Em 1950, o Brasil sediava a Copa do Mundo de Futebol. No Rio de Janeiro, fora construído, às pressas, o estádio do Maracanã, onde foram d...

O campeão dos eternos carnavais

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Em 1950, o Brasil sediava a Copa do Mundo de Futebol. No Rio de Janeiro, fora construído, às pressas, o estádio do Maracanã, onde foram disputadas as principais partidas do torneio e que passava a ser o maior estádio do mundo. Ao chegar aos jogos semifinais, o Brasil despontava como favorito para conquistar a Copa. Na última partida, antes de disputar o quadrangular decisivo, o time do Brasil goleara a Suíça por 7x1. No dia 13 de julho, a seleção brasileira entrou em campo para disputar, com a Espanha, o direito de participar da final da competição.

Embora o time da Espanha estivesse, até então, invicto no torneio, ao final da primeira etapa do jogo, o Brasil já ganhava por 3x0. No decorrer do segundo tempo os brasileiros ampliariam a vantagem,
que chegaria ao placar final de 6x1. O escritor Antônio Olinto narrou, no dia seguinte ao jogo, em crônica publicada no “Jornal dos Sports”, o que aconteceu no Maracanã:

“Os lenços transformaram o estádio num fundo inimaginável para a exibição dos brasileiros. Mas os lenços não chegavam. Algo de novo tinha que ser inventado para coroar a vitória [...] foi então que o carioca fez a sua obra-prima. Ressuscitou, de um carnaval de muitos anos atrás o hino da vitória. Aos poucos, daqui, dali, dos lábios de uma mulher, dos lábios de uma criança, de todos os pontos do estádio, surgiu a marcha ‘Touradas em Madri’”.

Para o pesquisador Jairo Severiano, aquele coro de quase 150 mil vozes no estádio transformou-se “numa das maiores demonstrações de canto coletivo que se tem notícia até hoje”. Uma das pessoas presentes ao Maracanã naquele dia conta o episódio: “Eu estava lá, e, lamentavelmente, não pude participar do coral. A emoção não deixou”. O que era compreensível: era o autor da marchinha Touradas em Madri , Carlos Alberto Ferreira Braga,
o Braguinha, o João de Barro, um dos maiores compositores da nossa música popular.

Infelizmente, o espetacular desempenho da seleção brasileira contra a Espanha, embalada pelos gritos de “olés” e pelo coro de “Touradas em Madri” cantado pela torcida presente ao Maracanã, viria causar nos brasileiros um clima de tal soberba e de antecipada vitória na final do campeonato que resultaria, poucos dias depois, em uma das maiores derrotas do esporte nacional, a perda da Copa do Mundo para os uruguaios.

Braguinha teve uma vida longa. Quando morreu, na véspera do Natal de 2006, com quase 100 anos, era um dos últimos remanescentes da chamada Época de Ouro da música popular brasileira. Iniciara cedo, nos tempos de colégio, a sua carreira musical. Depois, fez parte do Bando de Tangarás, um grupo vocal e instrumental que tinha entre os seus componentes duas figuras que viriam a ter grande destaque na música popular do Brasil, Noel Rosa e Almirante. Inicialmente, cada um dos “Tangarás” se autodesignou com o nome artístico de um pássaro. Mas, somente vingou o apelido de Braguinha, “João de Barro”, escolhido talvez em razão do curso de arquitetura que ele, então, fazia.

Embora tenha gravado alguns discos interpretando composições suas (com o nome de Carlos Braga), com o acompanhamento do “Bando de Tangarás”, Braguinha logo desistiu da carreira de cantor, o que fez também com o curso de arquitetura, abandonado no segundo ano.
Começou a se dedicar mais intensamente à composição e a se envolver diretamente com o ambiente da música. Em 1933, João de Barro conseguiu o seu primeiro grande êxito em um carnaval, com a marchinha Moreninha da praia .

Durante a década de 1920, o samba e a marcha haviam despontado como gêneros ligados ao carnaval do Rio de Janeiro. Contemporaneamente ao surgimento do samba, de raízes africanas e originário das camadas mais pobres da população, apareceu a marchinha de carnaval carioca. Segundo o pesquisador José Ramos Tinhorão, a marchinha foi criada para atender à classe média, mais afeita à tradição melódica europeia do que à “complicação rítmica” herdada dos batuques africanos.

Nas décadas de 1930 e 1940, as músicas para o período carnavalesco atingiram tanta importância que a indústria fonográfica brasileira dividia a produção musical em dois tipos: a “música de carnaval” e a “música de meio de ano” (o que correspondia a tudo o que não era para o carnaval).

Para que a marchinha se fixasse como gênero musical identificável, dois compositores se sobressaíram: Lamartine Babo e Braguinha. Os dois foram parceiros em apenas duas músicas (Cantores do Rádio e Uma andorinha não faz verão ), mas ganharam, em vários anos, com parceiros diferentes, vários concursos de músicas para o carnaval.

No Rio de Janeiro, os concursos que eram promovidos pela Prefeitura do então chamado Distrito Federal para a escolha das melhores músicas para o carnaval eram acontecimentos que movimentavam a vida da cidade. Essa importância pode ser avaliada pelo fato de que, durante o período da ditadura do Estado Novo, os concursos passaram a ser organizados pelo poderoso DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda), órgão que Getúlio Vargas havia criado para monitorar a imprensa e todas as manifestações culturais do país.

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Nos anos de destaque da “música de carnaval”, Braguinha foi o grande campeão desses concursos, chegando a vencê-los em três anos consecutivos. Em 1938, venceu com “Touradas em Madri”. A música foi, depois, desclassificada sob a alegação de que não era uma marcha típica. Realizado um novo julgamento, Braguinha venceu mais uma vez, com a magnífica marcha-rancho As Pastorinhas, composta em parceria com Noel Rosa.

“A estrela d'alva no céu desponta E a lua anda tonta Com tamanho esplendor E as pastorinhas Pra consolo da lua Vão cantando na rua Lindos versos de amor”

Entre as mais conhecidas marchinhas de Braguinha podem ser incluídas “Vai com jeito vai”, Chiquita Bacana, Yes nós temos bananas , Balancê , Pirata da Perna de Pau , Tem gato na Tuba , Lourinha , a maioria delas tendo como o seu mais constante parceiro o médico e compositor Alberto Ribeiro.

As letras das marchinhas de Braguinha tinham, às vezes, toques de malícia, apropriados para o carnaval, mas sem nunca resvalar para a vulgaridade, como a letra de Vai com jeito vai, composta em um tempo em que a Barra da Tijuca era ainda pouco habitada.

“Se alguém lhe convidar Pra tomar banho em Paquetá Pra piquenique na Barra da Tijuca Ou pra fazer um programa no Joá Vai, com jeito vai Senão um dia A casa cai, Menina”

Braguinha, também, se destacou no gênero marcha-rancho, uma espécie mais lenta da marchinha convencional, com letras ternas e românticas. Ele é coautor de dois dos maiores clássicos do gênero: As Pastorinhas (com Noel Rosa) e Dama das Camélias (com Alcir Pires Vermelho). Composta há mais de 80 anos, “Dama das Camélias” continua fazendo parte do repertório dos nossos principais intérpretes. Caetano Veloso a incluiu no seu histórico show “Omaggio a Federico e Giulietta” que ele fez, em 1999, homenageando Federico Fellini e Giulietta Masina, no Teatro Nuovo, em San Marino.

Mas, Braguinha não se limitou a compor apenas marchas para o carnaval. Compôs várias músicas para a época junina, como Capelinha de Melão e a eterna Noites de Junho, que teve uma marcante regravação feita pela cantora paraibana Elba Ramalho.

João de Barro utilizou diversas formas musicais para compor, sempre produzindo grandes canções. Sambas, como Onde o céu azul é mais azul , toadas, como A saudade mata a gente. E, com o surgimento do samba-canção, fez alguns dos melhores exemplos do gênero, como Laura e Copacabana, em que exaltou, primorosamente, a praia carioca, a “Princesinha do Mar”, como diz a letra da música.

Braguinha também fez versões para o português de sucessos internacionais, que ficaram famosas, como a do bolero cubano “Aquellos Ojos Verdes” e “Sorri” (Smile), do filme “Tempos Modernos”, de Charles Chaplin. Em outro filme de Chaplin, “Luzes da Ribalta” (Limelight), ele criou uma letra sobre um tema instrumental, produzindo uma canção que até hoje é executada.

“Vidas que se acabam a sorrir Luzes que se apagam, nada mais É sonhar em vão Tentar aos outros iludir Se o que se foi Pra nós não voltará jamais”

Braguinha também enveredou pelo cinema, como roteirista, assistente de direção e compondo as músicas para vários filmes, a exemplo de Alô alô Carnaval .

A experiência no cinema fez com que João de Barro fosse contratado por Walt Disney para dirigir a dublagem e fazer a versão brasileira das músicas do filme “Branca de Neve e os sete anões”, o primeiro desenho animado em longa metragem que foi feito no mundo. As versões de Braguinha para as canções do filme, como Eu vou (“Heigh ho”), ficaram na memória de várias gerações de brasileiros.


Outros filmes de Walt Disney tiveram, também, a dublagem brasileira conduzida por Braguinha, como “Dumbo”, Pinóquio” e “Bambi”.

A prática adquirida na dublagem dos filmes da Disney fez com que Braguinha, como diretor de uma gravadora, tivesse a ideia de lançar uma coleção Disquinhos para Crianças, com conhecidas histórias infantis musicadas. Levantamento feito em meados da década de 1979 indicava que esses disquinhos haviam vendido, até aquela época, cerca de 5 milhões de cópias. Muitas dessas canções feitas por Braguinha para essas historinhas
são cantadas pelas crianças até hoje, como é o caso de Pela estrada afora, de “Chapeuzinho Vermelho”.

Braguinha teve destacada participação como diretor artístico de gravadoras, dando oportunidade ao surgimento de novos talentos, como foi o caso do cavaquinista Waldir Azevedo, que foi levado por ele para fazer a sua primeira gravação, o choro “Brasileirinho”. João de Barro exerceu, também, importante papel na defesa dos direitos dos autores de músicas, tendo sido um dos fundadores da UBC (União Brasileira de Compositores).

No período final da sua vida, Braguinha recebeu várias homenagens, sendo a mais destacada a realizada, em 1984, quando da inauguração do Sambódromo, no Rio de Janeiro. A Mangueira foi a campeã do desfile das Escolas de Samba daquele ano com o enredo “Yes nós temos Braguinha”. O compositor participou do desfile em um carro alegórico. Em 1997, Braguinha recebeu do Presidente Fernando Henrique Cardoso, a comenda da “Ordem de Mérito Cultural”.

Mesmo se não tivesse construído a sua grandiosa obra, só por uma única composição Braguinha mereceria lugar de destaque no panteão dos nossos maiores compositores populares.

Em meados dos anos 1920, Pixinguinha havia feito um choro, composto apenas de duas partes. Como os choros mais reputados pelos chorões têm três partes, Pixinguinha desprezou a música. Anos depois, resolveu gravá-la. Fez duas gravações do choro, mas sem nenhuma repercussão.

Em 1936, a cantora Heloísa Helena procurou Braguinha pedindo uma música inédita para ela cantar em uma apresentação beneficente promovida pela esposa do Presidente Getúlio Vargas. Braguinha se lembrou daquele choro de Pixinguinha e o procurou para pedir a autorização para colocar uma letra na música. A canção foi gravada, no ano seguinte, pelo cantor Orlando Silva, com um arranjo e o piano do maestro Radamés Gnatalli e a flauta de Pixinguinha. Com o toque mágico dos versos que foram colocados na canção por Braguinha surgiu o que é considerado, por muitos, o hino nacional popular do Brasil, o choro Carinhoso.


“Meu coração, não sei por que ♪♫♪ Bate feliz quando te vê ♪♫♪ E os meus olhos ficam sorrindo ♪♫♪ E pelas ruas vão te seguindo ♪♫♪ Mas mesmo assim, foges de mim”

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  1. Este seu artigo,nas palavras de Carlos Batinga, é um verdadeiro lamento.
    Muitas saudades das noites de carnaval do Astrea e Cabo Branco e das matinées do AABB. Parabéns!

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  2. Fantástico ...FLAVIO RAMALHO DE BRITO...👊👊👊👊
    Parabéns pela síntese bibliográfica/musical do nosso inesquecível Braguinha!!!
    Paulo Roberto Rocha


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  3. O autor dá-nos recordações que se tornam verdadeiros libelos contra essa contracultura musical que assola nossos dias.
    Perde-se nossa memória musical, parte considerável de nossa brasilidade, ferida gravemente por esses absurdos que massacram nosso dia-a-dia, que já não agem sub-repticiamente e sim às claras e, de forma ainda mais condenável, por receber apoio governamental, através de programas como a Lei Rouanet e outros mecanismos assemelhados, que só têm servido para encher cofres e burras de quem não merece.

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