Agora estamos num ajuntamento esparso de pessoas, ao ar livre. Como sempre há muitas crianças, mocinhas adolescentes, como sempre andrajosamente vestidas. Vêm-se jovens mães com bebês. Em menor proporção, adultos de idade variada. A câmera sai colhendo imagens e depoimentos curtos. Um homem por volta dos 25, branco, tem um cabelo fino e esbranquiçado de eslavo, está sem a camisa e exaltado:
– Porque não podemos comer carne de cachorro?! Ou de gato? Nossos antepassados comiam. Porque não podemos? Não temos emprego, não nos dão emprego, e nós temos filhos, e o que vamos dizer a eles se não há comida? – Transmite muita indignação e revolta. Fala socando o ar. Corte.
@YSKT
O do cabelo com um bico para frente está sentado sobre um banco de madeira, com crianças por perto. Ele diz, apontando para um ponto além do visor da câmera :
YSKT
– Nós comemos isso aí.
O repórter aparece de costas, perguntando:
– De que é feita essa lingüiça?
– De porco. – A mulher diz, sorridente.
Há vários recipientes, cilíndricos sobre a mesa. Num deles, um pequeno almofariz de madeira, o repórter põe o dedo indicador e o retira com uma amostra aderida na ponta. “O que é isso?” – Pergunta.
YSKT
– E isso?
– É alho.
Alguém diz que ninguém faz melhor lingüiça que ela. A mulher ri, satisfeita.
Noutra cena, afastada dali temos o prefeito Rume de Lunik-IX, Marian Pavel. Na verdade, um auxiliar da prefeitura de Kosice. Ele aponta para as letras toscas junto à porta de um barracão, e que dizem: Escola fundamental, e mais abaixo os dizeres: Crianças Rumes. Na cena seguinte ele e a mulher estão dentro do pavilhão. Não se sabe se são Rumes ou brancos. Ele mostra concertos que fez, no telhado e nas paredes feitas pela sobreposição de toras de madeira. Em outra cena está sentado sobre um bureau, vê-se que precário, mas sobre ele há 2 bandeirinhas que se equilibram sobre uma pequena base de borracha: uma é da república eslovaca e a outra é a dos rumes.
– Nós construímos o memorial para as vítimas da inundação. Era uma coisa absolutamente necessária. Nessa última enchente morreram 51 pessoas, havia muitas crianças entre elas, adultos entre os 18 e 70 anos. Preenchemos a requisição dentro do gabinete do prefeito para construir o memorial.
YSKT
– Eu perdi minha família inteira na enchente. Fiquei só no mundo. Minha mãe era tudo para mim – Ele tem 20 anos e alguma coisa, o rosto largo assentado sobre o tronco grosso, e quase sem intermediação de um pescoço. Denota comoção na fala.
Agora ele empunha o acordeom na frente do campo que se estende à suas costas. As mulheres estão ao seu lado. “Esta música fui eu que fiz”, diz, e começa a cantar, sozinho, sem acompanhamento de outras vozes:
“Houve uma grande enchente que levou minha mãe e minhas três irmãs”
“Eu fiquei só no mundo.”
“Ó Senhor! Porque o Senhor levou minha mãe?”.
“A vida dela era tão miserável”.
Algumas frases são longas e dão a impressão de não caberem na melodia atravancada pelos solavancos do acordeom. Ele canta num tom alto e estridente, mas o lamento soa genuíno. Quando termina a canção começa outra música, desta vez alegre, e imediatamente todos começam a bater palmas e a dançar.
Fragmento de “Dom Pepe” novela inédita a ser publicada ainda este ano pelo autor