O “Memorial do Convento” é um dos principais romances do escritor português José Saramago , Prêmio Nobel de Literatura. O livro trata da c...

O Padre que queria voar

ambiente de leitura carlos romero cronica ensaio pesquisa flavio ramalho de brito padre bartolomeu lourenço gusmão voador aviador inquisicao jose saramago mafra aerostato balao inventor madre paula odivelas
O “Memorial do Convento” é um dos principais romances do escritor português José Saramago, Prêmio Nobel de Literatura. O livro trata da construção, na primeira metade do século 18, de um Convento localizado em Mafra, nos arredores de Lisboa, numa época em que Portugal vivia um período de grande opulência, alimentada pelos fartos carregamentos de ouro e diamantes que chegavam do Brasil.


Para o historiador português Antônio Sérgio, naquele tempo, Portugal se encontrava em um “delírio de luxo beato à custa das minas do Brasil”. E foi esse “luxo beato” que levou à edificação, em Mafra, de um misto de convento e palácio, que era o cumprimento de uma promessa feita pelo rei português D. João V para que a rainha lhe desse um herdeiro.

A partir da construção do convento em Mafra, Saramago costura a trama do seu romance, em que se misturam personagens fictícios e verdadeiros. Da lavra ficcional do grande escritor português surgem os memoráveis protagonistas da história: Baltasar, o Sete Sóis, que só consegue enxergar na claridade, e Blimunda, ou Sete Luas, a mulher que tinha a capacidade de ver por dentro das pessoas.

Entre as figuras da vida real utilizadas por Saramago, destaca-se o cravista e compositor napolitano Domenico Scarlatti, filho de Alessandro Scarlatti, também compositor. Domenico nasceu no mesmo ano de Bach e Haendel e foi um dos músicos mais importantes do século 18. O escritor e crítico Otto Maria Carpeaux considerava-o um gênio da estatura de Vivaldi. Scarlatti foi para Lisboa, atraído pela riqueza da Corte lusitana, para ser professor da princesa Maria Bárbara. Quando ela se tornou Rainha da Espanha, o músico acompanhou-a a Madri, onde faleceu.

Outra figura realçada por Saramago em sua obra é a do padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão, ou Bartolomeu de Gusmão, como ficou mais conhecido, por causa do nome do seu irmão mais novo, Alexandre de Gusmão, secretário do rei português e um dos mais notáveis diplomatas de Portugal no século 18, encarregado da celebração do Tratado de Madri (1750), que substituiu o Tratado de Tordesilhas e definiu os novos limites entre os dois países ibéricos na América do Sul. O Tratado foi de vital importância para a expansão territorial do que é, hoje, o Brasil.

O escritor português Camilo Castello Branco considerava Bartolomeu de Gusmão “o maior homem que o século XVIII deu a Portugal”. Bartolomeu era um “português” nascido no Brasil (1685), na pequena vila de Santos, em São Paulo. Iniciou nas primeiras letras na própria Capitania de São Vicente e, depois, seguindo os passos do seu irmão mais velho, foi, aos oito anos de idade, para o Seminário jesuíta de Cachoeira, na Bahia, onde se destacou pelas suas habilidades e espantosa memória. Concluiu, com quinze anos, o Seminário. No ano seguinte, já existem registros de sua presença em Portugal, onde sua inteligência sobressaiu pelo que “lhe fica tudo que uma vez passou pelos olhos”, como relatava uma crônica contemporânea.

De volta à Bahia, em 1705, desenvolveu para o Seminário de Cachoeira — cujas instalações ficam em um local alto, o que dificultava o abastecimento de água para o prédio — um engenhoso sistema de “bombeamento” da água, a qual provinha de fonte que ficava muito abaixo da edificação. Ele chamou o invento de “maquinismo para fazer subir água”, conforme consta da Cessão de Privilégio, uma espécie de patente, que lhe foi concedida pelo Senado da Bahia. O funcionamento do sistema foi comprovado na presença de vários religiosos, por meio de termo emitido pelo reitor do Seminário de Cachoeira.

Bartolomeu foi ordernado padre secular na Bahia e, em 1708, estava de volta a Portugal para estudar Cânones na Universidade de Coimbra. E é nesse retorno a Portugal que a vida do padre Bartolomeu de Gusmão vai mudar e que ele vai carregar o apelido de Padre Voador pelo resto de seus dias.

Em abril de 1709, Bartolomeu requereu ao rei D. João V um Privilégio para um invento que ele desenvolvera para se “andar no ar da mesma sorte que pela terra e pelo mar, e com mais brevidade, fazendo-se muitas vezes duzentos e mais léguas de caminho por dia”. O que o padre construíra era uma espécie de balão das festas de São João, um balão aerostático que utilizava o princípio da expansão dos gases quando aquecidos e mantidos à mesma pressão. A lei da expansão dos gases ainda não era do conhecimento científico da época.

Com a sua “máquina voadora” concluída, Bartolomeu fez demonstrações da sua utilização em um dos grandes salões do Paço da Ribeira, na presença do rei e de fidalgos. Uma das demonstrações foi assistida pelo Cardeal Conti, que depois se tornaria o papa Inocêncio XIII. As primeiras experiências não foram bem sucedidas, muito mais por falhas na construção do balão do que pelo fundamento teórico em que se baseava o invento, que demonstrava a possibilidade de voos com balões mais leves do que o ar. Existem notícias de que o experimento do padre teria sido motivado por sua observação de que bolhas de sabão flutuavam quando estavam sobre o ar quente.

Correram vários folhetins em Lisboa ridicularizando o insucesso das experiências e a forma de pássaro que o invento do padre teria, mas, hoje, sabe-se, que a “Passarola”, como o povo chamava, com a feição absurda como foi divulgada (objeto de sátiras), possivelmente teve sua estampa desenhada e propagada pelo próprio Bartolomeu de Gusmão, para despistar curiosos sobre sua invenção. A divulgação dessa estapafúrdia estampa da “Passarola” certamente retardou o crédito a Bartolomeu pela prioridade aerostática, porque somente oitenta anos depois do seu artefato os irmãos Montgolfier, na França, viriam a conseguir sucesso com um balão construído com os mesmos princípios utilizados pelo Padre Voador.

Bartolomeu de Gusmão é, atualmente, considerado o primeiro inventor nativo das Américas, pois, quando ele contruiu, na Bahia, o seu “maquinismo para fazer subir água”, Benjamim Franklin — reputado como o precursor da ciência nas Américas — ainda não havia nascido. Quando foi projetado e construído o balão aerostático do Padre Voador, o cultuado cientista norte-americano tinha apenas três anos de idade e ainda tomava mamadeira.

Mesmo com o insucesso da experiência com a “Passarola”, Bartolomeu de Gusmão continuou com seu prestígio inalterado junto a D. João V, que, no ano seguinte, lhe concedeu um novo alvará para a construção de um sistema de esgotamento da água dos porões das embarcações.

Depois do experimento com o balão aerostático, o padre Bartolomeu, talvez desencantado com as críticas satíricas e com o ambiente cultural retrógrado de Portugal na época, que não estimulava experiências científicas, dedicou-se mais ao púlpito, como capelão da Casa Real, tornando-se um dos principais oradores sacros do período que se seguiu ao do padre Antônio Vieira.
Por mais de uma década, Bartolomeu continuou nas graças de D. João V, ao ponto de, em 1720, quando foi criada a Academia Real de História Portuguesa, ter sido ele um dos primeiros acadêmicos escolhidos pelo monarca.

Em determinado momento, Bartolomeu de Gusmão, apesar de protegido do rei, viu-se às voltas com a temida Inquisição portuguesa. Uma versão muito difundida para a perseguição do Santo Ofício ao Padre Voador teria sido uma possível participação dele numa conspiração contra a Madre Paula, do Mosteiro de Odivelas.

O Mosteiro de Odivelas era notabilizado pelos pudins e doces feitos por suas monjas. Dizem que os célebres pastéis de nata de Portugal nasceram lá. O rei D. João V, como todo bom português, apreciava a confeitaria e a doçaria lusitanas, de reconhecidas excelências. Mas o monarca sentia-se atraído, também, pelas freiras que faziam aquelas maravilhosas guloseimas conventuais. Além de chamado “O Magnânimo”, ele era conhecido, com o devido merecimento, como “O Freirático”, devido à preferência por devotadas religiosas.

E foi no Mosteiro de Odivelas que “O Freirático” escolheu a sua favorita, conforme os fartos registros históricos da época, utilizados por Saramago em sua magistral obra. A Madre Paula deu filhos ao rei e adquiriu grande influência nos negócios da Corte. Segundo uma propalada versão, o Padre Voador teria entrado em conluio com outras freiras, com o concurso de feiticeiras, para diminuir a influência da “Trigueirinha”, como a Madre Paula também era conhecida. Conforme essa interpretação, o envolvimento com a feitiçaria teria sido o motivo da ação do Santo Ofício contra o sacerdote.

Essa versão foi desmontada pelo escritor Afonso de Taunay, o mais abalizado biógrafo de Bartolomeu de Gusmão, com a concordância do respeitadíssimo historiador português Jaime Cortesão, com base em depoimento dado à Inquisição espanhola pelo Frei João Álvares, irmão do Padre Voador, que com ele fugiu de Portugal para a Espanha em 1724,. O documento foi encontrado nos anos 1940, em arquivos portugueses.

Por esse depoimento, sabe-se que o padre Bartolomeu havia abjurado o catolicismo e adotara o judaísmo. Naqueles tempos, o sacerdote que se tornasse crente da fé mosaica incorria em um dos mais graves delitos previstos nos códigos punitivos da Inquisição. A revelação da apostasia do Voador se constituiria, segundo Jaime Cortesão, em “um dos maiores escândalos e desaires daquela época, quer para ele, quer para o monarca protetor”.

Possivelmente, avisado de que o Santo Ofício tomara conhecimento da sua abjuração, Bartolomeu tentara embarcar, apressadamente, sem sucesso, para a Inglaterra. Resolveu, então, partir, a pé, para a Espanha, acompanhado do seu irmão João Álvares, um jovem frade carmelita de 21 anos. Para Cortesão “compreende-se bem que o apóstata, em tais e tão escandalosas condições, tivesse fugido, e que em Portugal se houvesse posto como sói dizer-se, uma pedra sobre o caso, tanto ele afetava o ‘decoro real’”.

No curso da viagem, Bartolomeu demonstrou, segundo relato de seu acompanhante, delírios com evidentes sinais de perturbações mentais. Depois de longa caminhada, chegaram a Toledo. Passados poucos dias, talvez debilitado pela extenuante jornada,
Bartolomeu caiu doente. Levado para um hospital, não resistiu e faleceu. O Padre Voador ainda não completara 39 anos.

Em Toledo, na Igreja de San Roman, na antiga capital do reino de Castela, foi colocada, em 1912, uma lápide com a seguinte inscrição:

“En este templo de San Roman martir, reposan los restos de Don Bartolomé Lorenzo de Guzman, presbitero portugues, nacido em la ciudad de Santos, Brasil, en el año de MDCLXXXV, primer inventor de los aerostatos. Fallecido en esta capital em XIX de noviembre de MDCCXXIV La Ciudad de Toledo Te dedica este recuerdo”.

NOTAOs restos mortais do Padre Bartolomeu de Gusmão foram trasladados de Toledo para a Catedral Metropolitana de São Paulo, em 2004, por iniciativa da Força Aérea Brasileira.
Em 1926, durante um congresso internacional de aeronáutica, realizado em Madri, os participantes de 21 países foram a Toledo depositar, na nave da Igreja de San Roman, uma lápide na qual estava inscrito:

“homenaje a Fy Bartolomé Lorenzo de Guzman precursor de l'aeronautica remontando-se en globo el año 1709. Sus hermanos de raza de 21 estados visitaron su tumba y colocaron esta lapide”

No Brasil, Bartolomeu de Gusmão, o Padre Voador, é, atualmente, uma figura praticamente desconhecida.


COMENTE, VIA FACEBOOK
COMENTE, VIA GOOGLE
  1. Parabéns Flávio Ramalho👏👏👏👏 Pelo brilhante texto que nos proporcionou através da divulgação do "Ambiente de leitura Carlos Romero "... maravilhosamente conduzido por Germano Romero..através da ALCR TV.

    ResponderExcluir
  2. Flávio, cada dia, revela-se um excelente articulista, resgatando importantes personagens de nossa história, que caíram no esquecimento. Parabéns!

    ResponderExcluir
  3. Excelente texto, através do qual fiquei sabendo muito sobre A.de Gusmão, antecessor brasileiro, com séculos de diferença do grande Santos Dumont.

    ResponderExcluir
  4. Bom dia.
    Excelente texto, Flávio Brito.
    Continue com sua boa produção.
    Abraços,
    Orlando Gomes

    ResponderExcluir
  5. Mais uma peça de Flávio Brito da série "A História que foi esquecida." Parabens!

    ResponderExcluir

leia também