Tentativa recorrente e vã de ultrapassar o signo linguístico, de romper com seus significados. A palavra como imersão no mundo, como instrumento de construção de um sujeito; o sujeito da linguagem. Clarice tem como ambição a constante vontade e necessidade de suscitar sensações. Ela sabe, com diz Barthes, trapacear na linguagem, explorando um corpo opaco e plurissignificativo, que é a literatura. Para tanto, está sempre a nos questionar, por meio de metáforas, metonímias, elementos epifânicos construídos a partir de situações banais, pessoas simples, donas de casa. Lê-la é uma grande interrogação: o contato com sua obra nos faz esquecer de quem somos ou nos autentica?
Independente da resposta, a constatação é uma só para quaisquer que sejam os caminhos: não há como ser indiferente, só há de sermos diferentes, transmutados, transformados e metamorfoseados – de baratas a objetos de salvação. Não há como não se inquietar com sua sintaxe inusitada, num mundo em que perdura muito mais a repercussão dos fatos do que propriamente estes.
Jacques LacanSPCRJ
A escrita de Clarice nasce dessa tentativa de preencher vazios e sua linguagem (re)vela isso com elementos como o “IT”, em Água Viva. Ademais, seus frequentes recursos metalinguísticos reforçam o quanto a autora tem a consciência da trama e do drama da língua(gem). Ao refletir sobre as palavras, ela clarividencia um mundo fascinante, como subterfúgio e refúgio diante do pragmatismo do mundo. Falar de Clarice é dizer o humano.
Isso fica bem evidente na obra Um sopro de vida em que o narrador-autor e a personagem Ângela Pralini se digladiam na ânsia de escrever sobre o escrever e toda a repercussão que esse trabalho provoca no eu-autor-leitor.
Ana Carolina Braga
Bem sabemos que, quando se escreve, lida-se com o inconsciente e, por isso, o estranhamento nasce, sobretudo no escritor que se pergunta de onde determinado pensamento surgiu, até chegando a afirmar ser algo maior que si mesmo, como assim o fez o poeta Fernando Pessoa.
A escrita clariceana, embora pareça fragmentada, é a de um sujeito em busca da fala, de dar voz a seus sentimentos, pois “a vida é impronunciável”. Segundo Plastino (2008), os textos de Clarice trazem imagens frequentes, dentre elas o ‘vazio’, a sensação de que “a torrente da vida estacou, a solidão, a ausência de si mesmo, que constatam a sensação de falta e perda, desde a Joana de Perto do coração selvagem até Macabéa, de A hora da estrela, passando por Virgínia, G.H, a narradora de Água Viva”. Citando algumas protagonistas de romances, sem mencionar outras inúmeras dos contos. Não resisto: Ana, de “Amor”.
Clarice escreve em Um sopro de vida: “Eu queria escrever um livro. Mas onde estão as palavras? Esgotaram-se os significados. Como surdos e mudos nos comunicamos com as mãos. E em A hora da estrela o pessimismo é ainda maior: “Estou absolutamente cansado de literatura; somente a mudez me faz companhia. Se escrevo, no entanto, é porque não tenho mais nada a fazer no mundo enquanto espero a morte. A busca da palavra na obscuridade.”
Não há fracasso em Clarice, talvez um embate, como nos sugere a psicanalista Maria Lúcia Homem (2012), ou, “Um drama da linguagem”, como diria Benedito Nunes (1989). Um texto dotado de poesia e, por isso, imerso na
Segundo Orlandi,
Todo dizer é uma relação fundamental com o não dizer. Essa dimensão nos leva a apreciar a errância dos sentidos (a sua migração), a vontade do “um” (da unidade, do sentido fixo), o lugar do nonsense, o equívoco, a incompletude (lugar dos muitos sentidos, do fugaz, do não apreensível), não como meros acidentes da linguagem, mas como o cerne mesmo de seu funcionamento. (1995, p.35)
Desde a sua primeira obra, Clarice foi precursora, na literatura brasileira, a desarticular os moldes e os esteios do romance tradicional canônico, causando grande surpresa aos críticos da época, a exemplo do Antonio Candido (1944), que confessa ter tido um “verdadeiro choque ao ler o romance diferente que é Perto do Coração selvagem”, uma vez que a autora levou nossa língua a domínios pouco explorados, forçando-nos a adentrar em pensamentos tão largos de mistério.
Clarice Lispector Maureen Bisilliat
Conforme Foucault (1992), acerca do processo de escrita “não se trata de pinçar um sujeito dentro de uma linguagem; trata-se da abertura de um espaço em que o sujeito escritor não cessa de desaparecer”. Em Clarice, não raro, observa-se que a narração se apaga para que se prevaleça tensão dos sentimentos, das sensações e das reflexões, como diria a própria autora – sua literatura é mais pautada pela repercussão dos fatos do que propriamente a sucessão destes. Seria essa mais uma forma de o silêncio reaparecer em suas obras?
A partir deste trecho de “A hora da estrela” pode-se observar a polarização, o dilema do silêncio e da palavra, expresso metonimicamente.
E o que escrevo é uma névoa úmida. As palavras são sons transfundidos de sombras que se entrecruzam desiguais, estalactites, renda, música transfigurada de órgão. Mal ouso clamar palavras a essa rede vibrante e rica, mórbida e obscura tendo como contratom o baixo grosso da dor. [...] Juro que este livro é feito sem palavras. É uma fotografia muda.
A fotografia é o silêncio que Clarice deseja imprimir às suas obras, que são amplamente carregadas de imagens poéticas. Ao colocar em xeque o processo
É isso que se observa nas obras derradeiras, Água Viva, A hora da estrela e Um sopro de vida. Clarice se debatendo na beira e no limite de representar a vida tanto quanto a vitalidade que há no ato de escrever.
Lê-la é como a experiência de estar diante de um divã, em que o ato da fala flui de modo livre, tal qual uma catarse, numa oportunidade de se refletir e pensar a vida. Por isso que, para muitos, ela é considerada uma escritora hermética, pois é preciso estar aberto, de “alma formada”, disposto para ouvi-la e, assim, amá-la. Desse modo, quem seria o autor do texto? O analisante ou o analisado – Clarice ou nós?
Tanto a literatura, principalmente a de caráter intimista/introspectivo quanto a psicanálise exploram o não dito. E é justamente o enigma das entrelinhas claricianas, a junção entre aquilo que se revela e se oculta para nós que nos fascina em suas obras. Quanto maior o estranhamento, a antítese e o paradoxo do ser-estar do corpo literário, maior a nossa vontade de penetrar na densidade da poesia, pois, como diria Lacan “o amor sobrevive de desejo”, aquilo que está oculto e não o que está revelado é que nos faz prosseguir na história, é o mistério que nos envolve, nos enlaça e nos excita.
Ishiai
Enquanto escritora, Clarice não acreditava nem um pouco na capacidade da linguagem para dizer “a coisa”, para exprimir o ser, para coincidir com o real. O que ela queria – ou melhor, “devia”, já que escrever era, para ela, missão e condenação – era “pescar as entrelinhas”. O que ela buscava não era da ordem da representação ou da expressão. Ela operava emergências de real na linguagem, urgências de ver. Resta ao leitor receber suas mensagens em branco, e ouvir o que de essencial se diz em seus silêncios.
Apesar disso, é preciso recordar que, embora eivado de abstração, o texto se constitui em sua materialidade, é preciso reafirmá-lo. Há limites para o nonsense? Mas, toda escrita é arbitrária, simbólica, como bem pregam os estudos linguísticos. Este trecho de Água Viva demonstra que é vã a tentativa de alcançar uma linguagem concreta:
Não sei sobre o que estou escrevendo: sou obscura para mim mesma. Só tive inicialmente uma visão lunar e lúcida, e então prendi para mim o instante antes que ele morresse e que perpetuamente morre. [...] Há uma linha de aço atravessando isto tudo que te escrevo.
O diluir-se da linguagem, o instante que morre na narrativa é justamente o estranhamento que, quando repetido sucessivas vezes, há de se perder o encanto. Por ora, aquilo que foi escrito na trama clariciana é sustentado pelo jogo da linguagem que coloca o narrador como aquele que promove os impasses do texto literário, aquele que perfaz o universo das personagens e as encaminha para um espaço em que dilemas e crises existenciais, aparentemente simples, deem margem para criaturas complexas. De Joana, do primeiro romance, passando por Lóri, de Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres e da mulher de A paixão segundo G.H, notar-se-á o avanço do cotidiano para o extraordinário – do factual para o psicológico.
Diplomacia Cultural
A escrita como salvação
“Eu escrevo como se fosse para salvar a vida de alguém. Provavelmente a minha própria vida”. Essa frase do livro Um sopro de vida revela o quão a escrita é um instrumento vivificante para a autora, escrever é como um resgate. A escritura de obras literárias como manutenção do sujeito frente ao mundo, uma reafirmação, um condensamento de uma voz que precisa vir à tona, sob o risco de morrer. A escrita é urgente, pois a vida se mantém frente à palavra que precisa se materializar.
Arquivo Nacional
Porém, seu desamparo existencial, causa de uma subjetividade esfacelada, não impede que o leitor se guie pelos seus recursos linguísticos, tomando consciência de que há uma alteridade em evidência. E, contornando o ser, atravessa-o, porque o signo linguístico é extrapolado.
Alguém disse que o poeta está sempre a escrever o mesmo poema. Isso pode ser adotado para Clarice, que sempre esteve inquieta em busca da palavra, da frase, do sentimento exato. Seu “instante-já” era o momento em que estava escrevendo. Por isso, em sua última entrevista, concedida à TV Cultura, afirma que quando não escreve está morta.
E, nesse movimento de vida e morte, palavra e silêncio, Clarice se mantém e nos mantém vivos, e temos mais que celebrá-la. Na ausência, nesse jogo de espelhos, cujos reflexos nem sempre são agradáveis de se ver, a escritora se faz presente em nós.
*Texto originalmente apresentado no I Conel (Congresso nacional de estudos lispectorianos) em novembro de 2017. Adaptado com exclusividade para o Correio das Artes.