Casei-me com um relógio, a julgar pela pontualidade daquela que me suporta desde 1978. Seis em ponto e ela trata de acionar o alarme. A...

Cotidianos

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Casei-me com um relógio, a julgar pela pontualidade daquela que me suporta desde 1978. Seis em ponto e ela trata de acionar o alarme. Assim o faz pelo bico da chaleira que se abre e fecha. Fechado, temos o vapor a sibilar em volume alto o suficiente para também acordar a vizinhança, se não for logo interrompido. Pronto, sinto-me obrigado a abandonar a cama e correr ao banheiro,
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o ponto de largada de quem quer que seja para o enfrentamento de um novo dia.

O meu, como o de tantos outros, começa com o creme dental, o barbear, o banho e a leitura do noticiário antes feito, prazerosamente, de papel e tinta, mas, agora, contido em pulsos eletrônicos. Sim, o smartphone acompanha-me nos primeiros passos diários.

Pontualmente, minha companheira tem aprontado a mesa com aquilo que me permite a nutricionista. “O senhor está perto da insulina”, ouvi desta última, dias atrás, em tom ameaçador. Antes de sentar-me para o café da manhã, eu e a dama que me desperta às 6 horas redondas trocamos um beijo de hortelã, viu Chico? Em seguida, busco o elevador, chamo o Uber (não dirijo há sete anos) e parto para o trabalho, por mais que os meus 80 anos, em razão disso, espantem muita gente.

Quem vive o quanto já vivi aprende a ser grato por cada amanhecer, por cada apito das chaleiras. Torna-se agradecido, especialmente, se for o caso, pela sorte de ainda ter ao lado o escolhido, ou a escolhida, para fazer tudo sempre igual pelo tempo que lhe reste. Cresçam os filhos, tornem-se adultos, busquem o mundo e, com o lenitivo de uns tantos retratos, os casais de extensa convivência quase se bastam.

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O espírito humano é feito de ciclos. Diga-se dos mais jovens que não costumam bendizer as auroras, mesmo quando o despertar decorra do leve toque das mães. “Levanta, é hora da escola”. Quem já não se aborreceu com este aviso? A adolescência, afinal, é tempo dos sonos compridos por mais que a vida reserve aos desta fase o riso, o alvoroço e as descobertas. Ah, se soubessem o que agora sabemos nós, os avançados nos anos...

O menino que eu fui gostava, às vezes, de acordar no horário dos bacuraus para recair, logo em seguida, em sono profundo. Falo do voo e do grito dos trens, passada a meia-noite, tais como os da ave da qual, por semelhança, ganharam o nome.
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Isso ocorria durante as férias escolares, período dos sonos espichados. Liberto da escola, no Recife, eu ouvia aqueles apitos com a alma em festa. Não era muita a distância entre a minha rua e a estação ferroviária da pequena cidade que quase me viu nascer. Chegava-se à beira da linha ao cruzar o Paraíba pela ponte de 200 metros, recém-construída, então. Era quando, da minha cama, eu me percebia no conforto e na segurança do lar.

Antes disso, era do toque do búzio que eu gostava. Neste caso, o despertar decorria do chamamento paterno. Meu velho acordava os filhos pequenos para ver a cabeça da cheia desse modo avisada, em noites de chuva. Os búzios, para quem nunca os escutou, soavam tristes como navios em suas despedidas do cais. O trem, ao contrário, tinha apito alegre, porquanto, entendia eu, trabalhava com gosto em suas idas e vindas ligeiras a serviço de cargas e passageiros.

Era bom acordar, assim, por mãos zelosas. A vida, em sua marcha sem volta, nos faria – a mim e àquela que tenho comigo – repetir atos e gestos paternos com os filhos que daríamos à luz. Nem sempre, mal sabem eles, com a paciência dos seus avós.
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É que o mundo, para os jovens que ainda éramos, tornara-se mais agitado e concorrido. A sobrevivência, infelizmente, já havia deixado de ser uma busca tranquila e pacífica.

Mesmo assim, ela, mais do que eu, logo atendia a cada choro nos berços. Será sempre da natureza das mães a urgência do socorro aos filhos, embora estes não sejam menos amados por um pai com os meus desvelos.

O menino que gostava de búzios e trens transformou-se no chefe de família desejoso do badalar de um relógio propriamente dito. De fabricação chinesa, tocava uma musiquinha diferente a cada hora, num total de oito. Soava de melhor modo nas madrugadas quando tudo o mais silenciava. Eu ainda o tenho, embora sem o badalo, sem as músicas e sem o balanço do pêndulo. Emperrou a velha engrenagem em razão de pancada recebida no transcurso da mudança para a parede onde agora se dependura, no endereço novo. Uma lástima.

“Não vale a pena consertar. É melhor comprar outro”, aconselhou-me o relojoeiro instalado no porão do shopping center em cuja vizinhança vim morar. O infeliz não honra a profissão. Não sabe o que é acordar com o som do tempo, com as notas
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que embalaram um jovem casal, alegraram seus dias e os dos três filhos postos no mundo. “Pai, ajeita esse relógio. Seria bom ouvi-lo outra vez”, pediu-me, não faz muito, o primogênito, sem saber da minha tentativa e da minha frustração. Que bom perceber que nós padecemos da mesma saudade.

O neto que ele nos deu, atualmente, com doze anos de idade, também se entretinha com o badalar e as oito melodias do relógio chinês. Engatinhava, quando bebê, para ouvi-lo de perto. Agora, se estiver conosco, o que já não acontece tanto, não se importa com o assovio matinal que me põe de pé, cotidianamente. Abre os olhos, revira-se e volta a dormir. É quando saio de casa à força, com uma vontade danada de ficar.

Espero que essas lembranças acalantem o adulto que ele vai ser e a família que formará com as bênçãos dos avós pegajosos, estes que não mais estarão aqui, ao menos em carne e osso, para o chamego de sempre e as histórias de pêndulos, búzios e chaleiras.

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  1. Anônimo8/8/25 07:02

    Eis o poder da crônica na mão de um mestre: transformar o cotidiano em algo maior, talvez poesia, certamente literatura. Parabéns, Frutuoso. Francisco Gil Messias.

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  2. Flávio Ramalho de Brito8/8/25 19:49

    Leitura atrasada, mas que valeu a pena, como sempre.

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    Respostas
    1. Anônimo8/8/25 20:12

      Obrigado, Flávio. Um abraço, Frutuoso.

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    2. Ah...........Q saudade Vc nos traz com este cotidiano.
      Lindooóooo d ++++
      A prima

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    3. Anônimo3/9/25 07:27

      - Abraço forte, Prima. - Frutuoso.

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