Tolstói escreveu em uma de suas cartas que “a história seria algo excelente, se fosse verdadeira”, afirma Rubens Figueiredo, tradutor de Gu...

A História e as histórias


Tolstói escreveu em uma de suas cartas que “a história seria algo excelente, se fosse verdadeira”, afirma Rubens Figueiredo, tradutor de Guerra e Paz.

Não sei se na grade curricular do curso de História existem disciplinas como Filosofia da História ou Pensamento Crítico e História. Não sei, portanto, se há uma discussão sobre como se faz a história e, principalmente, a sua falibilidade. Digo isto porque o que mais vejo são posições inflexíveis, inamovíveis, sobre a certeza da história. Nada mais enganador.

guerra e paz tolstoi
Léon Tolstoi
A referência a Tolstói, no início deste texto, não foi apenas para cutucar a onça com vara curta ou deixar no ar uma afirmação cujo contexto desconheço e que, no mínimo, se pode chamar de provocativa. Referi-me ao escritor russo, porque considero brilhante o Capítulo I, da Primeira Parte do Tomo Três, de Guerra e Paz. Texto que deveria frequentar as aulas de História, para uma reflexão sobre essa ciência.

Como se sabe, esse romance de Tolstói trata, a um só tempo, da vida cheia de intrigas dos salões aristocráticos russos e das guerras napoleônicas, travadas entre 1805 e 1812, envolvendo a Prússia (Alemanha), Áustria, Polônia e Rússia, cujo ponto alto é exatamente a campanha contra a Rússia, uma das mais amargas derrotas sofridas pelo general e imperador corso.

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O escritor russo começa o referido capítulo tratando do início dessa guerra contra a Rússia, num emblemático dia 12 de junho de 1812. Na sua definição, e não podia ser mais exato, Tolstói diz que a guerra começada, com a travessia do rio Niemen por Napoleão, rio que fazia a fronteira entre a Polônia e a Rússia, era “um acontecimento contrário à razão humana e a toda natureza humana”. Napoleão, portanto, teve também o seu Rubicão. A guerra aparece ao romancista em uma palavra precisa e sem eufemismo – um crime:

“Milhões de pessoas praticaram, umas contra as outras, uma quantidade tão inumerável de crimes, embustes, traições, roubos, fraudes, falsificações de dinheiro, pilhagens, incêndios e assassinatos, como não se encontram nos autos de todos os tribunais do mundo em séculos inteiros, e, naquele período, as pessoas que agiam assim não consideravam que nada disso fosse um crime.”

Sondando as causas para tão “extraordinário acontecimento”, Tolstói conclui que a História não tem como abarcar toda a miríade de fatos que levam à insanidade da guerra e que levaram a essa guerra, em particular. O que se apresenta como explicação e justificativa lhe parece sempre insuficiente e incapaz de ser apreendido, por qualquer pessoa que tenha um mínimo de bom-senso:

“Para nós, não é compreensível que milhões de pessoas cristãs tenham matado e martirizado uma às outras porque Napoleão era ambicioso, Alexandre era obstinado, a política da Inglaterra era astuta e o duque de Oldenburg fora ultrajado.”

A crítica que Tosltoi faz à História, como ciência que não se pode tomar por infalível, mostra, na prática o que é Guerra e Paz
Há, para Tolstói, muitos “se”, que deveriam ser analisados dentro da imensidão de fatos que concorreram para essa guerra e outras existirem. Todos os “se” são condições que se acumulam para desaguar em uma ocorrência ruinosa como a guerra e não podem ser deixados de lado, pois eles compõem as “bilhões de causas” que “coincidiram para produzir o que ocorreu”. Dentre os “se” apontados como causal, não como casual, está a Revolução Francesa, que podemos dizer ser a mãe de Napoleão:

“Tampouco poderia ter ocorrido a guerra [...] se não tivessem acontecido a Revolução Francesa, a ditadura e o império subsequente, bem como tudo aquilo que decorreu da Revolução Francesa [leia-se aqui um reforço à ascensão meteórica e fulminante de Napoleão, impondo derrotas acachapantes à Europa], e assim por diante. [...] E por consequência nada foi a causa exclusiva do acontecimento, e um acontecimento tem de ocorrer apenas porque tem de ocorrer.”

O irônico é que Tolstói recorreu aos documentos históricos, sobre os quais se debruçou por 5 anos, para poder escrever o seu livro e tê-lo pronto em 1869. A crítica que ele faz à História, como ciência que não se pode tomar por infalível, mostra, na prática o que é Guerra e Paz: um livro em que os acontecimentos históricos banais (a vida da aristocracia russa e seus enfadonhos e empoados salões de bailes) e aqueles mais decisivos para o destino da humanidade (as guerras que destroçam vidas, de modo irreparável, para jamais) mostram uma escolha entre tantas possíveis, realizadas não num compêndio maçante, que se quer a visão objetiva da realidade, mas em um vibrante texto literário em que a ficção, como nunca, se mostra mais plausível do que qualquer relato histórico.


Milton Marques Júnior é doutor em letras, professor e escritor

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