cidade” – de Evanice dos Santos Silva (Tanice), que consiste num pássaro que levanta vôo, é de uma elegância tal que fez a comissão, a princípio, duvidar da competência da escultora para realizá-la. Depois de muito debate, concluiu-se que não tínhamos como avaliar os meios do/a artista para tal proeza, pois o pseudônimo nos impedia saber de quem se tratava. “In dubio, pro reo”, diz a Justiça. Resolvemos, portanto, dar-lhe um voto de confiança a ser confirmado – como, aliás, deve acontecer com todos os selecionados – no contato que, fatalmente, acontecerá entre eles e a comissão, com a divulgação do resultado do concurso.

“Revoar” - de Luiz de Farias Barroso (Ícaro), tem os mesmos méritos e problemas da anterior. Sua qualidade principal é a criação de uma arribação de aves que é, ao mesmo tempo, a de um só pássaro, dividida pelos vários fotogramas de seu movimento. A questão levantada é a das possibilidades técnicas do concorrente e a do realismo de seu orçamento para realizar a obra prometida. Cabe, também, ao contato comissão-e-artista, tornar isso bem claro.

Wilson Figueiredo da Silva (Plácido Rivera) submeteu-nos “O Cavaleiro Alado” à apreciação, sendo sua proposta a que mais evoca a arte de Jackson Ribeiro, homenageado pelo certame. O trabalho se impôs ante nós pela presença maciça, teoricamente monumental, mas as dimensões propostas são decepcionantes e perigosas. Dois metros de altura, para um trabalho colocado em meio a uma avenida, é muito pouco. E tem o inconveniente de ser facilmente escalado por crianças, que sofreriam sério risco de ferimentos nas orelhas pontudas do animal representado. Parece-nos que quatro ou cinco metros seria o ideal para a obra, que correu o risco de ser ridicularizada pela comissão ao se constatar que o “cavalo” parecia mais um boi, com o que se pensou em sugerir ao seu criador que mude o nome dela para “Touro Alado”, como os dos assírios, ficando, assim, a evocação paralela com os cavalos-marinhos, feita pelo autor, transferida para o bumba-meu-boi.
Por último temos “Sinergia II”, de “Leonardo da Vinci” (pseudônimo), que mereceu de Flávio Tavares a observação pertinente de que ela trabalha com quadrados mas está em cima de um pedestal triangular, o que lhe confere certo desequilíbrio. Cabe negociar isso com o artista, e também um aumento nas dimensões de sua obra, para que adquira um mínimo da monumentalidade que se exige de uma obra escultórica destinada a lugar público.

Todos os trabalhos não selecionados comoveram a comissão pelo seu número, pela disposição e empenho de seus autores, mas deixaram a desejar pelo aspecto estético e, também pelo temático, sempre sem grandes vôos. A comissão discutiu detidamente a validade de cada proposta A obra “Velas do Cabo Branco”, do autor com pseudônimo de “Tenho Dito”, por exemplo, gerou uma discussão sem fim, por apresentar alguma beleza se vista de dois pontos de vista contrários, mas presença absolutamente nula, se vista dos outros dois, limitada, literalmente, a um mastro. Isso foi considerado, por parte da comissão, como um motivo para torná-la inadequada, desclassificando-a. Foi apresentada ao grupo, inclusive, uma escultura de Roy Lichtenstein – maravilhosa – com o que seria o mesmo problema, no caso resolvido pela colocação da obra ante uma passagem, num jardim, de modo que a visão dela seria exclusiva, de acordo com ela mesma, para quem se aproximasse de um lado ou de outro. No caso, o local seria semelhante: o canteiro no final da Epitácio Pessoa. A escultura de Lichtenstein tem, no entanto, mais espessura e é – infelizmente – de uma beleza tal, que sua falta de “presença redonda” lhe redime a falha, excepcionalidade que a obra concorrente, infelizmente, não tem.

Examinou-se uma segunda “Velas do Cabo Branco”, em granito, majestosa, do concorrente “Granato”, mas com uma falha na apresentação do projeto – pois nele há somente uma foto, um só ponto de vista da escultura – o que é vedado pelo regulamento. Além do mais, sua formulação – bem como a de outras obras suas, apresentadas na sua pasta - está muito vinculada ao cubismo ainda de Picasso e Braque nos inícios desse movimento artístico.

Surgiu, ainda, um “Monumento à Paz”, do candidato “Creso”, em que uma mulher ergue um enorme girassol. Foi unanimemente descartada pela comissão por sua também defasagem, considerada ainda muito dentro do “realismo soviético” e de suas já muito estudadas limitações.

Duas outras obras também mostraram grande coerência com os locais escolhidos para sua entronização: uma bailarina diante do Teatro Santa Roza, e um índio – nesta terra de cariris e tabajaras - na mesma posição do famoso bronze grego representando Poseidon/ Netuno. Mas as intenções dos autores/as tropeçaram na concepção pouco estética dos trabalhos.

Outra peça, “Infância Paraibana”, de “Libra”, pareceu-nos pecar pela pesada composição – dois enormes cubos – buscando leveza com aplicação de pinturas cheias de meninos brincando, o que deveria ter sido feito com altos e baixos relevos, não com a assimilação de outra arte.

considerações do autor sobre as esculturas paraibanas candidatas a figurar no cenário urbano da nossa capital, como então presidente da comissão avaliadora.


W. J. Solha é escritor, dramaturgo, artista plástico e escritor (João Pessoa-PB). waldemarsolha@gmail.com

Para escrever texto apreciável, o autor precisa sentir e viver intensamente o tema escolhido, deixando-o numa madorna antes de colocar o ...


Para escrever texto apreciável, o autor precisa sentir e viver intensamente o tema escolhido, deixando-o numa madorna antes de colocar o ponto final. No entender de Stendhal, para se tornar escritor, “é necessário se atrever a sentir”. Sem deixar de lado este ensinamento, recorro à frase de Cervantes, quase quinhentos anos atrás, retirada do “O Amante Liberal”, ao afirmar que, “quando se sabe sentir, sabe-se dizer”.

Sentir e dizer, conhecer e escrever é o desejo que acompanha todo escritor: saber sentir e viver aquilo que escreve. Buscando superar-se e tentando suplantar cada escrito anterior, seja contando uma história ou narrando um fato do cotidiano, o escritor ou poeta, convive com emoções.

Sem emoção não se tem poesia, não se terá um texto considerável. Cervantes e outros encontram no romance a fórmula de abordar a realidade de uma época amplamente expressando o desejo da alma, por isso são autores universais.

Na Paraíba surgem muitos poetas. Não podemos negar, aqui é onde se publica e divulga poesia em larga escala. Isso é bom e nos deixa contentes. A poesia que alimenta e sacia a sede da alma.

Houve um tempo em que as expressões literárias chegavam às escolas e aos lares com maior frequência, porque nestes lugares é onde se plantam sementes que dão frutos. Se há uma avalanche de poetas e escritores na Paraíba, também temos poemas que são um ajuntamento de palavras. O poeta precisa de inspiração, da inspiração que vem com os encantos da musa, da Natureza, de um acontecimento, do que vivencia, das emoções sentidas.

Admiro o poema no qual as pessoas encontram a beleza espiritual, e se embriagam pela emoção. Cada palavra, cada verso fazendo emergir uma centelha da imagem daquilo que é possível ser observado no fundo da alma.

Sou um leitor contrito e obediente às minhas quimeras ou às alheias. Sou um poeta lento e um leitor reservado, a cada poeta que leio tento encontrar uma definição para a minha emoção, a partir do que ele, poeta, sentiu ao escrever seu texto.

Para mim, desculpem se repito alguém, mas poesia é emoção. Se o poeta consegue colocar emoção nas palavras, é um bom começo. “Um poeta vale, feiticeiramente, pelo seu poder encantatório”, assim falou com propriedade Mário Quintana.

Se a poesia consegue levar o leitor a definir a voz do vento que sopra nas árvores, ouvindo melhor as ondas do mar, então cumpriu a sua missão. Uma das missões da poesia é levar a pessoa a sentir prazer e alegria. Defendo uma poesia que expresse o sentimento de liberdade da alma e do corpo, criando uma consciência transformadora na pessoa, seja emocional, política ou social. O papel da poesia é transformar as pessoas. Assim, então, essa poesia cumpriu com sua missão de transformar o mundo a partir das mudanças que provoca na pessoa.

É essa a poesia que esperamos chegar às mãos das pessoas que, de posse dela, sejam embriagadas pela emoção. Que haja livros em todos os recantos, nas periferias das cidades, ou no mais distante rincão de terra esturricada ou encharcada.

Para Murilo Mendes, poeta que buscava as coisas silenciosas, “a poesia pode sintetizar todas as outras formas de expressão artísticas”.

Acredito no poeta atento a um acontecimento que mexa com a memória, com a criatividade, algo que atice a criação poética no leitor.

O escritor é um leão que se aventura a caçar palavras que possam expressar seu pensamento concisamente, como definia Aristóteles, segundo o qual importava que fosse uma escrita fácil de ler e de pronunciar. Do contrário, tornaria árdua a leitura do texto ou do discurso ao público. Na poesia é conceito válido.

José Nunes é escritor, membro do IHGP (João Pessoa-PB). jnunes48@hotmail.com

A pandemia do coronavirus tem pressionado a humanidade a entender que é hora de promover uma revolução solidária. A sociedade, em todo ...


A pandemia do coronavirus tem pressionado a humanidade a entender que é hora de promover uma revolução solidária. A sociedade, em todo o mundo, tendo que fazer escolhas entre manter-se numa postura de egoísmo e ganância ou adotar condutas de colaboração recíproca, sem vinculações a limites geográficos ou diferenças de ordem social, econômica e política. A necessidade de assumir o espírito de fraternidade.

Estamos sendo intimados a perceber os sentimentos alheios, despertando valores íntimos como compaixão e piedade. Fazendo prevalecer o altruísmo, praticando gestos capazes de transformar pessoas e circunstâncias, no propósito voluntário de contribuir sem esperar algo em troca.

O presidente de El Salvador, dirigindo-se a grandes empresários do seu país, afirmou: “Vocês têm dinheiro para viver dez vidas, mas agora ao precisarem de um hospital e um respirador, de nada vai adiantar a sua conta bancária”. Este alerta define bem a situação em que todos nos encontramos. Para sobreviver necessitamos da ajuda uns dos outros. Não entender isso é tomar partido pela política da morte.

O coronavírus surgiu como uma doença dos ricos. Porém ela socializou-se alcançando todas as classes sociais, com danos maiores, obviamente, aos que vivem em condições de pobreza. Não é difícil chegar a essa conclusão. A propagação comunitária invadindo as periferias, onde o isolamento social torna-se impossível de ser respeitado. Sem falar que milhões de pessoas moram em áreas urbanas sem saneamento básico adequado. Essa população sofre um efeito mais devastador da pandemia.

Urge revaliarmos o modo de ver o mundo ao nosso redor. Solidariamente, nos envolvermos em ações que possam mitigar o sofrimento dos mais necessitados, valorizando as vidas das pessoas, sem a preocupação imediata com a perda de lucros dos que vivem de ganhos econômicos. A crise sanitária que nos amedronta vem provocando espontâneas manifestações de apoio solidário, sem esperarem a necessária intervenção dos poderes públicos.

Começo a acreditar num avanço revolucionário de consciência coletiva, capaz de subverter a lógica capitalista de concentração de riquezas e de exclusão social. As tragédias são mais eficazmente contidas quando se verificam procedimentos pautados na cooperação, no entendimento e na paz. A onda de solidariedade que estamos assistindo é, sem qualquer dúvida, a forma mais correta de combater a pandemia do coronavírus. Unidos conseguiremos vencer os medos e as incertezas do momento.

Tomara que saiamos desse quadro de grandes preocupações menos individualistas, oferecendo mais importância ao convívio social, sem discriminações, respeitando as dessemelhanças. Fortaleçamos o grau de coalizão da sociedade promovendo a revolução solidária que o mundo está a carecer.


Rui Leitão é jornalista e escritor (João Pessoa-PB). iurleitao@hotmail.com

O amigo me mandou algumas fotografias – por correio eletrônico (e por isso mesmo não sei se o nome está correto; essas imagens digita...


O amigo me mandou algumas fotografias – por correio eletrônico (e por isso mesmo não sei se o nome está correto; essas imagens digitais são “fotografias”? Depois consultemos nosso amigo Aurélio; por hora fechemos o parêntese, literalmente); e chamou aquele álbum de “Uma tarde no centro histórico...”.

Não soubesse eu de que tarde se tratava, diria que aquelas fotografias, de prédios antigos e praças, haviam sido tiradas em paragens distantes, em alguma cidadezinha pacata das tantas terras estrangeiras que ele habituara-se a visitar, dada ausência de alvoroço nas ruas. Porém, aqueles velhos casarões e aqueles singelos jardins estão bem aqui, na nossa cidade, no aludido e esquecido centro histórico. Vendo essas ruas vazias – é domingo à tarde na imagem paralisada pela tecnologia –, onde agora, no centro da ribalta, se destacam as construções – que normalmente são meros figurantes dos astros principais, os transeuntes frenéticos que ali resolvem suas vidas e cumprem suas rotinas humanas nos dias que chamamos de úteis –, percebo como são belas, e que geralmente me passam despercebidas.

Quão formosos ainda, posto que descuidados, os prédios que outrora abrigaram tantas almas que já não coabitam conosco. Naquela casa amarela – será que sempre o fora? –, a da amiga, a moça deve ter-se escondido do pretendente indesejado por desajeitado, ainda que por seu pai abraçado por abastado (permitam-me a aliteração maljeitosa); naqueloutra, azul, o senhor via passar, tenho certeza, da grande janela, as pessoas indo e vindo e inevitavelmente os anos, esses apenas indo, porquanto jamais voltavam os ingratos, na ampulheta perversa da existência (que absurdo! cronista; pois não é você mesmo quem está a descrever a beleza da vida? Otimismo homem, otimismo...). Ah, que belo jardim! Se hoje vendem panelas e pilhas em suas alamedas, outrora casais ali se descobriam – ou se despediam (mania de aliteração!) – e pais orgulhosos expunham o mundo aos seus filhos, e estes àquele, pois inevitável. A igreja: um dia orgulhou-se de ser o prédio mais alto da cidade; já não o é. A divindade foi perdendo espaço para o homem, que se foi amontoando em edifícios.

Assim com as casas, assim com as gentes. Se me aflora a beleza das construções apenas quando em fotos, olvidando-a na pressa da vida, na desatenção com o mundo que me rodeia, na primariedade egoística do que é apenas meu – e não é muita coisa –, não digo diferente das pessoas. Observando aquelas paredes e portas e janelas, olhando detidamente os jardins, passo a ver sorrisos, desalentos e a ouvir vozes. E o reboco torna-se pele; e as janelas, olhos; e as portas, bocas; e a chuva não passa de lágrimas; não tarda e tenho muitos rostos a encarar-me, indagando-me da sua importância na minha vida. As pessoas me rodeiam e me são importantes, mas só as percebo quando as vejo em velhas fotos, quando observo o intangível passado. Felizes daqueles que não precisam das fotos para enxergar o quanto lhes é importante tudo: os prédios, os jardins, as gentes... Não fui agraciado com essa virtude, mas faço uso de ardil para evitar os atropelos da consciência: não revolvo meus álbuns, para que eles não me exponham a fraqueza.


Douglas Antério é advogado e cronista (Campina Grande-PB).
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Estava a reler o belo romance do suíço Pascal Mercier “Trem noturno para Lisboa” (tradução de Kristina Michahelles, Editora Record) e me de...


Estava a reler o belo romance do suíço Pascal Mercier “Trem noturno para Lisboa” (tradução de Kristina Michahelles, Editora Record) e me detive, à página 213, na inquietação e na angústia que assaltaram o personagem Jorge, no meio da noite, quando tomou consciência de que não haveria mais tempo para ele aprender a tocar o piano que, num impulso, comprara recentemente. “O piano de cauda – desde essa noite, ele me lembra que existem coisas que eu não vou mais ter tempo de fazer”, diz Jorge, para continuar: “Não se trata de pequenas alegrias insignificantes e prazeres fugidios, como engolir um copo d’água num dia de calor e poeira. Trata-se de coisas que desejamos fazer e experimentar porque só elas podem dar um sentido completo a esta nossa vida muito particular, e porque sem elas a vida permaneceria incompleta, um torso e mero fragmento.”.

Quem já, a partir de certa fase da vida, não experimentou tal desgosto, para não dizer tal tormento? São todos os sentimentos que afloram a partir da consciência da finitude, da brevidade e da precariedade de nossa existência. Simplesmente, de repente, de alguma forma sabemos que não teremos tempo para tudo que desejamos, para tudo que gostaríamos de vivenciar no tempo mais ou menos curto de nossa passagem pelo mundo. Que restarão sempre coisas que não serão feitas, experiências que não serão vividas, ou seja, que o que poderemos degustar da vida será sempre aquém de nossa fome, razão mais do que suficiente para inquietações e angústias. Ou não.

É verdade: ou não. Pois poderia ser de outra forma? Haverá porventura alguma vida plena, totalmente realizada, a ponto de não restar nada a concluir, nenhum desejo e nenhum sonho a satisfazer, alguma frustração, mínima que seja, que é a marca mesma de nossa limitada humanidade?

Alguém falou que deveríamos ter duas vidas: a primeira como ensaio; a segunda pra valer, sem apelação. Concordo. Mas sabendo que ainda assim seria pouco e que na segunda vez, mesmo com todo o suposto aprendizado anterior, ocorreriam erros, omissões e incompletudes. Como se diz, será sempre pouca vida para tanta arte.

O remédio, se remédio há, não pode ser outro senão aceitar com sabedoria e resignação essas tais incompletudes, inevitáveis que são. Aceitemos que sempre haverá um intocado piano na sala de todos nós, “monumento negro ao sonho irrealizável de uma vida plena”.

E o melhor de tudo, suprassumo da sapiência, seria nem mesmo chegar a comprar o tal piano. Saber logo, sem ilusões, e de uma vez por todas, que não teremos tempo de aprender a tocá-lo. Não nessa vida única, sem segunda chance, que nos cabe.


Francisco Gil Messias é ex-procurador-geral da UFPB
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(in memoriam) E eis que chega a   Semana   Santa   mostrando um Jesus traído, condenado, chicoteado, ensanguentado e, por fim, cr...


(in memoriam)
E eis que chega a Semana Santa mostrando um Jesus traído, condenado, chicoteado, ensanguentado e, por fim, crucificado, no alto de um monte chamado o Monte da Caveira. Lá estava ele, de braços abertos, ensanguentado e tendo como companheiro dois marginais.

E é essa imagem que a Semana Santa traz para as ruas, cinema, teatro, televisão, espetáculos que rendem bom dinheiro para os seus promotores. Tanta coisa bonita no Evangelho para se evocar e mostrar, mas o que se quer exigir, naquele momento, é um Jesus moribundo, coroado de espinhos, humilhado e ofendido. E haja chicotadas no corpo magro, haja cusparadas no rosto suado, haja humilhações e mais humilhações.

Essa a imagem que mais atrai as multidões e os religiosos. Essa a imagem que mais fascina o público, que mais é evocada nas comemorações da semana que passou.

Não. Dependesse de mim, jamais seriam relembrados tais episódios. Jamais eu gostaria de ver, todo ano, um filho em situações tão dolorosas... Que as Escrituras evoquem aquela triste peregrinação do Mestre, está bem. Mas que tudo fique apenas registrado na História. Para que dramatizar e relembrar tão dolorosos sentimentos? Não haveria aí um triste sadismo? E eu chego até ao exagero – e o leitor vá me perdoando minha susceptibilidade – de sugerir que não se evoque mais a imagem de Jesus na cruz. Não gosto de vê-lo pregado numa cruz, nas igrejas, nas repartições públicas, nas assembleias legislativas e em volta dos pescoços das mulheres.

A imagem do Jesus que eu quero ver não é a do Jesus morto, mas a do Jesus vivo, do Jesus convidando-nos a olhar os lírios do campo e as aves do céu, do Jesus, no alto da montanha, pregando o seu sermão inaugural, do Jesus convidando as criançcnhas para um abraço fraterno e paterno, o do Jesus limpando leprosos, dando a vista aos cegos, levantando paralíticos, dando voz aos mudos, o do Jesus no Monte Tabor conversando com os espíritos, todo iluminado, do Jesus levitando sobre as águas... Ah, leitor, esse o Jesus que eu desejo ver sempre.

E abaixo o luto, a tristeza, a agonia. Ao invés de agonia, o que desejamos é alegria. Jesus nunca foi pessimista. Todo o seu Evangelho é um hino à fé. "Pedi e vos será dado, buscai e achareis, batei e se abrir-vos-á", recomendava ele. "Eu sou o caminho, a verdade e a vida".

Luto na Semana Santa, jamais! O luto, há muito tempo que deixou ser usado quando uma pessoa morria. E havia aquele que usava o chamado luto fechado... Felizmente, acabou-se o costume. Não é com luto que se deve expressar a saudade dos mortos queridos, tanto é assim que os caixões mortuários estão sempre enfeitados de flores. Sim, flores que são o sorriso da Natureza.