Minha Nossa Senhora! Vejo-me entre os últimos dos moicanos. Ou, então, entre os últimos tamoios, se transferirmos o drama dos povos e...

O último dos moicanos

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Minha Nossa Senhora! Vejo-me entre os últimos dos moicanos. Ou, então, entre os últimos tamoios, se transferirmos o drama dos povos em extinção para os residentes neste Brasil sofrido e desigual. Explico: não trato, aqui, da trama concebida em papel e tinta, na Nova York de 1826, pelo romancista James Fenimore Cooper, nem dos eventos que, em 1567, alicerçaram os caminhos e a sina do Rio de Janeiro. Pobre Rio, trágico desde seus princípios.

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GD'Art
Assim, não percorro a trilha de Cora e Alice, as meninas do Coronel Munro desejosas do reencontro com o pai, no Forte William, durante o canhoneio de ingleses e franceses pela conquista daquilo que aos nativos pertencia. E aqui, também, não visto a pele do líder Aimberê, da Confederação dos Tamoios poetizada por Gonçalves de Magalhães.

Expresso-me, isto sim, com a licenciosidade dos que apanharam no Nordeste os últimos trens de passageiros para viagens interestaduais. Falo, então, das carências da minha e das gerações dela mais próximas. Assim o faço, indevidamente, preciso dizer, pois nivelo saudades fúteis, desimportantes, se relacionadas a tragédias humanas imperdoáveis. Eu e você comparamos o incomparável ao fazermos uso da expressão popular que desmerece perdas históricas e dores enormes. Ser o último dos moicanos, ou o último tamoio, representa, evidentemente, muito mais do que subsistir ao último acontecimento, do que embarcar no último, faltoso, necessário e saudoso trem.

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Urbana
Esperançoso do perdão pela insensatez, conto, agora, de minha animação e minha desesperança. Eis que o Ministério dos Transportes estuda a reimplantação da rede de trens de passageiros entre as Capitais nordestinas. O trecho-piloto, com 110 quilômetros, prevê a interligação de João Pessoa e Recife.

A ideia é começar a recuperação da malha ferroviária regional pelos percursos mais fáceis e mais curtos. O projeto destina-se a estimular o turismo, aprimorar a mobilidade intermunicipal e impulsionar a economia numa região que já teve nos trens a matriz do transporte de cargas e gente. O que agora temos em relação a este propósito são os estudos de viabilidade técnica e econômica. A primeira ligação, se tudo correr bem, conectará pessoenses e recifenses – e, obviamente, os que por aqui fixem seus negócios e residências, ou nos visitem – mediante a modernização e a unificação das linhas do Metrô pernambucano e dos VLTs (Veículos Leves sobre Trilhos) operantes entre as paraibanas Santa Rita e Cabedelo. Esta última, para os que não o saibam, é a cidade portuária situada a 25 quilômetros de uma João Pessoa com a sexta maior taxa de crescimento populacional das Capitais brasileiras. Perguntem ao pessoal das estatísticas.

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Const. Time
Esta é a parte que me anima: a promessa de que eu e meus 80 anos poderemos subir num desses novos trens a serem licitados já na primeira metade de 2026. De que poderei repetir as muitas viagens que fiz desde a pequena Pilar até o subúrbio de Coqueiral, para os estudos primários no Recife, de 1957 a 59. No último ano, já um tanto desembaraçado, viajava só, pois nos dois extremos do percurso a família sabia que eu não me confundiria e não me perderia no caminho.

Já falei por aqui da convicção de que me tornei o que hoje sou por ter visto meu mundo pelas janelas dos trens. Agora, o que pretendo rever, estação por estação, são os vendedores de milhos verdes, cocadas, pipocas, castanhas, amendoins, picolés, sorvetes, sucos e sanduíches. Quero rever gente pobre a fazer grana.

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Estação de Prazeres, Recife, Pernambuco, 1950s ▪ Fonte: Amantes da Ferrovia, via Memória Ferroviária de Pernambuco.
Estou certo de que não mais observarei a soltura de corujas (pipas, papagaios, como assim entendam os de outras plagas) nem os jogos de piões e bolas de gude, posto que isso diz respeito às gerações dos analógicos, à do menino que um dia eu fui. Assim mesmo: corujas no Verão, durante as férias de fim de ano (as mais longas) e piões ou bolinhas de vidro no mês de junho, tempo de pamonha, canjica, quadrilhas matutas e terra compactada, sem poeira. Bem me lembro: também observados dos meus assentos, os carrinhos de lata conseguiam entreter a gurizada em perímetros urbanos, à beira da linha férrea.

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Estação de Itabaiana, Paraíba, 1950s ▪ Fonte: Estações Ferroviárias do Brasil.
Isso tudo não mais verei. Porém, se a sorte e os governantes ajudarem, voltarei a observar, comovido, os abraços das chegadas e os choros das despedidas, repito, estação após estação. Não terei, por certo, lenha e caldeira a puxar os vagões nem, provavelmente, os maquinistas, aqueles à moda antiga. Essas coisas modernas são elétricas, computadorizadas e andam por conta própria, com tempos automatizados de esperas e partidas. Mas, apesar dos pesares, como me satisfariam...

Agora, vamos ao que me desespera. Quem tem a idade que tenho e o senso de observação adquirido no transcurso de muitas estações (estas sazonais) sabe da enorme distância entre os projetos de governo e suas execuções. O ano santo de 2026 já nos bate à porta, o que bem me permitiria tomar alguns desses comboios em fase de planejamento.

Mas, será que eles sairão, mesmo, dos cálculos, mapas e croquis? Não há como evitar a dúvida. Minhas fontes falam de entendimentos promissores entre a estatal Infra S.A. e a Pasta dos Transportes. Contam que a recuperação dos velhos trilhos, na etapa seguinte, beneficiará Natal. Depois, viriam Maceió, Aracaju,
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Salvador (de um lado), Fortaleza, Terezina e São Luís (do outro).

A coisa toda tem prazo até 2050. Vou encarregar, então, meu neto desse acompanhamento e dos reclamos que se fizerem necessários, um deles a retomada de 3 mil quilômetros de estrada de ferro abandonados por concessionários por volta de 1997. Dos 4,2 mil então negociados a preços de banana apenas 1,2 mil foram até aqui revitalizados, de modo a ligar o Porto de Itaqui (Maranhão) ao de Macuri (Ceará).

Coisas dessa ordem têm feito do Tesouro Nacional, mais do que um pai, uma mãe. Não é mesmo? A depender de mim, o fantasma que me tornarei assombrará todo e qualquer gestor público que suspenda uma execução dessas, necessária e custosa à sociedade, por entendê-la como projeto de inimigos políticos. Enquanto isso, rezo para que os da geração de Miguelzinho aprendam a forçar a continuidade administrativa, em todos os escalões da administração nacional, mediante o expurgo eleitoral de malversadores dos bens e recursos do povo. Que assim seja.

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