Alguém já se referiu à “tirania da moda”, e a expressão não poderia ser mais apropriad...

Modismo e destino

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Alguém já se referiu à “tirania da moda”, e a expressão não poderia ser mais apropriada. A moda assemelha-se às doenças – pega. Ninguém sabe que moda vai pegar, ou de que vai adoecer. Instalado o processo patológico, no entanto, desfaz-se toda ideia de gratuidade. E a gente trata de se curar, efetivamente, do que mal que está sofrendo. No imenso mar da perplexidade moderna, a moda é a marola que se encrespa mais pelo brilho, mais para se deixar ver ao enorme sol da vaidade, e depois murcha na anônima superfície do tempo. O que é a moda, enfim, senão a eternidade do efêmero?

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Mas o curioso é que a moda invadiu territórios onde antes se percebia alguma inflexibilidade, e um louvável rigor. Certos hábitos ou certas práticas – como o ritual da sedução amorosa, os vestidos das mulheres ou as gravatas dos homens – podem e devem variar. É da sua natureza substituir-se, alternar-se conforme o gosto das pessoas e o fluir das estações. Já outros tipos de prática ou de mercadoria, era bom que permanecessem infensos a qualquer mudança. Que ficassem iguais a eles mesmos, pois dessa fidelidade à tradição é que decorre a sua eficácia, o seu poder de influir nas pessoas.

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Tomemos como exemplo a medicina. Ela também apresenta os seus modismos, e nada tem oscilado tanto, nos últimos tempos, quanto os procedimentos terapêuticos. Cada época tem uma espécie de matriz etiológica oficial, uma “causa maior” que tudo explica.

Há cerca de dez anos, por exemplo, tudo era psicossomático. Uma gripe, uma diarreia ou mesmo um câncer eram o resultado de complexas interações psicológicas e físicas. E não se adoecia do corpo, adoecia-se basicamente da alma. Mas esse tempo passou, leitor perplexo, e de nada adianta continuares indo ao analista. Porque hoje, conforme atroam os meios de comunicação, ressoando a verdade dos laboratórios – hoje tudo é genético. O teu infarto ou a tua psicose maníaco-depressiva estão programados, inexoravelmente inscritos em teus genes, e nada podes fazer para escapar de ti mesmo. Diariamente, os cientistas descobrem um novo gene que comanda alguma coisa. E os cromossomos, ficamos sabendo com estupor, cada vez mais dispõem sobre o nosso destino.

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Para teres uma ideia desse avanço, lembro-te que se descobriu, faz alguns dias, o gene que determina a opção político-ideológica das pessoas. Diante disso, ser direita ou esquerda, petista ou neoliberal, não é questão de consciência ou de arbítrio – é mero efeito de cartografia genética. Daqui a pouco eles vão isolar o gene da religiosidade, bem como o das virtudes (ou defeitos) morais.

Tais possibilidades, obviamente, nos angustiam. Se tudo é genético, como fica o problema da consciência e do livre-arbítrio? Então vivemos apenas para realizar um percurso predeterminado, submetidos a um código transcendente aos nossos sonhos, projetos e intenções? E as nossas escolhas, e a nossa liberdade? Calma, leitor. Antes de tudo, reflete que essa tirania da genética também é um modismo. Daqui a algum tempo, vai-se descobrir um “princípio ativo” subjacente ao código genético e capaz de modificá-lo em função das nossas disposições anímicas. Feita essa descoberta, tudo voltará a depender das vicissitudes do nosso psiquismo. Estaremos, pois, de volta à primazia do psicossomático.

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Além do mais, mesmo se considerando que os genes programam os nossos sentimentos e dispõem sobre as nossas ações, quem disse que determinismo é destino? Às vezes levamos a vida a lutar contra os nossos determinismos, e fazemos dessa luta inglória, mas nem sempre vã, o nosso destino. Diferentemente do determinismo, que representa um conjunto de fatores que vêm de fora, o destino sempre envolve o indivíduo. Sempre envolve o “eu”. Digamos que o destino reflete a maneira aquiescente, ou contrastante, segundo a qual reagimos ao nosso determinismo.

E se falo dessas coisas, leitor paciente, é que esse tipo de assunto – ao contrário das gravatas dos homens ou dos vestidos das mulheres – nunca sai da moda.

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