Viver em terras lusitanas é como caminhar por um livro antigo cujas páginas, ao serem tocadas pelo vento, sussurram histórias que nos pertencem — mesmo antes de as conhecermos.
Há em mim, desde que cá cheguei, uma sede persistente de mergulhar fundo na alma deste povo português: nas suas raízes de sal e pedra, nos silêncios guardados nas calçadas, e nas vozes que ecoam através da arte, da poesia, da literatura.
Baixa de LisboaUsers Maxima
Maxima/GoodFon
Ontem, sem que eu esperasse tanto, vivi uma noite bordada de encantos no espaço Kreatori, na Estrela de Lisboa. Um lugar que já carrega no nome a promessa do verbo criar. Lá fomos recebidos com generosidade pelo cineasta e articulador cultural Fabiano Cafure, brasileiro de raiz, mas já com alma portuguesa, acolhedor como quem abre a própria casa e o coração.
Fabiano Cafure e Cibele Laurentino (Espaço Kreatori/Lisboa Acervo da autora
Evento "Conversa com Escritores", liderado pela idealizadora do projeto, a escritora paraibana Cibele Laurentino (Kreatori/Lisboa) Acervo da autora
A presença do ilustre Professor Ivo Furtado, presidente da Associação Portuguesa de Poetas, através da sua escuta atenta e das palavras inspiradoras, trouxe um brilho especial à noite. O seu percurso literário, traçado entre Goa e Portugal, aliado ao amor profundo pela língua portuguesa e à sensibilidade cultivada na sua prática como médico, revelou-nos, com clareza, a força transformadora da escrita — um poder que deve ser usado para tocar consciências e inspirar as gerações futuras.
Mas foi no inesperado que a noite atingiu o sublime.
Evento "Conversa com Escritores", liderado pela idealizadora do projeto, a escritora paraibana Cibele Laurentino Acervo da autora
Entre vozes treinadas e versos apurados, o poeta Daniel Baldini recitou 25 de abril, e de repente, levantou-se um homem simples, de fala trémula e olhos marejados: o senhor Mendonça, ex-combatente da Guerra Colonial, um dos poucos que, sem se dizer poeta, tocou-nos com a poesia mais profunda — aquela que:nasce da vida vivida.
Ele não trouxe papéis.
Trouxe memórias.
Trouxe o som surdo da explosão que, anos atrás, lhe arrancou um pé ao pisar numa mina, no calor de uma guerra que parecia nunca ter fim.
Mas ali, diante de nós, ele não falava de dor.
Falava de honra.
De luta.
E do orgulho em saber que o membro perdido em África foi, de certo modo, uma semente plantada para o florescer da liberdade.
Mendonça, ex-combatente da Guerra Colonial Acervo da autora
Lembrou-se de que, vez ou outra, na proa dos navios, sob a luz da lua, os soldados se reuniam, recitando poemas de esperança — e que agora, ali, voltou-lhe a mesma emoção, como se o tempo tivesse feito uma curva para o abraçar de novo.
Na sua fala, ecoava algo maior que o testemunho: uma lição sobre o valor de resistir, mesmo quando tudo parece perdido.
Passado e presente dançaram juntos.
E a literatura, uma vez mais, provou que é também abrigo, cura, espelho e ponte. Foi uma noite que não termina — porque ficará, viva, dentro de cada um de nós.