Meu caro amigo e poeta Hildeberto, antes de tudo, gostaria de agradecer o fato de que uma referência de nosso amigo e confrade comum, Tarcísio Pereira, sobre o meu texto que aborda a relação entre Augusto dos Anjos, nosso poeta maior, sem desdouro para ninguém, e a Rua Direita, atual Duque de Caxias, onde ele morou, provocou no poeta, mais do que no amigo, um lampejo, aquela fagulha criadora, cujo resultado foi poema intitulado “A Casa de Augusto dos Anjos”, num autêntico desdobramento do fiat lux em um et lux facta est.
Primeiramente, meu amigo, esclareço que o texto referido por Tarcísio Pereira, desencadeador do seu poema, apesar de não ter sido lido por você, ainda que tenha contrariado a “luz que não chegou a ser lampejo”, foi publicado no Ambiente de Leitura Carlos Romero, blog em que publico, sempre aos sábados, meus escritos.
O objetivo do texto referido pelo dramaturgo e romancista Tarcísio Pereira, meu amigo, foi lançar de imediato a chama da discussão de um assunto candente, sempre que envolve o poeta Augusto dos Anjos; assunto, desta feita, associado menos à sua desafiadora intrigante e instigante poesia do que a nossa combalida memória, corriqueira e banalmente desprezada e, de forma desapiedada, jogada no lixo. Parece-me ter razão o poeta do Eu, quando, já no Rio de Janeiro, em carta à mãe, datada de 16 de julho de 1911, refere-se à nossa terra como “Paraíba madrasta, enxotadora monstruosa de seus filhos” (Ademar Vidal, O outro eu de Augusto dos Anjos, p. 192), o que o fazia sentir-se, no seu desolamento, à procura de um emprego que lhe desse estabilidade e sustento à família, “um bacharel depenado, antigo professor de província, e possuidor de outros títulos congêneres de desmoralização” (idem, Carta do dia 25 de janeiro de 1991, p. 188).
Agora mesmo, poeta, está em pauta uma revitalização da Rua Duque de Caxias, a partir de um projeto cultural para atrair turistas. Não há uma menção sequer ao poeta Augusto dos Anjos e de sua relação profunda com a rua. Além de o projeto resumir a cultura à música e a referências às igrejas da região, não me parece que seja estrutural, com mudanças que venham não só atrair pessoas para a antiga Rua Direita, mas de fixá-las no centro da cidade. Por outro lado, Hildeberto, também me cheira a algo eleitoreiro. Estamos no fim do ano de 2023, para o ano é época de eleição para a Prefeitura Municipal, e, como sabemos, toda a energia vai ser consumida na politicagem. Confesso, meu amigo, não ter a menor expectativa com esse projeto.
Veja, poeta, evocando agora o seu lado de crítico literário, como é interessante e misterioso o ato criador. Você ouviu falar do meu texto, criou um poema, cujo cerne é o do poeta deslocado, por ser da poesia o deslocamento e o desconforto, num flagrante confronto com a minha disposição de estabelecer para o poeta Augusto um local que sempre lhe faltou, por motivos vários. Isto, talvez, se deu pelo fato de que eu, menino, andei muito pelo centro da cidade, principalmente,
Talvez a diferença de propósitos não resida apenas na contradição flagrante entre a poesia e a realidade. Tangenciando-as, porém, diria que a diferença se encontra no fato de que você é poeta, meu amigo, eu não sou. O poeta, rompendo com o que o limita, situa a existência poética no orbe; o homem cartesiano como eu, gosta de métodos, sistemas, de caminhos seguros para a sua caminhada. As Musas não me visitam, sempre passam ao largo... E quando digo que não sou poeta, apesar de minhas investidas no campo do versejar, é porque não me atrai tanto exprimir a saudade ou a falta ou o amor ou a desolação ou o sentir o mundo como um incômodo. Atrai-me, antes da subjetividade lírica, agônica ou não, a ironia, de que não se encontra jejuno o seu poema “A Casa de Augusto”.
Mas não estou aqui para falar de mim e, sim, deste diálogo inesperado que está acontecendo entre nós dois, meu amigo, cuja amizade já está beirando os 40 anos. Não me recordo que tenha acontecido algo parecido, nas tantas vezes em que nos encontramos, juntamente com outros amigos, e ficávamos nas intermináveis conversas a varar as madrugadas, continuadas, quase sempre, nos dias subsequentes.
Confesso-lhe, meu amigo, que me incomoda muito o fato de termos uma real celebridade em nosso meio, com todos os méritos, e que não tenhamos ainda despertado para a necessidade de contar para todos os que visitam João Pessoa, que aqui é a terra de Augusto dos Anjos, que a Duque de Caxias, então, Rua Direita, foi onde ele morou, em lugares diferentes, mas em toda a sua extensão – no início, no meio e no fim –, que, nessa rua, ele flanou, deu aulas, participou das rodas literárias e culturais do jornal A União, foi aluno e professor do Liceu Paraibano, e, por fim, nessa rua se casou, se levarmos em consideração que a Igreja da Conceição dos Militares, um antigo anexo do Palácio do Governo, foi o local onde ocorreu o seu casamento com Esther Fialho; nessa rua se encontra a Academia Paraibana de Letras, dita a Casa de Augusto dos Anjos, e que foi, efetivamente, a sua residência por um período. Eis, porque, com justiça, a rua deveria chamar-se Rua Augustos dos Anjos.
No mais, um grande abraço, e obrigado pelo constante diálogo que a literatura nos permite mais do que os diálogos da vida cotidiana. Não queremos coisas diferentes, apesar de você querer para Augusto a mirífica casa da poesia, onde ele já mora, e eu queira a chã realidade de um endereço, para que todos possamos homenageá-lo como ele merece. Queremos a mesma coisa, pois sabemos que o grande poeta do Pau-d’Arco, na realidade, mora e sempre morou na “pátria da homogeneidade”, de onde todos viemos e para onde, um dia, todos voltaremos.
A casa de Augusto
Hildeberto Barbosa Filho
Por que procurar
a casa de Augusto?
Estaria essa casa
no Beco do Carmo,
na Rua Direita, no Beco
Malagrida?
Onde, quando, por que
a casa de Augusto?
O Pau d’Arco, Recife,
a terra pobre de Cruz
do Espírito Santo?
Prefiro pensar
que a casa de Augusto
nunca existiu.
(Ah! O abstrato das saudades!).
Nunca existiu a casa
de Augusto.
Nem na capital, nem no Rio,
nem em Leopoldina.
Augusto não carece
de casa.
Os poetas não têm casa.
Inútil procurar a casa
de Augusto.
Os poetas residem
no ar rarefeito da biosfera.
São sombras magras
com pele de rinoceronte.
Tivesse casa, Augusto,
seria a Ponte Buarque
de Macedo,
o negro peito da ama
Guilhermina,
a lâmina minuciosa
de uma metáfora apocalíptica.
Casa por casa, por que
não pensar nas volúpias
da Ilha de Cipango,
na solidão das lagartixas
espiando as coisas mortas,
no chocalho fatídico dos ossos,
no verme que rói e arruína,
nas viagens da monera,
na cicatriz do quarto minguante,
na poesia de tudo quanto
é morto?
Quem sabe, a casa
de Augusto não transcende
a vila de Sapé, a usina
triste, o tamarindo, o corrupião
sem sorte?
Sua casa, se casa existe,
se foi com as águas do rio
Paraíba,
vista das margens
como um palácio paradoxal.
Casa sem nenhuma
arquitetura,
maquete desarticulada,
casa de sombras
e de assombros.
Casa cujo endereço
se perde nos carvalhos
da poesia.
Casa fechada e obscura
onde os fantasmas bebem
o vinho dos versos
mais perfeitos.
Onde a dor reina, soberba
e absurda, diante do nada.
Onde a arte arde e explode
seus signos malditos
como a única forma de existir.
A casa de Augusto
está localizada na avenida
de seus sonetos.
Seu número é o mesmo
da aritmética da morte.
Casa inatingível, sem
destinatário.
Não importa a cana
do engenho, não importa
se Jesus viveu na Serra
da Borborema.
Não importa o milagre
do finado Toca.
Não importa o gemido
da árvore na serra,
o positivismo, o ébrio,
o coveiro, a sibarita.
A casa de Augusto
é a casa do seu pai.
Do pai.
Por que não procurá-la
naquele carro de glórias
subindo aos céus, Elias
no volante, aureolado?