A quanto dista o zelo do cientista do abuso apaixonado do poeta com a palavra? Na véspera do lançamento dos meus livros “Manual para es...

Doutor, que tipo de poeta você é?

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A quanto dista o zelo do cientista do abuso apaixonado do poeta com a palavra?

Na véspera do lançamento dos meus livros “Manual para estilhaçar vidraças” e “A arte do zero”, um paciente, sabendo do evento, me indagou, assim, de supetão:

— Dr, que tipo de poeta você é?

Minha resposta foi evasiva, vazia de significado, nem eu mesmo me convenci do que falei. Por isto deixarei que fique no esquecimento. Nunca gostei dos limites, do enquadramento imposto por definições. Mas confesso que fiquei com a pergunta na cabeça.

Depois do consultório, fui conversar com quem teria condições de falar algo: perguntei ao poeta.

Abaixo transcrevo o que ele me respondeu, este eu lírico despidos de amarras, este atleta do abismo.

Em qual categoria de poeta eu me insiro?

Sou um pintor de luas tortas... E as vejo tombadas sobre a terra frágil.

Ou seja, trato da poesia fragmentada de nosso tempo, dos seus andrajos sustentando uma terra inóspita para a beleza.

Meu poema não é passivo, não enleva a alma ao paraíso, ele lambuza o leitor com a realidade, com a angústia do ser consciente.

O pasto é para todos, por isto cuido do arado, planto, colho, engulo, mas, ao acaso, rumino versos que são a minha fome perseguida. Aquela palavra-verso que ignora as minhas súplicas e me arrebata ao seu bel prazer. Chamo de estalo da palavra este açoite aguardado da musa.

Mas luas tortas carecem de aplicabilidade. Daí ser ignorado tal arquiteto e seu anacronismo.

A lua suspensa e seu telescópio já não dizem nada. Não se pode mais reinventar os irmãos Lumiére na poesia.

O espaço-tempo não tem fragrância, ele é um galope doido de imagens e informações.

Sei que o poeta não é um ser prático, mas é rico em praticâncias e desassossego.

Foi assim que acordei sendo. Esta é minha última pele. Visto o que sobra das luas que picoto e remendo em minha vida.

Quem sabe aprenda a amanhecer em algum olhar.

Ouvi o poeta, e achei pelo menos bonita, poética, a sua resposta.

Sempre admirei Antonio Porchia. Ele respondia a todos os questionamentos utilizando dos seus aforismos poéticos. Penso que a obra é mais importante que o autor. Daí considerar irrelevante a minha fala, e sim os poemas que fui capaz de escrever. Mas já que me perguntaram, deixemos que fique registrado o que o poeta e não o médico deixou como resposta.

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