Fomos estimulados a entrar na conversa poético-literária que se estabeleceu entre a respeitável tríade de escritores composta por Milton Marques Júnior, Hélder Moura e Nevita Franca. É desnecessário enfatizar a honra da provocação considerando o elevado nível do tema e do trio que o abordou.
Tudo começou com um passeio de Milton pelas ruas de Coimbra, cidade que se tornou parte de seu cotidiano desde que lá passou a residir com sua esposa Alcione Albertim em busca de novas experiências e saberes literários, clássicos como eles dois.
Pois bem, o tema que deu origem ao texto “Uma história em dois atos”, publicado no carlosromero.com.br, trata da poesia de rua inscrita nas vias públicas de Coimbra, a que Milton se refere mormente como “grafite”. Ao observar as fotos que ilustraram o texto, clicadas por ele próprio, a ideia que nos veio não foi exatamente de grafitagem, e sim de pichação (talvez porque sejam consagradas mundialmente como "spray graffiti"), atitude que traduz, na maioria, lamentável vandalismo. Sobretudo quando polui e deteriora a aparência de fachadas, monumentos, muros e paredes de uma cidade.
@ouropreto.mg.gov.br/
Milton ressalta certa curiosidade e até beleza, com razão, nos ditos pichados em várias ruas e recantos da cidade portuguesa. Alguns inteligentes, perspicazes, como, por exemplo: “Deus é todo mundo sorrindo ao mesmo tempo”, que bonito! E na sabedoria que há em “Amanhã é tarde/Ontem é impossível”, entre tantos outros que desfilam no seu ensaio.
Embora sintonizemos com a estesia que lhe despertou inspiração ao apreciar o panorama coimbrense rabiscado com tais escritos, não conseguimos concordar com pichação em nenhum lugar do mundo esclarecido. Ainda que se considerem como legítimos os brocados inseridos poética ou panfletariamente no cenário de praticamente todas as urbes, há de se convir que neles haja desregularidade cometida contra o patrimônio público.
Hélder Moura carlosromero.com.br
Ao suscitar personagens de Homero a Platão, de Tolstói a Rimbaud e Jorge Luís Borges, Hélder enfatiza a filosofia anarquista latente em grandes pensadores afins para além do tema em questão.
Pessoalmente, sempre desconfiamos da integralidade das convicções dos que se rotulam com pública veemência como “ateus” e “anarquistas”, em cuja conduta paradoxalmente se verificam lampejos de religiosidade (conceito bem distinto de religião), de urbanidade e solidariedade. Há ateus que se comportam na essência como cristãos, e anarquistas a se portar em vida e obra pautados por respeito e sociabilidade.
León Tolstói / Jorge Luís Borges / Arthur Rimbaud CC0/EFE/Henri Fantin-Latour
Ao ser indagado por seus seguidores sobre como deveriam proceder com segurança na tarefa de pregação e difusão do cristianismo após sua partida, Jesus respondeu: “meus discípulos se conhecerão por muito se amarem”. Nada impôs ao significado do “ser cristão”, apenas considerou o amor aos semelhantes, a tolerância, a compreensão, o sentimento de justiça e igualdade, como resumo de toda sua mensagem. Quantos “ateus” bons, cordatos, generosos, exemplos de humanidade produtiva e contributiva superaram e superam em muito o caráter dos religiosos crentes e praticantes de todas as eras…
Quanto aos anarquistas, há os que se definem como igualmente céticos, mas defendem reivindicações morais, põem-se contra o poder de dominação que aniquila as liberdades individuais, e valorizam teorias que apontam positivamente para o florescimento humano, baseado em ideais de igualdade.
Cris Faga/PMSP
Entendemos que a objeção à existência de uma autoridade dominante sobre o povo tende a reforçar-se quando o poder e a política que a sustenta não são legítimos, levando os anarquistas a lutar por uma organização social baseada no voluntarismo e na ajuda mútua. Julga-se assim, portanto, ser plausível que haja comunas que vivem sob a égide do anarquismo em que as relações humanas são bem sucedidas e a sociedade civil vive isenta de autoridade política hierarquicamente coercitiva. O que não pressupõe, contudo, a ausência de senso de coletividade exercida com respeito aos bens comuns, à integridade pessoal, ao patrimônio e aos serviços públicos utilizados por todos. Infelizmente, o conceito de anarquismo, vez por outra, está sujeito a interpretações ingênuas e levianas como defesa do caos e bagunça sem leis, regras ou freios à estupidez.
Mikhail Bakunin (filósofo anarquista) Nadar (wikimedia)
Voltemos ao foco temático da salutar “conversa” para a qual fomos convidados, à parte de considerações filosóficas e conceituais, pois o que o professor Milton quis nos transmitir foi a carga de poesia e de sabedoria descortinada pela reconhecida argúcia e profundidade de seus conhecimentos, ao contemplar a pichação coimbrense. São expressões de inegável valor que conclamam à realidade por vias poéticas, sábias ou de justo protesto, e não necessariamente nos fazem tirar os olhos das estrelas com que tanto sonhamos, acordados ou não.
Milton Marques Júnior Acervo pessoal
Na possibilidade desta comunhão, Hélder parece não conseguir imaginar que os anarquistas, os pichadores, os grafiteiros, e todos os que produzem alguma expressão de poesia não possam ter pés no chão e olhos no céu. Desde os mais remotos autores que destaca: “o próprio Platão foi se valer de poetas como Homero, e toda a sua anárquica obra, da Odisseia à Ilíada, inclusive apropriando muito de suas veias poéticas para compor o corolário de sua própria obra [...] Pelo menos em minha humilíssima opinião de leigo, entre um anarquismo e outro, estavam as estrelas.”
Nevita Franca Acervo pessoal
A professora viu reconhecido nos textos em epígrafe seu viés anárquico e até sugeriu que “todo mundo tem um pouco de anarquista e cético”. Muito oportunamente mencionou citação de Aristóteles que se adequa ao tema:
“diferentemente da família e da aldeia que une os indivíduos por laços de consanguinidade ou interesse, a cidade os une com o fim de fazê-los viver “como convém que o homem viva” [...] Somente na cidade é que o homem pode realizar a capacidade inscrita em sua essência”.
Aristóteles Fasbam
Vemos com dificuldade a quebra do elo que une cidade e comportamento, ainda que ocorram maneiras de extrapolar o habitual, o convencional, como destaca a professora Nevita:
“para falar a partir do coração das coisas, do íntimo, do profundo, pressentindo o mistério que elas encerram [...] fornecer indicações práticas para mudanças sociais [...] realizando um “movimento inesgotável de busca [...] em que a arte vem para exprimir o que está nas entrelinhas”.
Van Gogh
Neste fluxo de pensamento, você bem reitera a grandeza de linguagem que há em diversas maneiras de manifestar a emoção, seja na ficção literária, que, “por mais estranha, por mais mentirosa, expressa alguma verdade”. Como nos muros onde a sensibilidade clarividente de Milton se fez penetrar estimulada por seu amor à poesia.
Banksy
O que nos fez lembrar do brilhante muralista Eduardo Kobra, brasileiro com projeção internacional pelos magníficos painéis que cria em todo o mundo, inclusive o que foi registrado em 2016, no Guinness Book, como “o maior grafite já realizado no planeta”. Kobra foi, a propósito, objeto de uma Pauta Cultural do Ambiente de Leitura Carlos Romero, em junho de 2022. Tanto quanto vale lembrar do baiano-amazonense Raí Campos, em cujo trabalho se entoa um belo canto em defesa da causa indígena.
Nevita então coroa seu texto voltando às palavras de Hélder Moura, para quem as “noites sem dormir geram grandes ideias ou grandes monstros”:
“Penso que grandes ideias são quase sempre monstruosas. Desafiam o status-quo, questionam normas estabelecidas, desvelam crenças arraigadas, expõe o mofo de pensamentos, ameaçam os que têm interesse em manter o poder ou a ordem, gera resistência e medo nos que se sentem confortáveis instalados na mediania”.
Raí Campos
Aqui me despeço, grato por participar e poder com vocês sempre aprender, tal como inevitavelmente acontece na condição de leitor e fã que sou do que produzem.
Acreditamos que exista em nosso oportuno diálogo um coro uníssono, mesmo que em caminhos distintos, contrapostos como numa fuga a várias vozes. Um coral a louvar à arte como expressão máxima da capacidade do ser. Afinal, tudo é arte na vida que pulsa calada ou gritante, pintada, pichada ou grafitada. Arte é todo efeito que se produz na elevação dos sentimentos, nos faz melhores, independente da intenção do artista, da recepção, da impressão da crítica, do estilo a que se enquadre, da definição estética ou das verdades que possa arrancar de cada espectador. Por mais que desejemos defini-la, a arte escapa aos compêndios, tratados, aos mais vetustos saberes, principalmente quando é capaz de se acomodar no aconchego íntimo das sensações de quem sequer supõe o que ela seja.