Antes de qualquer coisa, devo esclarecer que Brito é um senhor, bem passado nos anos, que cuida dessas minhas encanecidas madeixas. Uma vez por mês, lá estou eu solicitando suas habilidades no ofício para dar uma ajeitada em cabelo e barba para, quem sabe, diminuir um pouco o impacto dessas marcas que o passar dos anos vai deixando em nossas aparências. Velho e desleixado, ninguém merece; então, lá vou eu para que as tesouras de Brito
e mais algumas engenhocas apropriadas deem conta dessa fatigante tarefa.
E o que há nisso de tão especial? Afinal, ir ao barbeiro é um hábito que nós homens cultivamos pelo menos desde comecinho do século XIX. Digo isso porque foi por esse tempo que Gioachino Rossini levou aos palcos as peripécias do Conde de Almaviva, um nobre espanhol que para se casar com a bela Rosina pede ajuda ao barbeiro Fígaro. Tal registro sugere que a esse tempo a profissão já existia; a de barbeiro. Se já existia antes, quem sou eu para bater o martelo?
Mas consideremos que não sou Almaviva, Brito não é Fígaro e minha consorte não é Rosina, faz-se necessário que eu justifique o que me fez trazer o velho Brito a esta coluna depois de tentar contextualizar esse nobre ofício na misteriosa máquina do tempo... Então, vamos lá.
Brito é homem que cultua a elegância. É ali na galeria Augusto dos Anjos, Praça 1817, que nosso amigo exerce sua arte. O salão é modesto. Além de Brito, há um outro profissional da tesoura, pelo menos duas moçoilas, uma para dar trato às unhas de uns e outros mais vaidosos do que esse escrevinhador aqui e outra para recolher o apurado.
Voltando à elegância de nosso barbeiro, foi este singular detalhe que me chamou atenção da última vez que submeti meu cocuruto aos cuidados de Brito. Ele devidamente engravatado, jaleco branco, branco, como naqueles reclames da televisão e com aroma de amaciante. Calça com vinco e sapatos cuidadosamente engraxados. Um dândi, coisa rara nesta segunda década deste século. Tomado de natural curiosidade perguntei o porquê daquele garbo, daquele aprumo todo.
⏤ Tenho meus motivos, desde que comecei na profissão eu me visto assim para trabalhar. No meu tempo de rapaz ninguém saía até a rua em manga de camisa.
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Usar um paletó não era só elegância, era respeito — justificou Brito. Mas eu insisti:
⏤ E quais são esses motivos?
⏤ Primeiro é o respeito à minha profissão. Foi ela que me permitiu sustentar família e criar meus filhos. Tudo o que conquistei foi com ela.
⏤ E o outro motivo? — perguntei.
⏤ É o respeito ao meu cliente, quero que ele se sinta especial e entenda que exerço meu ofício com satisfação, com bom humor, que me preparo para estar aqui. Não venho de qualquer jeito como se fosse a um bar encontrar com meus amigos.
Essa conversa com Brito levou-me a algumas conjeturas acerca de alguns valores que vamos abandonando. Alguns são contingências da modernidade, da pressa que a vida nos exige para ser vivida. e outros simplesmente vamos deixando de lado por motivos diversos.
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Dessa última vez, quando da conversa, enquanto Brito manipulava sua tesoura, dei asas às minhas lembranças e fui me ancorar nos meus tempos de ginásio. No meu primeiro dia e descobri que havia um rito para se dar início a uma aula. E esta foi com o professor Joaquim Candelária, que ao chegar não passou da porta, esperou que nós ficássemos em pé e em silêncio. Só então deu seu “bom dia”. Depois que todos responderam a saudação ele continuou: “Sentem-se, por favor”. Era assim que nossas aulas começavam. Joaquim Candelária foi meu mestre de História do Brasil por dois anos. Sempre gentil e respeitoso, nunca o vi chegar a uma aula sem estar vestido com seu inseparável guarda-pó. Hoje entendo que ele e os seus pares faziam da aula um acontecimento. Com ele e com os demais sempre houve esse acatamento.
Esses fatos que relato (minha primeira aula no ginásio e minha conversa no barbeiro) podem, a princípio, parecer irrelevantes, mas não o são. Está faltando gentileza nesse nosso mundo, paixão pelo que se faz. Respeito nem pensar. Mas nem tudo está perdido. Brito está por aí...