A comunhão é completa. O prazer é total, envolve corpo e alma, e transcende-os além do mais. É como beber água. Não tem gosto, nem doce nem salgado, mas é de um sabor inigualável, cristalino como a cor, inexistente, e tão presente.
Assim é a música, divina arte. Diz coisas que ninguém diz, em língua que todos entendem. Frases que se multiplicam na diversidade das emoções que provocam. Uma infinidade de maneiras de falar a mesma coisa e de serem ouvidas de tantas outras. Isso é magia.
A música é mágica, abstratamente mágica. Pode ser solene, sutil, leve, pesada. Dar leveza ao que lhe pesa ou pesar ao que soa leve. Trágica, poética, lírica ou dramática, retrata exatamente tudo o que somos, pensamos, sonhamos.
Prescinde das letras mas pode abraçá-las sem cerimônia. Fundir poema, melodia, ritmo e, com tudo, ser dançada. Juntar-se num grande balé, contar uma linda história, um romance, uma parábola e morrerem juntas na tragédia pujante de uma ópera, de um samba canção, de um batuque, uma serenata ou no solo de uma flauta.
Traiçoeira como a vida, traz surpresa inesperada, de alegria, tristeza, bravura ou mansidão. Explode com Wagner, grita com Bruckner, dança com Rameau, reflete com Mahler, cintila com Debussy, pinta a natureza, da terra ou da alma, como bem fez Beethoven, e conversa com Deus na obra de Bach.
Cria vida nas orquestras, dá lição de harmonia, na fusão dos opostos, dos timbres diversos, dos temas que se escapam e das melodias que se entrelaçam num canto do barroco. Imita cotovias, soa como a chuva, arde como o fogo e queima como gelo. Cavalga nas Valquírias, louva nas cantatas, sonha nos adágios, ama nas sonatas, chora nos réquiens e se extasia na Ode à Alegria de Schiller com a Nona.
Ah, a Nona... Quantas vezes a vimos e ouvimos com ele, o amado pai. Era quando entrava em verdadeiro transe, que começava desde a hora que acordava e dizia: “É hoje, a Nona!”. Nona em Paris, Nona em Viena, Nona em Berlim, Nona em Celle, quantas nonas em nossas vidas! E teve a Nona em Metz, nos 95 anos. Uma apoteose. Ele ainda dizia brincando: “será a última? ”, com o eterno bom humor. Sobre o 3º movimento, peça que está sem dúvida entre as mais sublimes comunhões da alma com a música, costumava dizer: "esse adágio é uma verdadeira prece. Eleva e enleva"
Carlos Romero, Ópera Real da Suécia, Estocolmo.ALCR
Nas antessalas dos teatros, sempre elegante, não dispensava o paletó e a gravata. Talvez para não se distanciar muito do maestro, um personagem que admirava como o piloto de avião. Dos sonhos profissionais frustrados, entre regente e comandante, era difícil escolher. Ao entrar nos aviões, cumprimentava-os com respeitosa reverência. Mas do seu olhar sereno dava para escutar: “cuide bem da gente, comandante. Aqui tem coisa rara e muito amor”.
Depois que adentrávamos os lobbies das óperas e teatros, acomodados entre o conforto e a expectativa das grandes obras, olhava ao redor, contemplava a fineza do ambiente, a educação, a beleza da sobriedade e da distinção que marcam o bom gosto, e sussurrava: “Ô ambiente adorável”. Isso já nos bastava qualquer esforço empenhado para ali chegar. Um bálsamo que afagava a alma grata de amor e plenitude.
Arsenal, Cité Musicale, Metz, França.ALCR
Quero, sim, continuar a sentir sempre o que ele sentia. Ouvir e respirar o clima de arte e poesia que há na música. Música que “eleva e enleva”, como costumava dizer em crônicas.
Música que nos dá a certeza da identidade com a paz, não com a discórdia, com a fé, não com a descrença, com a harmonia, não com a dissonância, e sim com as mágicas da criação, capazes de sublimar o espírito acima de qualquer coisa.