Todo sistema linguístico se compõe de morfologia e sintaxe. Alguns são explicitamente morfossintáticos, como os sistemas das línguas de...

A sutileza morfossintática da língua portuguesa

linguagem portugues sintaxe morfossintaxe
Todo sistema linguístico se compõe de morfologia e sintaxe. Alguns são explicitamente morfossintáticos, como os sistemas das línguas declináveis; outros, menos, como é o caso do português, espanhol, italiano e francês, mas continuam estruturados na morfologia e na sintaxe, permitindo uma distinção didática entre uma coisa e outra, de maneira a tornar a aprendizagem mais viável.

linguagem portugues sintaxe morfossintaxe
GD'Art
Quando estabelecemos a diferença entre um sistema morfossintático, tendo como exemplo o latim, e um que vê de modo distinto a morfologia e a sintaxe, como o português, baseamos a distinção no fato de que, na língua latina, não existe a necessidade de uma frase, para se identificar a função sintática de uma palavra. Como se trata de uma língua desinencial, o latim, assim como a língua grega, tem, nas desinências de cada um dos casos das declinações, a função sintática expressa (são cinco declinações; seis casos, no singular; seis casos, no plural, para cada declinação), bastando o reconhecimento de caso da palavra isolada.

Já a língua portuguesa, como as já citadas aqui e outras mais, a identificação da função sintática de uma palavra necessita de estrutura oracional. A palavra isolada, em língua portuguesa, só permite que se fale de sua estrutura morfológica, como radical, vogal temática, tema, desinência de gênero, desinência de número, quando estas duas existem, classe da palavra e o seu significado, em tese.

linguagem portugues sintaxe morfossintaxe
GD'Art
No latim, a palavra isolada diz, per se, a declinação a que pertence (morfologia, portanto) e o caso em que se encontra (sintaxe, pois). A palavra dominam (senhora), vista sob a análise de sua morfologia, pertence à primeira declinação, pois ao seu radical se junta a vogal temática -a, que caracteriza essa declinação como preponderantemente feminina. Ao conhecedor da língua latina, ainda é possível dizer que a palavra é feminina, por conta do tema em -a (domina), e está no singular. O -m final é a desinência de caso, que diz, ao estudioso dessa língua, a palavra estar no acusativo, cuja função sintática,
linguagem portugues sintaxe morfossintaxe
GD'Art
na língua portuguesa, é de objeto direto. Dominam, mesmo sendo um termo isolado, deve ser compreendido apenas como acusativo, não como nominativo, por exemplo, que é o caso do sujeito.

O mesmo acontece com dominos (senhores), cuja morfologia nos ensina que se trata de uma palavra da segunda declinação, diante da união do radical domin- com a vogal temática -o, que caracteriza a segunda declinação, preponderantemente masculina, resultando no tema domino. O -s final nos dá a informação sintática, tendo em vista que se trata de uma desinência de caso referente ao acusativo plural. Dominos, portanto, só deve ser entendido como uma palavra que, no português, poderá ser traduzida com objeto direto plural.

Conforme se viu, a vogal temática -a, ao caracterizar uma declinação feminina, e a vogal temática -o, caracterizando uma declinação masculina, aglutinam ambas, em latim, o sentido morfológico de uma desinência de gênero, o feminino e o masculino, respectivamente.

linguagem portugues sintaxe morfossintaxe
GD'Art
Quando da passagem do latim para o português, o morfema -a, da primeira declinação, tanto pode ser vogal temática, como em mesa, quanto pode ser desinência de gênero, desde que haja um par opositor, como em menino/menina, por exemplo. O mesmo não acontece com o morfema -o, da segunda declinação, restrito a ser vogal temática, na língua portuguesa, tanto em mato, quanto em menino, mesmo que haja um par opositor (menino/menina), tendo em vista que o masculino tornou-se não-marcado, como se diz no jargão linguístico. Apenas o feminino tem a marca, para se opor ao masculino. Em casos como mato e mata, mato não é o masculino de mata,
linguagem portugues sintaxe morfossintaxe
___
mas uma palavra masculina; mata é uma palavra feminina, mas não existe entre eles a oposição de gênero designada pelo sexo, como em menino e menina.

Se, na língua portuguesa, como afirmamos, há uma dissociação perceptível entre morfologia e sintaxe, existem situações em que podemos ver os traços da morfossintaxe latina. Quando dizemos menino, sabemos que se trata de um substantivo; quando dizemos bonito, trata-se de um adjetivo. Não estamos, contudo, falando de classes de palavras, mas de funções. A classe de palavra a que menino e bonito pertencem é a mesma, o Nome. Substantivo e adjetivo são funções. Na estrutura sintática, o substantivo é o determinado; o adjetivo, o determinante. Os determinados terão a função de sujeito, complemento ou atributo; os determinantes serão adjuntos e, eventualmente, atributos. Os determinados formam, por excelência, um núcleo; os determinantes, o seu entorno.

É interessante notar, ainda, que, além, de expressar uma relação sintática, podemos descobrir uma noção morfológica de gênero na articulação entre o determinante e o determinado. Sem ter que recorrer ao dicionário, para descobrir o gênero das palavras que causam muita dúvida, como tomate e alface,
linguagem portugues sintaxe morfossintaxe
GD'Art
por exemplo, o usuário da língua perceberá que tomate é palavra masculina e alface é feminina, pela ação do determinante em tomate bonito e alface nova.

No caso da flexão verbal da língua portuguesa, temos o exemplo mais óbvio de morfossintaxe. Como o óbvio é quase sempre difícil de ver, nós o tornaremos ululante, como diria Nelson Rodrigues. As chamadas Desinências Número-Pessoais (DNP) são mais do que flexão verbal, são mais do que morfologia. Elas são, essencialmente, sintaxe, aglutinando uma informação morfológica de número (singular ou plural) e de pessoa que fala (primeira, segunda ou terceira). Não é o nós que diz que é primeira pessoa do plural, exigindo a flexão cantamos, por exemplo. É o -mos, a desinência número-pessoal, que impõe que o sujeito seja plural e de primeira pessoa, a pessoa que fala.

linguagem portugues sintaxe morfossintaxe
GD'Art
Fazemos essa confusão, tendo em vista o desconhecimento da língua latina, de onde tiramos o molde de nossa flexão verbal. No latim, existem pronomes pessoais do caso reto – eu (ego), tu (tu), nós (nos), vós (vos) –, à exceção de ele/eles/ela/elas, substituídos por demonstrativos – ille/illi/illa/illae. Esses pronomes, raramente, são utilizados. Em geral, se usa para dar ênfase ou, no caso, da poesia, preencher um espaço da métrica. O latim não os utiliza por serem redundantes: as desinências número-pessoais não deixam dúvida alguma a respeito do sujeito. No português, os utilizamos com uma frequência maior, por causa da falta de desinência número-pessoal, na terceira pessoa do singular, por exemplo,
linguagem portugues sintaxe morfossintaxe
GD'Art
em formas que poderiam levar a uma ambiguidade, como acontece no imperfeito e no futuro do pretérito do indicativo; no presente e imperfeito do subjuntivo, por exemplo, cujas primeira e terceira pessoas do singular possuem a mesma forma: eu estava, ele estava; eu sairia, ele sairia; eu venha, ele venha; eu cantasse, ele cantasse. Nas demais formas, o pronome é simplesmente redundante.

Para finalizar, lembremos que um resquício da declinação latina foi preservado na diferença entre pronomes pessoais do caso reto (veja-se: caso reto, com uma função de sujeito) e os pronomes pessoais do caso oblíquo (veja-se: caso oblíquo, com uma função de complemento): eu/me; tu/te; ele/se; nós/nos; vós/vos; eles/se. Até as formas são as mesmas, exceto eu, que em latim se diz ego...

O português derivou do latim. Derivar é bem a palavra, formada de de-, preposição com o sentido, de origem, de saída, e o substantivo riuum, rio. O rio mantém-se caudaloso e sempre tempestuoso, desafiando a quem quiser enfrentar os seus meandros. Cabe a cada um que queira sair-se melhor na sua viagem ousar conhecer os segredos de suas corredeiras.

COMENTE, VIA FACEBOOK
COMENTE, VIA GOOGLE
  1. O saber e a pedagogia se dão as mãos no texto de mestre. Parabéns, Milton. Francisco Gil Messias.

    ResponderExcluir
  2. Há um erro de princípio: o português não derivou do latim, mas de uma amálgama de línguas que se mesclaram ao Lusitano, inclusive o latim vulgar dos soldados romanos.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Você poderia ser identificar, por favor? Latim vulgar não é latim? Vulgar se aplica a uso comum, não ao sentido que se tem de vulgar, hoje. Quando afirmamos que o português vem do latim, estamos falando de estrutura. E esta é indiscutível.

      Excluir

leia também