Para o poeta Paulo Gustavo, versado em Proust, apaixonado pelo Rio de Janeiro, membro da Academia Pernambucana de Letras.
De quantos “eus” somos feitos? Somos um passado e o tempo presente. No futuro ainda não somos. De repente sou impelida em um cotidiano de praticidade, decisões diárias, execuções que tomam todo o meu tempo: um infinito agendar de médicos e de exames. Ufa, uma canseira. É um tempo para a vida prática: a casa a demandar renovação, a cadeira de palhinha precisa ser substituída, uma torneira ser trocada, um vazamento consertado, a inspeção do gás pede uma nova chaminé
Rio de Janeiro @luciamaianobrega
para o aquecedor, e é preciso procurar a empresa que realiza o serviço. Como não bastasse, a faxineira de anos a fio resolve voltar pra sua terra. E o tempo da gente vai sendo surrupiado com essa demanda. Tudo isso toma seu tempo de leitura, rouba seu silêncio. A mente está voltada para executar, resolver, instada pela funcionalidade da casa que nos abriga. Nenhum pensamento diferente vinga. O devaneio nos é roubado.
Ah, mas ontem, o dia nasceu com aquela temperatura primaveril da Europa. Uma luz diáfana pairava sobre as ruas da cidade. É o tempo das folhas vermelhas das amendoeiras da minha rua, dos amarelos líricos nas árvores das praças. O Rio de Janeiro e todos os seus problemas, descasos governamentais, essa senhora de quase 500 anos ainda surpreende com sua enorme beleza. Ontem, ela estava esplendorosa, em suas vestes coloridas.
O Posto Seis, na Avenida Atlântica, se mostrou estonteante.
Rio @luciamaianobrega
Uma luz delicada vestia as ruas com todos os matizes das cores incidindo sobre o mar e as fachadas dos prédios, no cair da tarde. Os raios dourados sobre vidraças lembravam uma tela impressionista. Flanar por suas ruas nesses dias é o maior dos prazeres. Sua paisagem natural é a sua juventude eterna, somos tomados por uma beleza maior nessa estação do ano. Quando o céu a ilumina com vestes tão delicadas, seus morros e suas curvas do litoral, ela se torna única. Não perde, nem para Paris. E aqui lembrei o amor de Virginia Woolf por Londres. Em seu texto Flanando por Londres, no qual ela diz que precisa comprar um lápis, pretexto para percorrer as ruas da cidade.
Rio @luciamaianobrega
Ela até nos revela a melhor estação do ano que “deve ser no inverno e no cair da tarde, com sua luminosidade cor de champanhe do ar, e a sociabilidade das ruas adoráveis, quando a rua parece ser de prata batida.”
Nessa tarde primaveril, havia um festival gastronômico na calçada ao largo de restaurantes, muita gente alegre, shows, cantorias. Atravessei até o calçadão da praia para ver o mar. O mar e os morros, a areia e a luz da tarde reluzindo sobre a água translúcida, os banhistas retardatários e a Colônia de pescadores, o Clube Marimbás e o longo perfil de prédios e hotéis até a praia do Leme. E então, uma onda de emoção tomou conta de mim. Fui tomada pela beleza dessa senhora de 460 anos, um súbito abalo quase perturbador se instalou em mim. De repente fiquei contemplativa, o silêncio e o mistério me invadiram a alma. Como se o tempo da poesia se fizesse presente.
Rio @luciamaianobrega
Agora meu tempo é para Virginia Woolf, posso abrir um de seus livros e reler suas prosas poéticas em O Sol e o peixe, no qual ela diz:
“Como é bonita uma rua no inverno... aqui sob as lâmpadas flutuam ilhas de luz pálida, pelas ruas passam rapidamente homens e mulheres reluzentes que carregam certo aspecto de irrealidade.”
Foi assim que ontem vi o Rio de Janeiro. Ah, como é bom ter o tempo interior para a beleza. Enfim, percebo que já posso dispor do meu tempo, para o que me dá prazer. Posso ir ao encontro dos amigos, daquele que estreia uma peça, de outro que lança um livro, de outros e outras pra papear e tomar um vinho... enfim, tudo parece voltar ao seu lugar, e o prazer, aos poucos, se aconchega e volta a nos iluminar.
É tempo enfim de buscar os assombros nas crônicas do blog de Germano, mergulhar na poesia de alguns diários de escritores que amo, nas cenas de leitura, é o tempo da literatura.