“Você é um subversivo!”, gritou o colega ao telefone.
Fui pego de surpresa. Subversivo? Eu? A palavra, a princípio me pareceu familiar. Há muuuitos anos eu não escutava isso.
Tudo começou com uma discussão, a princípio saudável, com meu grande amigo, antigo colega, que vivenciou comigo momentos agradáveis. Falávamos sobre o momento político atual. Eu criticava o presidente, dizia que era medíocre e ele defendia.
Foi quando comecei a dar fundamentação à minha opinião, ele sentiu-se encurralado, e reagiu como reagiam no passado de nossas discussões políticas, quando a razão fugia: fazendo ataques pessoais ao dono da opinião divergente, dizendo que é comunista, petista e outros epítetos.
Subversivo, eu? A palavra me soou mágica. Foi quando eu voei no tempo (acho que não tenho a doença de Alzenheimer pois ainda consigo voar no tempo e dele retornar!). Voltei 50 anos no passado, pousando suavemente em 1968.
Foi um ano mágico! Quantas coisas aconteceram, boas e más. Nesse ano o Botafogo foi campeão carioca. O filme 2001 Uma Odisséia no Espaço foi o grande lançamento do ano. Concordo com Zuenir Ventura: 1968 começou e não terminou.
Foi o meu primeiro ano no científico do Liceu Paraibano. Nova turma, novos colegas, novas amizades. Nova mentalidade, a puberdade se havia ido embora, depois de muito brincar no ginásio eu finalmente me tornara um adulto responsável.
O Liceu dos anos 1960 era um lugar mágico. Um estilo de vida estudantil totalmente diferente do que eu tinha experimentado, até então. Fascinante! Liberdade total, diferente dos outros colégios até então. Só passava quem tivesse responsabilidade. E como eu estudei! Sem deixar de brincar, aprendi a dosar. O Grêmio Estudantil era onde nos encontrávamos, nos intervalos, para jogar xadrez, ouvir música e discutir política.
Estávamos no quinto ano da ditadura militar. Mas em 1968 começamos a respirar um clima primaveril que varreu o mundo todo. Aqui não foi diferente. Prenunciavam-se mudanças. Discutia-se a implantação de uma política de ensino importada dos Estados Unidos, a qual os estudantes brasileiros repeliam com veemência. Tratava-se do Acordo MEC-USAID, que até hoje eu não sei o que era.
Misturando com os estudos participei ativamente como representante da classe, pichando paredes e distribuindo panfletos. Foi o ano das grandes passeatas. Reuníamos-nos em frente à catedral. Depois caminhávamos em direção ao Palácio do Governo, uma multidão na contramão. Geralmente não conseguíamos chegar até a Praça João Pessoa, dos Três Poderes, porque a polícia baixava o cassetete antes disso.
Protestávamos sobre tudo: liberdade de imprensa, preço das passagens, guerra do Vietnã, liberdade de opinião. E principalmente contra a ditadura militar.
Numa dessas passeatas fomos dispersados violentamente pela polícia, ao entrarmos no beco da rua Conselheiro Henriques. Eu estava com uma companheira de atividades subversivas, Mone Pessoa, irmã de meu colega e amigo João Alberto Pessoa. Eu poderia ter corrido, mas deixá-la-ia sozinha no meio de três policiais armados de cassetetes e espingardas. Não consegui socorrê-la. Resultado: apanhamos os dois!
Lá pra setembro ocupamos por três dias o Cassino da Lagoa, onde à época funcionava o CÉU - Clube do Estudante Universitário. A polícia militar nos desalojou debaixo de cacete, inclusive quebrando a radiola na hora em que tocava o Hino da Liberdade: “Já podeis da pátria fiiilhos...”
Depois, ocupamos por iguais três dias a FaFi, Faculdade de Filosofia. Desta vez quem nos expulsou “pacificamente” foi a Polícia Federal. Nesse momento tive a oportunidade de assistir a uma cena que me marcou até hoje.
Enquanto os policiais, armados de metralhadoras, nos botavam para fora e fechavam as portas da FaFi, Everaldo Júnior subiu numa balaustrada e fez um discurso violento contra a ditadura, a PF e o Superintendente da PF à sua frente, sujeito chamado Emilio Romano, que assistiu contricto, trêmulo, porém impassível.
Ao longo da semana nos reuníamos secretamente para ler ou ouvir o que era proibido. Lembro-me de ter escutado secretamente o disco da peça Arena Canta Zumbi, num quarto dos fundos da casa de Karlov Neves de Lima, irmão de Babi. Era a época do “É proibido proibir!”
Nos fins de semana nos divertíamos muito singrando as noites de João Pessoa. Durante a semana tinha o xadrez e o gamão do Esporte Clube Cabo Branco. Nos fins de semana tinha o Jantar dançante do Clube Cabo Branco, as noitadas no Elite Bar, Zé Rubens Jangada dando um show de bateria, especialmente no samba-rock.
Tinha a Toca do Coelho, onde passávamos quase a noite toda dançando em 1 metro quadrado de pista, coladinhos. Depois podíamos finalizar a noite na churrascaria Bambu, no bordel da rua Maciel Pinheiro ou no Independente Atlético Clube.
Pois foi justamente tudo isso o que o amigo me evocou, essa deliciosa volta ao passado, ao pensar que estava me ofendendo. Na idade em que eu estou, ser assim chamado chega a ser até lisonjeiro.
“Subversivo!” Não me ofendi. Respondi, agradecendo:
“Touché, meu amigo!”
José Mário Espínola
Subversivo aposentado
José Mário Espínola é médico e escritor