Não é raro acharmos em Os sertões , de Euclides da Cunha, páginas antológicas, como a do soldado morto, na guerra, e encontrado, mumi...

Os sertões de páginas antológicas

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Não é raro acharmos em Os sertões, de Euclides da Cunha, páginas antológicas, como a do soldado morto, na guerra, e encontrado, mumificado, três meses depois (“A Terra”, Capítulo III, p. 42 – Todas as referências são da edição crítica de Walnice Nogueira Galvão, reproduzida em Os sertões, 2. ed. São Paulo, Ubu/SESC de São Paulo, 2019), ou a descrição-narração das “primeiras bátegas despenhadas da altura”, que não logram atingir o solo e “se evaporam entre as camadas referventes”, mas com o cair contínuo torna-se enxurrada, “caos de águas revoltas e escuras...”, durante o período das chuvas sertanejas (Capítulo IV, p. 48). Nas demais partes da obra, “O Homem” e “A Luta”, encontramos outras tantas páginas, que mereceriam destaques, e deveriam estar sempre presentes na sala de aula. Veja-se, por exemplo, a conhecidíssima passagem do Capítulo III de “O Homem” (p. 115), que se abre com um perfil físico-psicológico do sertanejo, de que se destaca o maravilhoso oxímoro “Hércules-Quasímodo”.

P. Lazzarotto
Gostaríamos, contudo, de ressaltar o início de “A Luta”, terceira parte de Os sertões, dividida em seis momentos por Euclides da Cunha, que vão, em um crescendo, da origem dos embates até a derrocada final da “Troia de taipa dos jagunços”.

O primeiro momento apresenta 4 capítulos, que funcionam como um preâmbulo do assunto, tendo recebido o nome apropriado de Preliminares. Admira-nos aí a técnica de construção de Euclides da Cunha. Trata-se da introdução ao dramático conflito, apresentada com uma técnica formal refinada, definida pelo próprio escritor como “prelúdio da guerra sertaneja”, ao fechar o Capítulo II (p. 222).

A composição dos quatro capítulos consiste em uma introdução ao tema, fazendo o encadeamento com o que já foi exposto nas duas partes anteriores de Os sertões; em seguida, vem o início do conflito, que suscita a primeira expedição, para, enfim, termos a preparação da segunda expedição, diante do insucesso da anterior, como auge dessas preliminares.

Atingido o apogeu da narrativa e revelado o quão difícil será o combate contra o ambiente adverso e um inimigo sem rosto, o último capítulo funciona como um epílogo, para dar fechamento ao que se quer dizer, mas anunciando, como nas epopeias clássicas o que virá em seguida – “Estava pronto o cenário para um emocionante drama da nossa história” (Capítulo IV, p. 233). Diversamente, contudo, do que faz a épica clássica, que anuncia o fato, sem dar-lhe continuidade, Euclides da Cunha não apenas mostra o anunciado, mas sobretudo conduz o leitor, prepara-o pacientemente e de maneira didática, exorta-o a acompanhá-lo e joga-o no meio da refega, de modo que ele sinta toda a emoção e a crueza dos combates.

P. Lazzarotto
O Capítulo I de Preliminares tem um início morno, com a explicação do surgimento dos jagunços, creditado, em parte, às condições mesológicas. O Capítulo II nos dá a conhecer o fato que origina o conflito, além da formação da primeira expedição, comandada pelo tenente Manuel da Silva Pires Ferreira, partindo para Juazeiro, em 7 de novembro de 1896. A narrativa da arregimentação de tropa de “cem praças da guarnição” (p. 215) e das dificuldades enfrentadas, com relação ao solo e ao clima, encaminham ao leitor para os fatos penosos de uma travessia calculada de 200 km, “sob o influxo exaustivo de uma temperatura altíssima” (p. 216), com a tropa debatendo-se entre “o aspérrimo vale do Vaza-Barris” e “as várzeas feracíssimas” (p. 217). O resultado não poderia ser senão a derrota, seja pela dificuldade do caminho a se trilhar, seja pela ação dos jagunços – “A tropa chegou exausta a Uauá no dia 19, depois de uma travessia penosíssima” (p. 218). A utilização sistemática do superlativo absoluto sintético, marca o estilo euclidiano de enfatizar algo grandioso e ajuda a revelar o horror de uma derrota vergonhosa e de uma matança que provoca grande choca no médico da tropa:

“Uauá patenteava quadro lastimoso. Lavravam incêndios em vários pontos. Sobre os soalhos e balcões ensanguentados, à soleira das portas, pelas ruas e na praça, onde dardejava o sol, contorciam-se os feridos e estendiam-se os mortos. Entre estes, dezenas de sertanejos – cento e cinquenta – diz a parte oficial do combate, número desconforme ante as dez mortes – um alferes, um sargento, seis praças e os dois guias – e 16 feridos da expedição. [...] O médico da força enlouquecera... Desvairara-o o aspecto da peleja. Quedava-se, inútil, ante os feridos, alguns graves” (p. 222).

O início do Capítulo III, num parágrafo único e sintético – “O revés de Uauá requeria reação segura” (p. 223) – é a garantia de uma narrativa que se revelará envolvente. Dá-se a arregimentação da segunda expedição, comandada pelo major Febrônio de Brito, e narra-se a guerrilha dos jagunços contra essa nova expedição.

P. Lazzarotto
A caatinga adversa aos soldados faz-se aliada dos jagunços, cujo rosto ou corpo não são vistos, mas que atraem os soldados, para o centro da emboscada. Os jagunços são “guerrilheiros impalpáveis dentro da tática estonteadora da fuga!” (p. 224). A caatinga é o seu “aliado incorruptível” (p. 225); o jagunço é “o antagonista que vê e não é visto” (p. 226); os soldados, diante do “antagonismo formidável da caatinga”, veem-se presos “num labirinto de galhos”, com as “pernas imobilizadas por fortíssimos tentáculos”, debatendo-se “entre as garras felinas de acúleos recurvos das macambiras...” (p. 227), vivendo “o império angustioso do inimigo impalpável e a expectativa torturante dos assaltos imprevistos” (p. 228); “a luta é desigual. A força militar decai a um plano inferior” (p. 229). Esperando talvez um combate em campo aberto, a força governamental encontra um combatente que se aproveita de seu conhecimento do ambiente, não se dando conta, senão muito tarde, de que “aquela flora agressiva abre ao sertanejo um seio carinhoso e amigo” (p. 229). O agrupamento em um batalhão e a manutenção de armamentos pesados, que fariam a força do exército, tornam-se a sua fraqueza, diante da tática do jagunço, agindo em combates ligeiros e dispersando o agrupamento – “O Exército sente na própria força a sua fraqueza” (p. 229).

P. Lazzarotto
A técnica da construção frasal e o estilo literário ganham uma dimensão épica e resultam na prisão da atenção do leitor. É um monumento de escritura, que surge, sorrateira, como os jagunços escondidos, mimetizados com o ambiente, e se torna verdadeira página literária a ser imortalizada em leituras e releituras recorrentes. O que irrompe da pena de Euclides da Cunha é uma batalha sem precedentes e desigual, de uma hoste com armamentos sofisticados, como metralhadoras e dois canhões Krupp, mas que, tendo contra si a adversidade do terreno e o desconhecimento do ambiente e de sua flora, cheia de armadilhas, mostra-se alvo perfeito por conta do uniforme vistoso de “fardas azuis listradas de vermelho” (p. 228), contrastando com o cinza da caatinga, com quem o inimigo está em perfeita simbiose. O jagunço é o homem-terra, o homem-vegetação. É ler e comprovar:

“Cercam-lhe relações antigas. Todas aquelas árvores são para ele velhas companheiras. Conhece-as todas. Nasceram juntos; cresceram irmãmente; cresceram através das mesmas dificuldades, lutando com as mesmas agruras, sócios dos mesmos dias remansados. O umbu desaltera-o e dá-lhe a sombra escassa das derradeiras folhas; o araticum, o ouricuri virente, a mari elegante, a quixaba de frutos pequeninos, alimentam-no a fartar; as palmatórias, despidas em combustão rápida dos espinhos numerosos, os mandacarus talhados a facão, ou as folhas dos juás – sustentam-lhe o cavalo; os últimos lhe dão ainda a cobertura para o rancho provisório; os caroás fibrosos fazem-se cordas flexíveis e resistentes... E se é preciso avançar a despeito da noite, e o olhar afogado no escuro apenas lobriga a fosforescência azulada das cunanãs dependurando-se pelos galhos como grinaldas fantásticas, basta-lhe partir e acender um ramo verde de candombá e agitar pelas veredas, espantando as suçuaranas deslumbradas, um archote fulgurante... A natureza toda protege o sertanejo. Talha-o com Anteu, indomável. É um titã bronzeado fazendo vacilar a marcha dos exércitos” (p. 229-230).

O Capítulo IV é o epílogo dessas preliminares. A partir daí, anuncia-se a sangrenta guerra fratricida, comparada à Vendeia francesa, movimento contrarrevolucionário que ocorre no norte da França, em 1793, abrindo o período de Terror da Revolução Francesa – “Canudos era a nossa Vendeia. O chouan e as charnecas emparelham-se bem com o jagunço e as caatingas” (p. 231).

Abrindo a perspectiva do que acontecerá a partir da travessia do Cambaio, Euclides tem o leitor nas mãos.

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  1. “O sol poente desatava, longa, sua sombra pelo chão, e protegido por ela — braços largamente abertos, face volvida para os céus, — um soldado descansava.
    Descansava… havia três meses.
    Morrera no assalto de 18 de julho.” (CUNHA, Euclides. Os Sertões. Rio de Janeiro: Ediouro, s.d.p., p. 35).
    Sempre uma aula, prof. Mílton.

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