Quando eu nasci, o Brasil fazia sua última declaração de guerra contra uma nação soberana, não por minha causa, é claro. Assim o fez ...

Não tive nem tenho culpa

nostalgia retrospectiva oitenta anos
Quando eu nasci, o Brasil fazia sua última declaração de guerra contra uma nação soberana, não por minha causa, é claro. Assim o fez por meio do Decreto Presidencial nº 18.811, de 6 de junho de 1945, dia do meu primeiro berro. Acho que o Japão, de quem hoje abrigamos a maior colônia nipônica fora da Ásia, não ligou muito para esse decreto então assinado por Getúlio e dez dos seus ministros. Tinha mais com que se preocupar.

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As forças aliadas desembarcam na Normandia, no Dia "D": 6 de junho de 1944. ▪ Fonte: Wikimedia
Contei isso ao amigo Rubens Nóbrega, semana passada. Disse-lhe que sou um passageiro do tempo. Que nasci quando a 2ª Grande Guerra já estava perdida para Hitler, Mussolini e Hiroito. O desembarque dos Aliados na Normandia, lembrei, dera-se um ano antes, em 1944, também, no 6 de junho. Dois meses depois, Tio Sam explodia bombas atômicas em Nagasaki e Hiroshima. Não se sabe, até agora, de nenhuma outra Nação que tenha pulverizado, dessa forma, seres humanos.

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Anúncio 1940s. ▪ Fonte: BN
Revelei que vim ao mundo quando a Ford botava carro no mercado ao custo de 650 dólares, preço coberto, naturalmente, por outras gigantes automotivas, em benefício da concorrência. “Que rei sou eu?”, perguntava-se Francisco Alves que, no ano do meu nascimento, também cantava “Isaura”. Naqueles idos, Dorival Caymmi saudava “Dora” e pegava um Ita no Norte. Gilberto Alves fazia “Prece à Lua”, enquanto Linda Batista lastimava: “Coitado do Edgar”. E Ademilde Fonseca não deixava por menos: “O que vier eu traço”. Ah, sim: Augusto Calheiros cantava “Célia”.

No plano internacional, as Irmãs Andrews iam de “Rum and Coca-Cola” e indicavam aos fuzileiros americanos o caminho do Paraíso: a humilde, sofrida, mas bela Trinidad. Para animar a tropa, além do drink famoso, as Sisters recomendavam os favores daquelas moças pobres, “mães e filhas em busca do ianque dólar”. O ano santo de 1945 foi um desastre ético e moral, meus caros. Mas não por culpa minha, repito.

Não sei se antes, ou depois, mas ainda nos anos de 1940, as emissoras de rádio, aqui e alhures, punham no ar algumas coisas mais decentes. Que o digam Frank Sinatra (com Night and Day), Nat King Cole (Nature Boy), Dizzy Gillespie (Groovin’ High), Glenn Miller (Tuxedo Junction), Jimmy Dorsey (Green Eyes), Bing Crosby (White Cristmas), ou Benny Goodman (Taking a Chance on Love). Eu sei, eu sei... Vocês podem ter outras peças e outros intérpretes mais significativos da época em questão. Pois bem, eu os aceito de mente e peito abertos.

Oitentinha é fogo, meus amigos. Tenham vivido tanto tempo e terão visto as Estampas Eucalol, um achado publicitário dos irmãos Paulo e Ricardo Stern para vender pasta de dente, de 1930 a 1957. E visto, também, Carmem Miranda com chapéus de abacaxi e banana impostos pelos americanos.


Eu disse ao meu amigo Rubens e repito. Li gibi pra dedéu. Zorro, Tarzan, Mandrake, Fantasma, Capitão Marvel, Bufalo Bill, Don Chicote, Buck Jones, Recruta Zero, Sobrinhos do Capitão, Pafúncio, Ferdinando... É uma lista interminável. Aos filhos – que em tal coisa não acreditavam – falei que na minha infância eu comia bolinhos com vitamina de banana e pagava por isso na lanchonete da esquina. Eles supunham que eu inventava essa história a fim de fazer com que tomassem, mesmo de graça, aquilo que detestavam.

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Brigitte Bardot, 1960s
Não me custa relembrar: a francesinha Brigitte Bardot me levou às bananeiras de Pilar e isso só não ficou entre nós porque confessei tudo, tintim por tintim, ao Padre Gomes que me prescreveu umas tantas ave-marias. Muito depois dela, uma morena do bairro da Serventia me levou à cama. Ainda era o tempo das saias plissadas.

Vi, como todo oitentão, os designs dos anos de 1950/60, entre eles o daquelas geladeiras arredondadas e menores do que as dona de casa. Ajudei a aplicar camadas novas de Cera Parquetina no piso da casa paterna depois da retirada das camadas mais velhas com palha de aço. Usei pena e tinteiro no banco escolar até o dia em que ganhei minha primeira Parker. Tinha esta uma bombinha de borracha que, apertada e solta, sugava tinta. Comprei manteiga a granel a mando da minha mãe. Calcei sapato Conga e vesti camisa Volta ao Mundo.

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Corri ao televisor a fim de ver a alunissagem de Neil Amstrong. Antes disso, eu acompanhava, a olho vivo, o ziguezague do Sputinik, em cima de Pilar. Já falei por aqui que o bicho surgia do Compra-Fiado, reduto dos mais pobres, e sumia depois do Engenho Recreio, zona dos ricos. Nos anos de 1980, vi um modelo fidelíssimo desse primeiro satélite russo dependurado no teto da Fundação Cultural José Lins do Rego, a Funesc do bairro de Tambauzinho, em João Pessoa. A coisa então percorria o Brasil, uma das escalas da sua exposição mundial.
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Réplica do Sputnik ▪ Museu do Espaço e da Tecnologia, S. Petersburgo, Rússia.A. Butko, via Wikimedia
Quase fui às lágrimas, ao lembrar de que aquela estrelinha singrava o céu da minha infância. Quantas conquistas da Copa do Mundo vocês viram? Eu vi cinco e sustento que as mais antigas sempre foram as melhores.

A passagem dos anos me traria outros voos e outros pousos. Fiz-me redator e repórter, casei-me e chorei as mortes de entes queridos, entre eles pai e mãe. Agora, quando penso que me tornei muito velho sou reanimado pela vitalidade de Francisco Cuoco (casado com moça 53 anos mais jovem), pela franja de Roberto Carlos, pela voz suave de Paulinho da Viola, pelo canto de Chico, Caetano e Gil, pelo aprumo de Ronnie Von, pela caminhada a passos largos de Paul McCartney e Ringo Starr, pelos trejeitos de Mick Jagger.


Reafirmo minha inveja. Bem que eu gostaria de ter, quando crescer, a pena de Jânio de Freitas e, não menos, a do nosso Gonzaga Rodrigues, ambos nonagenários. O primeiro deles, aos 93 anos, agora pontifica no Poder360, o jornal digital onde desembarcou depois de dispensado pela estupidez e pelo sectarismo da Folha. Por mais de 40 anos, o jornal com a maior tiragem do País (mas com uma fração, hoje, do 1 milhão de compradores que já teve) desistiu da pluralidade de ideias. Jânio, ali, destoava, garbosamente, daquele mazelento Caderno de Opinião.

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Jânio de Freitas, jornalista brasileiro, nascido em Niterói-RJ
Vivi, até agora, o suficiente para ver o progresso assombroso da ciência e da tecnologia, sem que isso haja contribuído, infelizmente, para a eliminação da miséria e da fome em um mundo para o qual há muito não faltam os meios e as condições do combate bem-sucedido à injustiça e à desigualdade sociais.

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@frutuosochaves
Vi, vivi e ainda vejo tudo isso. Algumas vezes, contrafeito. Outras, resignado e, outras mais, feliz por ter a vida e a família que tenho e os amigos que a boa sorte me trouxe. Semana passada, muitos – entre os quais antigos companheiros de jornal – se lembraram de mim. Paulo Emmanuel, o filho que, vez ou outra, Gonzaga me empresta, pôs-me, no espaço luxuoso deste Blog, em imerecidas porém bem-traçadas linhas. Saiu, em talento, ao pai biológico. Impossível responder ao número de felicitações que então me chegaram, a não ser assim e agora, coletivamente.

Eu quase me esquecia: não creio em que os ainda embarcados neste 2025 vivam dias melhores, mais puros e inocentes do que os do 1945 que me viu nascer. A fome ainda campeia, o ódio se expande, a Palestina arde e, lá na beirada da Rússia, acenderam o pavio da Terceira Guerra Mundial. Mas não, evidentemente, por culpa nossa: nem minha nem dos que aqui me leem, abrigam e suportam. Grato a todos.

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  1. Nós, seus leitores fiéis, é que lhe agradecemos, Frutuoso. Sua vida é um exemplo dignificante e seu texto é um consolo semanal que temos. Que Deus lhe abençoe e à sua família de todas as formas. A Paraíba comemora seus oitenta anos bem vividos. Parabéns. Francisco Gil Messias.

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    1. Sempre grato por sua gentileza, amigo Gil. E cada vez mais envaidecido em razão dos seus comentários por saber de quem vêm. Abraço forte, Frutuoso.

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