Sem dúvida ela era uma mãe. E, como todas, sempre preocupada com as crias, a absoluta prioridade de sua vida. Olhava ao redor e só via ince...

'Até quando, meu Deus?'


Sem dúvida ela era uma mãe. E, como todas, sempre preocupada com as crias, a absoluta prioridade de sua vida. Olhava ao redor e só via incertezas. Os biscoitos, bombons, pirulitos, todos próximos de perder a validade, acenavam como uma advertência para um dramático porvir, no fiteiro encostado junto à porta.

Não podia sair de casa, muito menos com ele, de duas rodas, agora com um dos pneus murchos. A recomendação era severa. Estava em tudo que é rádio, televisão, whatsapp. “Fique em casa”, frase que se tornou o mais terrível leit-motiv do triste cotidiano humano desde que este vírus contaminou o mundo. Enfim, tinha de obedecer.

E quase não havia uma batata sequer, só uns pedaços de pão dormido e uns nacos de rapadura. Até o pote de farinha estava menos de meio. Com o que restava de açúcar, ainda renderia uns poucos mingaus.

A recomendação era muito severa. Estava em tudo que é rádio, televisão, whatsapp. “Fique em casa”
Desde que foi abandonada pelo companheiro, pai biológico de seus dois filhos, justamente quando engravidara do segundo, o fiteiro tem sido o seu sustento familiar. Este último, que nem conheceu o pai, já tem dois anos, e pode ficar em casa com o de cinco, contando com a eventual olhadela da vizinha, mãe de outros tantos, que trabalha lavando roupa em casa. Toda vez que levava o fiteiro para a praça grande, avisava pela janela que já se ia e renova o pedido.

Com o apurado da manhã, conseguia dar um pulinho em casa, depois de passar na bodega do caminho e comprar algum bocado para os pirralhos, “à guisa de almoço”. Mas, agora, não sabe o que fazer. A comida que resta já não resta.

Tentou por várias vezes conseguir a tal ajuda do governo para os “ambulantes e informais”, mas ficou até na dúvida se ambulava mesmo, pois a burocracia não incluía o que de si sabia. A última que enfrentou foi para registrar o caçula, sem nome de pai, no velho cartório. Fazer cadastro na internet era recomendação que soava mais estranha do que os tais covids e coronas. Mesmo assim, o dono da bodega havia se oferecido para fazer o seu cadastro e garantiu que conseguira. Mas as enormes filas da caixa econômica e as decepções anteriores do tal “cadastro não encontrado” já a desanimavam por completo.

O único ânimo atual era olhar para o fiteiro, ainda abastecido pela metade, que serviria emergencialmente depois que na prateleira nem farinha restasse…

Ao mesmo tempo, tal esperança se mesclava à aflição quando se lembrava de que os pirulitos e biscoitos estavam perdendo a validade. Foi quando se arriscou e tomou a decisão, naquela noite de domingo de lua quase minguante, ainda cheia. Vou à praça! Resolveu.

Com a mesma rapidez que os ciclistas trouxeram-lhe o que mais ansiava, levaram consigo as derradeiras ilusões
Eram quase 6 da tarde. A vizinha já havia encerrado a lavagem de roupas e concordou em ficar com os meninos, só um pouquinho, por umas duas horas, enquanto ela tentaria vender alguma coisa.

“Mas, mulher, tem ninguém na rua, não. Ninguém, viu?!” – alertou-a.
- Vou assim, mesmo mulher. Esses negócios vão terminar se estragando. Quem sabe eu dou sorte e vendo nem que seja um drops.
- Então tá. Vai com Deus. Deixa os bruguelos comigo. Ficam brincando aqui dentro.

Amarrou os cabelos e saiu empurrando o fiteiro rumo à praça, que mais parecia ser à meia noite de uma segunda-feira do que de um domingo enluarado. “Cadê, minha gente, nem uma pessoa pra espiar essa lua tão bonita, em cima do mar?”, pensou. Não, ninguém, nem alma errante, cruz credo.

Sentada no tamboretezinho, olhava o chão duro que nem a sua vida e as unhas dos pés, encardidas como a esperança. Se é que ainda pudesse haver algo com esse nome...
Pouco mais, cabisbaixa e já desanimada, escutou um barulho e avistou dois ciclistas vindo em sua direção, surgindo como uma inusitada aparição naquele palco inteiramente desolador. “Era a salvação”, pensou! Ergueu-se, fitou-os direta e acintosamente, ainda que de longe, atenta e espigada.

As bicicletas foram se aproximando junto com o crescente lampejo de fé. Era tudo que ela queria. Vender pelo menos dois sacos de pipoca, quase vencida.

Mas com a mesma rapidez que os ciclistas trouxeram-lhe o que mais ansiava, levaram consigo as derradeiras ilusões. Claro que eles perceberam que a mulher do fiteiro se espigou toda animada para recebê-los. Mas nem de longe pensariam em se aproximar. Tangenciaram muito além dos dois metros recomendados. Eles eram irmãos, viviam juntos e estavam indo apenas à padaria, o que lhes era permitido, afinal.

De longe, voltaram os olhos para o fiteiro e viram uma cena que jamais esqueceriam. A vendedora encurvada, cotovelos sobre os joelhos, cabeça baixa e o pensamento lá no chão. Pensamento que deu até para eles escutarem: “Até quando, meu Deus?”...


Germano Romero é arquiteto e bacharel em música


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  1. Meu amigo, essa ficção tornou-se uma triste realidade! Quantos pais e mães estão em verdadeiro desespero, à mercê não só do vírus, mas sobretudo das burocracias governamentais. É duro ter que enfrentar tudo isto e ainda saber que muitos estão alheios à fome e à miséria, que rodeiam a casa de muitos pessoas.

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  2. Muito boa realidade que nos mostrou ..caro Germano Romero ..com suas palavras contundentes!!!
    Curti todos os "Comentários anteriores"..que me tocaram sobremaneira!!
    É a nossa triste realidade.
    Paulo Roberto Rocha

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