Queria poder escrever sobre o Amazonas ou a Amazônia. Quem, no ramo, não curte essa vontade? O rio imenso, primeiro orgulho interno e fama...

O contrassenso pasmoso

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Queria poder escrever sobre o Amazonas ou a Amazônia. Quem, no ramo, não curte essa vontade? O rio imenso, primeiro orgulho interno e fama universal do Brasil, irrigando o maior bioma do mundo, a Amazônia. Mas bem cedo, menino ainda (e ainda mais por ser menino), o mapa que mandaram o menino pintar de verde de mangueira foi perdendo a alegria, ficando sempre mais escuro e impenetrável.

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O avô Chico Avelino havia se juntado aos judeus errantes do Ceará, atraídos pelo ouro fácil dos seringais, e voltou ao Brejo de mãos vazias, com sequelas de veneno de cobra e fraco do juízo. Vó Pastora teve de apressar o muque dos onze filhos, independente de idade, na cavação da roça brejeira da sobrevivência. E o neto desgarrado, adotado fora da tribo, já começara a ver coisas pretas por baixo da beleza colorida dos antigos lápis John Faber.

Alguns anos depois, curioso de saber, cai nas mãos do neto uma página de Euclides da Cunha onde se lê, “À margem da História”, que o imenso Amazonas é o menos brasileiro dos rios. Devastador da terra e da mata, um “estranho adversário, entregue, dia e noite à faina de solapar a sua própria terra”. Um demolidor de ilhas, barrancos, montes, do qual as próprias margens fogem dele. Um contrassenso pasmoso na linguagem épica do maior escritor brasileiro, que me mandava de volta às histórias dos que haviam me criado, parentes mais remediados do infortunado avô.

Depois - bem depois - vem “A Selva” do português Ferreira de Castro. Como Euclides, ele esteve lá, e mais que Euclides, provou do fel. Moço ainda, ele entrou na selva, atolou as botas da aventura no seringal para descrever em linguagem de grande romancista a geena em que os brasileiros se esfrangalhavam para mitigar a fome. Trocavam a terra que matava por falta de água pela terra que matava por água em excesso.

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E fui buscar na literatura portuguesa, não com as mesmas palavras, o jugo infame que levava meu avô a trocar o pirarucu pegado de mão nos alagados do seringal pelos nacos de sal, farinha e cachaça no barracão do atravessador da goma elástica importada pelos precursores do mercado global.

Meu avô nunca recebeu dinheiro, sempre estava devendo. Deixaram-no escapar num barco clandestino até o Pará porque, coitado, já não tinha o juízo.

Muito depois é que descobriram que a Amazônia valia por sua função no equilíbrio ambiental do planeta. O que estava por baixo, no fundo da selva aquática, não mereceu mais que registros solitários e impotentes como os de Rondon e seus seguidores contemporâneos.

A partir do regime militar de 1964 é que se intensificaram a criação do gado e o comércio consentido das madeireiras, resultando em mais um “contrassenso pasmoso” da visão nunca superada de Euclides. Em seu tempo era o inferno verde, hoje é o inferno em chamas.


Gonzaga Rodrigues é escritor e membro da APL

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