A tragédia — enquanto forma estética e expressão filosófica da condição humana — é o resultado da tensão entre os impulsos vitais e os sistemas morais que buscam dar sentido e ordem à existência. Quando uma moral absolutista se impõe como estrutura fixa de valores, desconsiderando a diversidade e complexidade da experiência humana, inaugura-se o terreno do trágico. A infelicidade, nesse contexto, não se reduz a um evento catastrófico, mas revela um conflito insolúvel entre princípios éticos, pulsões humanas e as limitações da razão normativa.
Friedrich Nietzsche Hans Olde
“Somente como fenômeno estético a existência e o mundo se justificam eternamente.” (O Nascimento da Tragédia, §5)
A moral, para Nietzsche, sobretudo aquela idealizada pela tradição judaico-cristã, estrutura-se com categorias rígidas de bem e mal, verdade e erro, pureza e pecado. Essa moral dualista cria uma separação artificial, incapaz de absorver a ambiguidade dos afetos e desejos humanos. Quando uma pessoa tenta viver inteiramente segundo essa moral, negando seus impulsos e complexidades internas, instala-se uma tensão profunda. É desse embate que nasce o trágico: do conflito entre o que a moral prescreve e o que a vida exige.
Édipo e Antígona Per Wickenberg
Nesse contexto, Søren Aabye Kierkegaard (1813–1855), filósofo, teólogo e poeta dinamarquês, reconhece essa estrutura trágica ao analisar, em Temor e Tremor (1843), o relato bíblico de Abraão. Ao obedecer ao chamado absoluto de Deus e aceitar sacrificar seu filho Isaac, Abraão ultrapassa a moral universal e se torna o “cavaleiro da fé”. Assim como Antígona, ele encarna o colapso da moral frente a exigências existenciais que ela não é capaz de compreender ou conter.
Nietzsche, por sua vez, interpreta a moral como fruto do ressentimento. Em Genealogia da Moral (1887), argumenta que a moral dos escravos — base do cristianismo e da modernidade — nasce da negação da vida e da sublimação da impotência. O homem moralizado, impossibilitado de agir, volta-se contra si mesmo:
“Todo instinto que não se descarrega para fora se volta para dentro — é isso o que eu chamo de interiorização do homem.” (Genealogia da Moral, II, §16)
GD'Art
Além disso, a tragédia acolhe a obscuridade da existência. Longe de oferecer consolo ou sentido transcendente, ela expõe o terror do sofrimento humano em sua crueza. Para Arthur Schopenhauer (1788–1860), filósofo alemão que influenciou profundamente Nietzsche, a tragédia representa “a mais elevada realização da arte dramática”, pois nela se manifesta a Vontade — força cega e insaciável que move a existência — através do sofrimento, do erro e do fracasso. Em sua obra-prima O Mundo como Vontade e Representação (1818), Schopenhauer escreve:
“A tragédia mostra ao ser humano que a vida é um sofrimento sem fim.”
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É essa aceitação que Nietzsche formula como amor fati — o amor ao destino —, expressão suprema da liberdade e da força afirmativa do espírito trágico.