O fascínio de ver Ivo Barroso comentando a tradução de L'Amant – De Marguerite Duras – feita por Denise Bottmann
Em maio de 2007, ele publicou na FOLHA DE SÃO PAULO o artigo “Duras: A Doença Mortal de Escrever”. Quatro anos depois, no blog Gaveta do Ivo, acrescentou:
- Denise costuma dizer que não gosta de traduzir literatura, mas quando o faz é com resultados irrepreensíveis, como neste caso.
Como Ivo Barroso é o grande tradutor de autores como Ítalo Calvino, Breton, Jane Austen, Umberto Eco, Herman Hesse, Rimbaud e Shakespeare, pedi-lhe – com viva curiosidade - que justificasse o adjetivo “irrepreensíveis”. Ele me atendeu, quatro dias depois, no mesmo blog, com a matéria DURAS AINDA:
- Em primeiro lugar, no perfeito conhecimento das línguas, de partida e de chegada. Depois, seus dotes de escritora. Finalmente sua vasta cultura humanística, que lhe permite avaliar estilos, fases, tempos, adequações enfim.
Ele nos passa, então, um trecho do original, seguido de tradução de Denise Bottmann. Para que se sinta melhor a comparação, junto cada frase em francês, à que ela verteu para o português. Mesmo que você – como eu – não domine o francês, é gostosa essa aproximação às duas vozes:
Très vite dans ma vie il a été trop tard. Muito cedo foi tarde demais em minha vida. A dix-huit ans il était déjà trop tard. Aos dezoito anos já era tarde demais. Entre dix-huit ans et vingt cinq ans mon visage est parti dans une direction imprévue. Entre os dezoito e os vinte e cinco anos, meu rosto tomou um rumo imprevisto A dix-huit ans j’ai vieilli. Aos dezoito anos envelheci. [...] Ce vieillissement a été brutal. [...] Esse envelhecimento foi brutal. Je l’ai vu gagner mes traits un à un, changer le rapport qu’il y avait entre eux, faire les yeux plus grands, le regard plus triste, la bouche plus définitive, marquer le front de cassures profondes. Eu o vi ganhar meus traços, um a um, mudar a relação que existia entre eles, aumentar os olhos, entristecer o olhar, marcar mais a boca, imprimir profundas gretas na testa. Au contraire d’en être éffrayée j’ai vu opérer ce vieillissement de mon visage avec l’intérêt que j’aurais pris par exemple au déroulement d’une lecture. Ao invés de me assustar, acompanhei a evolução desse envelhecimento de meu rosto com o interesse que teria, por exemplo, pelo desenrolar de uma leitura Je savais aussi que je ne me trompais pas, qu’un jour il se ralentirait et qu’il prendrait son cours normal. Sabia também que não me enganava, um dia ele diminuiria o ritmo e retomaria seu curso normal . Les gens qui m’avaient connu à dix-sept ans lors de mon voyage en France ont été impressionnés quand ils m’ont revue, deux ans après, à dix-neuf ans. As pessoas que haviam me conhecido aos dezessete anos, quando estive na França, ficaram impressionadas ao me rever dois anos depois, aos dezenove. Ce visage-là, nouveau, je l’ai gardé. Eu conservei aquele novo rosto Il a été mon visage. Foi o meu rosto. Il a vieilli encore bien sûr, mais relativement moins qu’il n’aurait dû. Claro, ele continuou a envelhecer, mas relativamente menos do que deveria. J’ai un visage lacéré de rides sèches et profondes, à la peau cassée. Tenho um rosto lacerado por rugas secas e profundas, a pele sulcada. Il ne s’est pas affaissé comme certains visages à traits fins, il a gardé les mêmes contours mais sa matière est détruite. Ele não decaiu como certos rostos de traços finos; manteve os mesmos contornos, mas sua matéria se destruiu. J’ai un visage détruit. Tenho um rosto destruído.
Ivo comenta:
- A perícia com que a frase francesa é vertida para o português, mantendo-lhe o mesmo timbre, a mesma inflexão, o mesmo contorno, o mesmo sentido, a mesma validade emocional – mas sendo sem dúvida uma frase NOVA – é o que distingue a excelência da tradução. Além disso, é necessário um envolvimento com o que se traduz – seja para amá-lo, criticá-lo ou odiá-lo – mastigando-o, ruminando-o sem deixar qualquer dúvida quanto ao significado explícito ou meramente intencional.
A tradutora lhe confidenciou:
- como vc vai ver, é um ritmo basicamente recitado, para ser lido em voz alta – como uma história que a gente vai lembrando e contando para alguém, em que as repetições não são tanto para dar ênfase, mas como quando a gente repete alguma palavra para continuar o fio da narrativa, tentando lembrar direito o que aconteceu. o léxico é absolutamente simples (como kafka – com 3 meses de alemão a gente já consegue ler o kafka porque é o vocabulário mais simples que há). isso reforça muito a sensação de que é uma história contada em voz alta para algum amigo. a sintaxe é muito interessante, como se fosse um francês reformado, tirado da caixa tradicional (vc deve saber que a língua mais formalizada, mais petrificada do mundo é o francês…) e reposto numa ordem mais simples também, mais direta, mais enxuta, embora repetitiva – muito, muito desbastado, com algumas poucas liberdades. tentei manter a simplicidade e o ritmo (li várias vezes em voz alta, em surdina, só mentalmente – acho que deu pra passar um pouco esse ritmo de cantilena). quanto a essa “purificação” sintática que ela faz, é mais difícil sentir em português, mas faz com que desapareça aquele ar meio emproado que as traduções do francês costumam ter.
O editor Maurício Ayer:
- A tradutora Denise Bottman comenta que sua atenção se deteve naquilo que chama de “untuosidade” da fala da personagem. “Pareceu-me um tipo de texto eminentemente oral – quando lido em voz alta, você sente uma espécie de onda, não fluida, não líquida, não avassaladora nem, ao contrário, ‘embaladora’. É uma fala untuosa, diria eu – não chega a envolver nem arrastar, mas como que impele leve e inexoravelmente o leitor, como se seus pés estivessem mergulhados (não presos) em um ou dois palmos de lama.
Ivo encerra:
- São cuidados e envolvimentos dessa natureza que levam a uma tradução irrepreensível.
Machado de Assis fez uma crítica contundente a Eça de Queirós, acusando-o de haver plagiado Émile Zola. A acusação foi a de que O crime do Padre Amaro seria uma imitação de La Faute de l’Abbé Mouret, de Zola. Eça de Queirós rebate dizendo que o seu romance foi publicado primeiro e que só alguém dotado de “obtusidade córnea e má-fé cínica” poderia ver no seu romance uma imitação do romance do francês.
Que ninguém seja lento para buscar sabedoria quando jovem, nem cansado em sua busca quando estiver envelhecido, pois nenhuma idade é muito precoce ou muito tardia para a saúde da alma.Epicuro
E assim, inesperadamente, o convite para “fugir da pandemia “ foi aceito. Um dia para conhecer um novo-velho lugar, parte das histórias que ouvia meu pai, apaixonadamente, contar. Berço das duas famílias, dos meus antepassados.
O voo
Soltar-se as asas
Espécie de levantar âncoras
Ser em sustento pelas batidas
Tantas, tantas repetidas
Abaixo o olho mira, fantasia
De Ícaro em voo de seda
Magistral equilíbrio, penas
Que a si próprio não sustenta
Ao pássaro, o próprio voo inventa
Obstáculos cria e desvia, cruza
Dribla fiação, joga a rota
Vento, equilíbrio, mágica torta
Aos amigos Heloísa Arcoverde de Morais e João Leonardo Ribeiro de Morais (irmãos de Luciano)
O meu compadre e amigo Luciano Morais, menino impossível e azougado, foi cremado nesta segunda-feira, dia 14 de junho de 2021, na cidade do Recife.
Os que o conheceram apenas superficialmente tinham tudo para julgá-lo um extrovertido, um sujeito que, sem avareza, sem parcimônia, se gastava de dentro para fora. No entanto, o homem da piada pronta, da resposta precisa, disfarçava o tímido que ele sempre foi e que aparecia de corpo inteiro quando se via obrigado a cumprir um script. Nessas circunstâncias, o meu compadre não desempenhava o papel que, inadvertidamente, alguns desejavam que ele cumprisse, pois, insurrecto, insubmisso, tudo o que atravancasse o seu caminho,
A cantora Maria Bethânia nunca foi debutante. Já nasceu gigante.Kubi Pinheiro
Caetano Veloso - Uma paixão de menina. E de quebra veio Maria Bethânia e Carcará. Tive a chance de vê-la num show dos primeiros, no Rio de Janeiro. Sentada na primeira fila, ficava com as pupilas dilatadas a ouvi-la recitando Fernando Pessoa ou a dar aquelas carreirinhas no palco. Depois a vi em mais umas duas ou três vezes por aqui.
Que os velhos sejam sóbrios, respeitáveis, sensatos, fortes na fé, na caridade e na perseverança.Paulo, Tito, 2:2 (Bíblia de Jerusalém)
O número de pessoas idosas vem aumentado significativamente nas duas últimas décadas, no Brasil e fora do país. O relatório nacional sobre envelhecimento da população brasileira — documento elaborado pelo Ministério das Relações Exteriores e representantes oficiais dos estados e da sociedade civil — indica que os brasileiros com idade acima de 60 anos que representava, em 1940, 4% da população, passou para 9% no ano 2000. Além disso, tem aumentado o número de pessoas com idade acima de 80 anos que totalizava 166 mil, em 1940, e quase 1,8 milhões em 2000 (representando 12,6% da população idosa e 1% da população total). O prestigioso US Bureau of Census informa que cerca de três milhões de americanos têm atualmente 85 anos de idade ou mais.
Estrangeiro, de Edson Lemos Akatoy, é um daqueles filmes que você tem que assistir bem descansado, de espírito aberto e disposto a uma profunda contemplação da natureza. É longo (quase 2 horas), me lembrou Limite, de Mário Peixoto, e a música de Erik Satie (repetidamente) me reavivou esta lembrança.
Desjejum
café sem pão, café sem pão
é bandeira
e a poesia:
cheios de cafeína
- às vezes,
o vício não está onde a gente pensa
mas no poema que a gente não lê
Brasil
os pivetes
arrotam a miséria nas esquinas marginais
pedem esmolas
e fingem suplicar nossos olhares
enquanto brincam de independência
os pivetes
são atores que encenam
sua comédia
num país dramático
Gênesis
deus
criou a família
no sétimo dia
e descansou
- estava cansado
dos gritos da mãe
e do choro dos irmãos.
Abismo
você foge de mim
(não
como o diabo da cruz)
- enquanto
cultiva pétalas de ferrugem na alma.
Ciclo
não é só querer você por todos os janeiros
cultivando mitos
folha
a
folha
em seu pomar de atritos
não é só buscar fevereiro
definindo ritmos
passo a passo
na alegoria: triste arlequim
não, não é só procurar águas em março
submergindo
mares e rios
na felicidade de um naufrá (cio)
muito menos abrir portas
destravar cadeados
chave a chave
no quarto mês de nossa prisão
sei que é um pouco mais
um pouco maio
um pouco mouros perdidos na primavera
sei que quero junho
quero junto
quero jung
nada de freud
a explicar minha devoção junina
(silêncio em julho)
melhor sorrir a ausência de sorrisos
melhor contar um segredo a juliana
não estou bem certo é se rejeitaria
a sina de imperador
: agosto
ao gosto agostinista
rituais nada agnósticos
– agnus dei
dai-me um cântico para não rezar
sei que sinto o bafo de vulcões
em setembro
a sete léguas de distância
do meu próprio império
como se fora sete pastores em busca
de sete línguas e duas irmãs
outro mês já se inicia, sim
já já anuncio outubro
outrora buscava ruínas
hoje cavo minas
para suar poemas que não vão lhe conquistar
novenas de meus encantos
novembro e seus prantos
novelos que se enroscam
metonímias da minha linguagem
não quero só a parte que me cabe no seu todo
(dezembro é o ano inteiro
onde cabem todos os janeiros de mim em mim).
Ponto de Cem Réis
no centro do mundo da paraíba
umbigo da geografia paraíba
ali, no imenso ponto vazio
tudo que é alma, paraíba de estio
poetas ainda circulam precipícios
no pátio extenso que esconde agasturas
ali, vi políbio Alves arrotando o varadouro
no cafezinho em que gonzaga faz seu cronicário
ali, reginaldo e sua banca trazem as boas,
que as más vinham da língua de mocidade
de olho no relógio da dezoito dezessete
de olho na pregão do vendedor (em falsete)
de olho no paletó branco de caixa d´água
e da noite que abruma traficantes
até o sol chegar e bater no teu olhar, paraíba
até a graxa do menino limpar teus sapatos, paraíba
no décimo oitavo andar alumiar outros clarões
e pagar com cem réis o preço de teu amor, paraíba.
Bica
(Para Vinícius Guedes)
jacarés
em silêncio
ruminando o bote na natureza humana
leões na jaula
- presas da civilização
araras
em voo para o nada
: gaiolas de ilusão
macacos
em saltos graciosos
(bananas ao homem)
(no passeio, palmas para os acuados animais
que não assustam nem as criancinhas).
Desde quando foram anunciadas as premiações da festa do Oscar, fiquei a me perguntar porquê o excelente Chadwick Boseman não levou o prêmio de melhor ator... embora póstumo, para o seu belo currículo cinematográfico, concorrendo através do magnífico filme "A Voz Suprema dos Blues", 2020, com as parcerias de Viola Davis, Taylour Paige e outros...
Lá está ela! Veste um casaco marrom sobre um vestido bege, e calça mocassins cor de terra. Os cabelos, ainda que curtos e meio engordurados, esvoaçam ao vento da tarde. Uns fiapos de luz, que se coam pelo sobrecéu de folhas e galhos, deitam uns dourados intermitentes no rosto da mulher. Um rosto fino e ossudo, de maçãs salientes, um sulco profundo entre as sobrancelhas arqueadas. A boca, quase uma cicatriz.
Nem parece quase verão. Chicago, eternamente açoitada por ventos fortes, encara uma tardia onda de frio. Subo a gola do casaco enquanto arrasto a mala pequena pela calçada. Diante da Union Station, café, croissant e um gosto de liberdade. Estar só é um prazer que nem a pandemia abalou. Ao contrário: cada vez mais valorizo a companhia dos meus pensamentos, o diálogo interno com uns filósofos mortos e o mastigar constante das ideias para o próximo livro.
Ainda não sei por que me dispus a cursar Medicina. Filho e sobrinho de professores, sempre estive ligado ao magistério. Comecei dando aulas particulares de Português na casa dos alunos. Com isso juntei um dinheirinho, que me permitiu dispensar a mesada do “velho” e comprar meu primeiro carro – um Fusca usado. Fiquei exultante, pois com ele era mais fácil arranjar namoradas.
Tempo atrás, antes da pandemia, o Brasil reencontrava a figura impressionante da paraibana Zezita de Matos, via Rede Globo de Televisão. Pilarense de quatro costados, ela encarnava personagem de destaque de mais uma novela, produto nacional de larga exportação porquanto aceito em quase todos continentes.