O individualismo é a verdadeira religião universal. Como o indivíduo não se liga a grupos, credos, partidos, não exclui ninguém; está sempre aberto a todos. Mas o individualismo, ressalte-se, é diferente do egoísmo. O egoísta tende a recusar os outros. O individualista, não.
O maior favor que o escritor pode fazer ao leitor é ser sincero. Geralmente os que fogem à sinceridade o fazem por medo do ridículo, como se as íntimas verdades que expõem não fossem também as de quem o lê. O terreno comum aos homens é o das fraquezas disfarçadas, vilanias escondidas, aspirações muitas vezes inconfessáveis; o leitor agradece a quem o leva a se deparar com tudo isso, que também compõe o seu cenário interior.
Entre os ofícios de pai, está o de comemorar o aniversário dos filhos – e comemorá-lo da melhor forma possível, provendo-o não apenas do material como também do espiritual. E tudo devidamente documentado com fotos e filmes para depois, olhando esses registros, todos na família confirmarem que estavam felizes. Nada pode dar errado e comprometer o sucesso do evento.
O poema “Barcarola”, inserido por Augusto dos Anjos no Eu, remonta a uma tradição cultivada pela poética medieval. Segundo Segismundo Spina, a poesia luso-galega nos legou ao todo quinze barcarolas, sendo que treze delas apresentam estrutura paralelística. Também conhecido por marinha, esse tipo de composição versa sobre assuntos ligados ao rio ou ao mar.
Num dos episódios de “The Crown”, o personagem do príncipe Philip recebe a visita dos três astronautas que foram à Lua. Ele está ansioso pelo que vai ouvir. Espera um relato condizente com a extraordinária experiência pela qual aqueles homens passaram. Como tem lá os seus dilemas metafísicos, imagina que o grupo possa lhe dar alguma indicação de que vale a pena crer em Algo Maior.
Segundo o criacionismo, o mundo foi criado por Deus. Isso, a meu ver, de modo algum O recomenda. É mais sensato imaginar que Deus queria fazer o mundo perfeito, à sua imagem, mas foi atrapalhado por um assistente inábil. Esse modo de ver se compatibiliza com os inúmeros desacertos que vemos nele. O maior desacerto é o próprio homem, esse bicho marcado pela dualidade do Bem e do Mal.
Há quem atribua nossas lacunas e arestas ao material de que fomos feitos – o barro. Por que Deus não usou um material mais resistente? Ou mesmo um desses produtos modernos, como o silicone? Algumas mulheres procuram hoje reparar o equívoco enchendo partes do corpo com esse nobre produto sintético. Mas é tarde. Por mais que plastifiquem a anatomia, a base continua lá, envelhecendo e se preparando para voltar à lama.
Deus usou o que tinha à mão, e só dispunha de seis dias. Era muito pouco para providenciar a Natureza com suas árvores, rios, vales, montanhas. Como seria possível, nesse prazo exíguo, trabalhar cada artefato com esmero? Um dos enigmas da Criação é saber por que Ele, sendo o patrão de si mesmo, trabalhou num prazo tão curto. Talvez não gostasse do que estava fazendo.
Como se não bastasse a exiguidade do prazo, Deus resolveu fazer o homem no último dia, ou seja, quando já estava exausto e tudo que queria era descansar (o trabalho foi tanto, e sob pressão, que Ele descansa até hoje). O efeito dessa pressa é que Adão foi um protótipo mal testado. Isso constituiu uma brecha para o descalabro que se seguiu: veio a Serpente, assessorada por Eva (ou vice-versa), e levou o primeiro homem a provar do fruto proibido. Adão pecou e logo descobriu, envergonhado, que estava nu – o que é estranho. Como ele poderia se perceber nu se nunca tinha usado roupa? O fato é que, devido a esse primeiro pecado, perdemos o Paraíso e nos tornamos mortais.
Geralmente se considera a morte a pior coisa que pode nos acontecer, mas há nisso um contrassenso. As pessoas aceitam de bom grado que o homem é um ser vivo – nasce, alimenta-se, cresce – mas acham um absurdo que ele vá morrer. Ou seja: querem da biologia apenas o que ela traz de bom. É como se depois de nascidos e já formados devesse ocorrer em nós um cancelamento das leis naturais e alguma forma de transcendência viesse nos animar; alguma coisa que daria a nossas células a eternidade. Infelizmente não é assim, de modo que o melhor é tratar de comprar o jazigo (pode ser em prestações). Tem gente que deixa para fazer isso literalmente “na última hora”, o que não é aconselhável. Comprando logo pode-se escolher o lugar e, com sorte, a vizinhança.
Teorias como a do Big Bang sugerem que a Criação está em curso. O universo continua a se povoar de luas, estrelas, galáxias, buracos negros. E agora, aparentemente, sem o controle divino. Deus pretendia que o Cosmo se resumisse à Terra, ao Sol e a alguns poucos corpos celestes, mas parece que perdeu o controle. Outros dizem que Ele continua descansando, mas um dia acorda e vai dar um sentido a tudo isso. Só nos resta esperar.
Quando os negócios vão bem; quando tivemos um dia até satisfatório de trabalho; quando nos preparamos para dormir confiantes no dever cumprido; enfim, quando tudo parece nos predispor à felicidade – eis que aparece a “coisinha”. Ela vem sob a forma de um receio, uma leve preocupação, uma lembrança incômoda que envolve nossa relação com os outros.
“Toma um fósforo! Acende teu cigarro!” Já se vão mais de cinco décadas desde que ouvi esses versos pela primeira vez. Quem os citava era um colega do Liceu Paraibano apaixonado por Augusto dos Anjos e que sabia de cor quase todo o “Eu”. Ele sublinhava com tragadas esparsas o recitativo e assumia um tom lúgubre, que realçava o pessimismo do poema. Um dos versos era de descrença profunda no amor – dizia que a “pantera” da ingratidão é a inseparável companheira do homem.
O fanático é alguém excessivamente aferrado a um credo, um sistema, uma ideologia. Ele não manifesta apenas uma adesão; de tal modo se compenetra daquilo em que acredita, que a priori despreza qualquer valor ou sentimento distintos dos seus.
Gilberto Freyre escreveu dois artigos de enorme importância para a bibliografia crítica de Augusto dos Anjos. O primeiro foi redigido em inglês e publicado em The Stratford Monthly (Boston, setembro de 1924). Traduzido para o português por Miguel Lopes Viera Pinto, está reproduzido em Perfil de Euclides e outros perfis, que foi publicado em 1944 pela José Olympio, na série Documentos Brasileiros.
Ainda não sei por que me dispus a cursar Medicina. Filho e sobrinho de professores, sempre estive ligado ao magistério. Comecei dando aulas particulares de Português na casa dos alunos. Com isso juntei um dinheirinho, que me permitiu dispensar a mesada do “velho” e comprar meu primeiro carro – um Fusca usado. Fiquei exultante, pois com ele era mais fácil arranjar namoradas.
A poesia de Olavo Bilac caracteriza-se pelo rigor formal e pelo despojamento na expressão dos estados emocionais. É comum acusá-lo de cerebral e frio, opondo-lhe o artesanato conciso ao derramamento dos românticos e ao anseio de religiosidade presente nos simbolistas. Por essa ótica, é difícil concebê-lo como um melancólico a lamentar o seu objeto perdido. A verdade, no entanto, é que em Bilac a representação melancólica perpassa diversas composições.
Espólio
Do que vivi, estou morto.
Mas, no porvir, ressurreto.
Haverá sempre algum porto
onde ancorar meu desejo.
Ao recuar, continuo.
Na falta, me complemento.
Na dispersão, me situo.
Do “não”, extraio o consenso.
Em que medida o elemento autobiográfico se insere na poesia de Augusto, autor de um único livro sintomaticamente intitulado Eu? Para responder a essa pergunta, tecerei breves considerações sobre a autobiografia, onde se conta a história de um eu, e sobre o gênero lírico, que também diz respeito à entidade subjetiva. Nosso propósito é apontar e discutir algumas passagens, ligadas à vivência do indivíduo Augusto dos Anjos, que de alguma forma se integram ao seu lirismo – fundado, como se sabe, numa visão muito particular da própria subjetividade e do mundo.
Na turma, todos queriam ser escritores. Rabiscavam contos, poemas ou trechos de romances e mostravam uns aos outros em mesas de bar ou num dos bancos da praça. Enquanto um lia, o autor esperava ansioso o veredicto.
O menino e o velho
A soma dos contrários rege a vida
e a tudo imprime o seu variado aspecto.
Assim é que, a toda despedida,
corresponde também um recomeço.
E a todo olhar brilhante de alegria
subjaz uma nota de tristeza;
como ao feio, que às vezes horroriza,
deve mesclar-se um fundo de beleza.
A poesia de Augusto dos Anjos tem sido objeto de múltiplas avaliações. A riqueza imagística, a erudição inesgotável e a profundidade psicológica, entre outros atributos, fazem com que os críticos a vinculem aos mais variados sistemas e crenças. Há quem veja o poeta como ateu, místico, espírita, filósofo e até, paradoxalmente, como um seguidor do ideário positivista.
Esse livro de Francine Prose resgata a velha definição de que a literatura é a “arte da palavra”. O grande compromisso de quem escreve é com a matéria verbal, que se deve explorar em todas as suas possibilidades.
Muitos, sobretudo no meio acadêmico, parecem se esquecer disso. Utilizam o texto como pretexto para a veiculação de mensagens, conceitos e dogmas ligados a outros domínios do saber. Ou como instrumento de pregação ideológica. Tais pessoas, observa a autora, não amam a literatura.
O que significa ler como um escritor?
Uma amiga tem chorado e dormido mal nos últimos dias. Não, o motivo não é a covid-19, que provoca temor e ansiedade mas já não arranca lágrimas a não ser daqueles que perderam seus entes queridos. O motivo é a morte do menino Henry, que foi supostamente torturado e assassinado pelo Dr. Jairinho (a imprensa bem que podia cortar esse diminutivo, que soa irônico).
O mito é uma criação fantasiosa que procura explicar aspectos da natureza ou da condição humana. Nossos antepassados os cultivavam para dar sentido ao mundo. Esse reinado da imaginação durou séculos, até ser destronado primeiro pela filosofia, depois pela ciência.