Chegou ao mundo num cômodo de paredes desbotadas da casa da cancela, de cuja janela frontal o pai, guarda fiscal, pastorava as idas e vinda...

O parto


Chegou ao mundo num cômodo de paredes desbotadas da casa da cancela, de cuja janela frontal o pai, guarda fiscal, pastorava as idas e vindas dos carros meio vazios, meio carregados de quartos de bodes e feixes de caroá, a fim de, pelo seu temperamento, mais indultar do que cobrar a derrama da época. O pai trazia em si uma generosidade inata, que tangenciava a vaidade. Nunca se soube definir direito aquele sentimento: bondade ou orgulho? Mas, orgulho do quê, haveria de ter o pai? De uma suposta ancestralidade nobre perdida nas brumas da fantasia? Da honestidade decantada pelo meio milhar de compadres que lhe tomavam a mão para tutelar e exemplar seus primogênitos? Dos cabelos negros, inteiros da fronte até à nuca, algo castiços, sempre cuidadosamente engomados? Do nariz adunco projetando-se sobre os lábios finos, herança mourisca de priscas eras? Das necessidades poucas, estoicas, desde o de comer até as festanças? Não sei... Vá ver que era daquela doçura mesma, que, com olhos marejados, ele expressava na fácies quando contemplava algum desses pequenos. Coisa de pai-avô. Casou maduro, passado do ponto. Tanto que pôs todos a perder com essa delicadeza inapropriada em tantos momentos em que a palmatória teria sido a solução, o ponto final em causos nos quais não se via o bom termo.

O fato é que eram tempos difíceis, como difícil era arrancar daquele torrão árido alguma réstia de umidade fora da breve e errônea estação das águas: precisava-se cavoucar léguas, intestino da terra adentro, ainda que às margens do que fora um caudaloso rio na última enxurrada. Como um bêbado - arquétipo abundante por lá, aliás -, cujo balouçante tropeçar não se sabe se e quando o conduzirá para casa, assim o era o inverno naquilo que se convencionou chamar Quadrilátero das Secas, mercê de algum arranjo da politicalha sempre atenta na cabala dos minguados votinhos do vilarejo. Nome bonito, pomposo, mas de serventia nenhuma, exceto confundir ainda mais a já insignificante representação da região nos mapas escolares.

Não havia produção regular de nada; só o acinzentado do horizonte, marchetado pelo azul incandescente do céu sem nuvens e pelo esverdeado de uma longínqua cúpula de umbuzeiro, soldado valente de um exército exaurido de sede. Uma cabra aqui, outra acolá, mascando a gosma tóxica e cáustica produzida pelo avelós, era o que se via de criação. O alimento de uma rês bovina, o farelo ensacado, tornava-se rapidamente mais caro do que sua própria cabeça. E até a palma forrageira, essa heroína, só suportava até certo ponto as temperaturas vulcânicas do estio implacável da caatinga. Depois, perdia a seiva e descangotava o pescoço, qual mamulengo triste que chorasse a falta d’água. O gado, coitado, abandonava as forças e se deitava no pó, com as costelas furando a pele macilenta e o olhar melancólico num barreiro esturricado qualquer. Aí só a tipoia para o manter de pé mais alguns dias, antes do fim. Um lugar pobre, afinal; pobre de Jó. Só a desnutrida prefeitura mantinha algo de vida naquela paisagem surreal, pagando mês sim, mês não, derréis disputados apaixonadamente pelos aliados da facção ora entronada.

Voltando ao moleque, ficou mouro mesmo, que nem o pai, exceto pelo nariz adunco, que não herdou, e acrescido de umas sardas salientes pelas frontes, enquanto os outros saíram aos galegos sararás do brejo sumarento das bandas do Sul. Sobrolhos espessos emoldurando olhos perscrutadores do fundo das coisas. Com a sorte entregue às moiras, por um milagre não teve o fio da vida cortado já no primeiro segundo em que, aos engasgos, chegou aos seus.

A mãe, mulher pequena, pele clara, cachos acobreados caindo na testa, mais sedutora do que bonita, contou que as estocadas agudas que prenunciaram a chegada da raspa de tacho começaram à boca da noite, quando, na calçada alta, as comadres tricotavam em bilros a vida do minúsculo município. Certo momento, com as ancas alquebradas de parturiente pedindo clemência, foi lá para dentro, recolher-se na cama de jacarandá, anciã de molas barulhentas, herança de sabe-se lá qual antepassada. Decidira aguardar deitada o rompimento do invólucro que mantinha atado a si aquele que seria seu quarto filho, engendrado ali, no cariri ressequido de chuvas, todavia pródigo de presságios. Estava tranquila. Tinha fama de boa parideira: rápida em expulsar do conforto uterino o vitelo que gerara. A bem da verdade, esse moleque vingara por sua conta e risco, aproveitando-se, matreiro, de um descuido entre regras mal anotadas. Três era uma boa prole. Avara, inclusive, num tempo em que o eito pedia oito ou dez. Mas não havia eito. A mania do pai era educar todo mundo na capital. Não aceitava ver rapazes sem estudar, arando calhaus velhos de terra, valendo pouco mais ou nada. Sensato, o pai. Sempre sensato. Nunca quis outro espólio do velho atarracado de bigodes fartos que lhe educara senão um surrado relógio de algibeira, cuja tampa em metal nobre, enfeitada de arabescos, soava uma sineta ao ser aberta.

Às horas tantas, a natureza desembainhou seu cutelo. Era chegado o momento em que a mulher, sozinha na sua agonia e, ao mesmo tempo, na maravilha de dar à luz, estrebucha de dor e alegria. A mãe rogou pela parteira amblíope, de feições caucasianas, que a socorria nesses decisivos instantes. O pai saiu do quarto. Elas e ninguém mais, na atmosfera baça, higienizada pelos vapores da água fervente, haveriam de se entender.

A barra surgiu, tingindo de amarelo-ouro a encosta da serra; o sol agigantou-se no firmamento, esquentando o lombo dos lagartos e das gentes. E nada de coroar. Angústia a não mais poder. A miúda protagonista gemia entredentes os terrores de todas as mães, suplicando a São José, pai de Cristo e devoção da casa, pela sua própria e pela sorte daquela entezinho que hesitava em chegar, por mais força que ela fizesse. Lá pelas onze, exangue pela dilatação máxima, a mãe emitiu um som gutural, enquanto se mostrava pela abertura ensanguentada um pequeno crânio, redondo como uma melancia, envolvido pela placenta e enlaçado pelo rugoso cordão umbilical. Daí por diante, travou-se a luta do rochedo com o mar. Com mãos de prestidigitadora, a parteira conduziu delicadamente o pequeno ser de volta ao canal de parto para, numa manipulação às cegas, tentar desenlaçá-lo, ironicamente do tubo pelo qual sorvera os nutrientes que lhe permitiram aportar ali, do ventre penumbroso e liquefeito para o lume frio da casa da cancela, àquelas horas de Deus. Uma noite e um dia se consumiam nessa peleja.

O crepúsculo chegou com a mãe desacordada e aquele trapinho, roxo como uma estola episcopal, no colo da parteira. “Chame o padre, para seu menino não morrer pagão”, disse ela, grave, mirando o pai, enquanto enxugava a face gotejante de suor. “A mãe só precisa de água de beber e sossego”, e deu o bom combate como encerrado. Por teimosia ou confiança, o pai não se moveu da cadeira. Deixou que o manto suave do breu cobrisse o mundo, seus extenuados convivas, e entregou-se, ele próprio, a uma vigília confusa.

Lá para os lados da Serra da Engabelada, uma velha coruja arregalou ainda mais os olhos cintilantes, piou forte, um pio de arauto para se impor aos notívagos de todos os clãs, e bateu as asas poderosas contra a silhueta prateada da lua, celebrando, num voo monumental, a chegada de mais um filhote no seu território.

Pois assim que a ampulheta virou e a nova alvorada perpassou as telhas vãs, rastreando de luz o piso de gastos mosaicos, a mãe criou tento, apoiou-se nos cotovelos, içou-se da cama e, arrastando penosamente as pernas inchadas, dispôs o peito latejante de colostro à ávida sucção do rebento, que dormitava sob os panos, com a respiração curtinha de um cabrito. Mal ele pegou a auréola intumescida do mamilo com a boquinha ansiosa, o ar puro e cauterizador abriu caminho pela traqueia, chegando até os pulmõezinhos constipados de muco. E a pele arroxeada, grudenta com os restolhos da peleja, ganhou um matiz avermelhado, sanguíneo, e como que se descongestionou, acomodando mãe e filho naquele idílio de vida.


Irenaldo Quintans é economista e escritor

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