A tragédia — enquanto forma estética e expressão filosófica da condição humana — é o resultado da tensão entre os impulsos vitais e os ...

Tragédia moral e existência

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A tragédia — enquanto forma estética e expressão filosófica da condição humana — é o resultado da tensão entre os impulsos vitais e os sistemas morais que buscam dar sentido e ordem à existência. Quando uma moral absolutista se impõe como estrutura fixa de valores, desconsiderando a diversidade e complexidade da experiência humana, inaugura-se o terreno do trágico. A infelicidade, nesse contexto, não se reduz a um evento catastrófico, mas revela um conflito insolúvel entre princípios éticos, pulsões humanas e as limitações da razão normativa.

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Friedrich Nietzsche Hans Olde
Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844–1900), filósofo, filólogo e crítico cultural alemão, propõe em O Nascimento da Tragédia (1872) uma nova interpretação da tragédia grega, concebendo-a como fruto da tensão entre duas forças fundamentais da existência: o apolíneo, princípio da forma, da ordem e da racionalidade; e o dionisíaco, força do instinto, da desordem e da embriaguez. A partir dessa tensão, a tragédia deixa de ser mera representação do sofrimento e se torna uma forma estética capaz de expressar as contradições inerentes à existência — conflitos que os sistemas morais tradicionais tendem a suprimir ou negar. Nesse sentido, Nietzsche afirma:

“Somente como fenômeno estético a existência e o mundo se justificam eternamente.” (O Nascimento da Tragédia, §5)

A moral, para Nietzsche, sobretudo aquela idealizada pela tradição judaico-cristã, estrutura-se com categorias rígidas de bem e mal, verdade e erro, pureza e pecado. Essa moral dualista cria uma separação artificial, incapaz de absorver a ambiguidade dos afetos e desejos humanos. Quando uma pessoa tenta viver inteiramente segundo essa moral, negando seus impulsos e complexidades internas, instala-se uma tensão profunda. É desse embate que nasce o trágico: do conflito entre o que a moral prescreve e o que a vida exige.

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Édipo e Antígona Per Wickenberg
Um exemplo clássico é a personagem Antígona, da tragédia de Sófocles (496 a.C. – 405 a.C.), que se vê dilacerada entre a obediência às leis do Estado, representadas por Creonte, e a fidelidade aos valores familiares e religiosos. Ambas as forças possuem validade ética, mas seu confronto leva à destruição. Não há saída conciliadora — essa é a essência do trágico.

Nesse contexto, Søren Aabye Kierkegaard (1813–1855), filósofo, teólogo e poeta dinamarquês, reconhece essa estrutura trágica ao analisar, em Temor e Tremor (1843), o relato bíblico de Abraão. Ao obedecer ao chamado absoluto de Deus e aceitar sacrificar seu filho Isaac, Abraão ultrapassa a moral universal e se torna o “cavaleiro da fé”. Assim como Antígona, ele encarna o colapso da moral frente a exigências existenciais que ela não é capaz de compreender ou conter.

Nietzsche, por sua vez, interpreta a moral como fruto do ressentimento. Em Genealogia da Moral (1887), argumenta que a moral dos escravos — base do cristianismo e da modernidade — nasce da negação da vida e da sublimação da impotência. O homem moralizado, impossibilitado de agir, volta-se contra si mesmo:

“Todo instinto que não se descarrega para fora se volta para dentro — é isso o que eu chamo de interiorização do homem.” (Genealogia da Moral, II, §16)
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Essa repressão gera sofrimento psíquico, alienação e decadência — temas centrais da experiência trágica.

Além disso, a tragédia acolhe a obscuridade da existência. Longe de oferecer consolo ou sentido transcendente, ela expõe o terror do sofrimento humano em sua crueza. Para Arthur Schopenhauer (1788–1860), filósofo alemão que influenciou profundamente Nietzsche, a tragédia representa “a mais elevada realização da arte dramática”, pois nela se manifesta a Vontade — força cega e insaciável que move a existência — através do sofrimento, do erro e do fracasso. Em sua obra-prima O Mundo como Vontade e Representação (1818), Schopenhauer escreve:

“A tragédia mostra ao ser humano que a vida é um sofrimento sem fim.”
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Ao estetizar a dor, a tragédia oferece, paradoxalmente, uma forma de cuidado de si: um caminho de lucidez e autossuperação. Essa ideia aproxima-se da figura do herói trágico nietzschiano, que não se submete à moral enrijecida nem foge da realidade embrutecida — ele a enfrenta. E é nesse enfrentamento que se revela a beleza da existência: não como salvação vinda de um princípio divino, mas como afirmação corajosa da vida em sua totalidade, inclusive seu absurdo.

É essa aceitação que Nietzsche formula como amor fati — o amor ao destino —, expressão suprema da liberdade e da força afirmativa do espírito trágico.

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