Só mesmo uma oriental para comemorar a conquista do Nobel de literatura tomando chá, em silêncio. Pois foi isto que fez a escritora...

Tomando chá, em silêncio

Só mesmo uma oriental para comemorar a conquista do Nobel de literatura tomando chá, em silêncio. Pois foi isto que fez a escritora sul-coreana Han Kang, 53 anos, ao receber a notícia da grande vitória. “Tomarei chá com meu filho, em silêncio”. Só esta frase, esta reação tão serena e tão sábia, justificam, para mim, a outorga do prêmio, não tivesse ela escrito, apesar de ainda jovem, livros que, segundo a Academia Sueca, “inovaram a prosa contemporânea”. “Tomarei chá com meu filho, em silêncio”. É preciso repetir esta frase extraordinária para penetrar-lhe o profundo sentido e alcance. Nada da algazarra do mundano e previsível champanhe que outros elegeriam para momento tão festivo, mas a sóbria ancestralidade do chá e o recolhimento do silêncio, símbolo de modéstia, de reflexão e, quem sabe, de oração.

Só agora conheci essa autora e ouvi falar de seus livros, dos quais, aqui no Brasil, o mais conhecido é, ao que parece, A vegetariana, editado pela Todavia, 2018. Não posso, portanto, opinar sobre os seus méritos, os quais, imagino, devem estar à altura da honraria que lhe concederam na Suécia, a despeito de existirem, certamente, autores até mais merecedores e não premiados, como não raro tem acontecido desde a criação do Nobel. Tenho, pois, que me ater aos seus emblemáticos chá e silêncio, o que deve bastar para preencher estas poucas linhas de cronista hebdomadário.

A Academia Sueca nos últimos anos tem se preocupado em universalizar o prêmio Nobel de literatura, de modo a contemplar autores dos mais diversos países e continentes. Como todo critério, é discutível, mas neste há um benefício que não se pode negar: o de permitir que os leitores ocidentais tomem ciência de autores de outras terras, os quais, sem os holofotes suecos, correriam o risco de permanecerem desconhecidos internacionalmente, com imensos prejuízos para a literatura, que é vento que sopra onde quer. Não fosse assim, quantos africanos e asiáticos, por exemplo, teriam ficado no olvido, sem que pudéssemos fruir de suas criações. Podemos eventualmente até ter outras preferências para o prêmio, pois sempre restam os injustiçados, como Jorge Luís Borges e Philip Roth, para citar apenas dois muito célebres, mas o fato é que, em alguma medida, os premiados sempre merecem a distinção, pois ninguém a recebe graciosamente. Mas voltemos ao chá e ao silêncio de Han Kang.

O chá é uma bebida milenar. Acredita-se que surgiu na China há cinco mil anos, quando na orgulhosa Europa talvez só existissem mato e pedras, nenhuma civilização. Uma lendária história conta que por aqueles remotos tempos um certo imperador chinês, de nome Sheng Nong, para combater algumas epidemias em seu território, ordenou que a população fervesse a água antes de beber. Um dia, estava ele sob uma árvore, aguardando que a água de seu copo esfriasse um pouco, quando percebeu que algumas folhas tinham caído sobre o líquido, dando-lhe um gosto agradável. E assim teria surgido o chá, dessa água quente e dessas folhas casuais.

Da China, o chá foi levado para o Japão, e dali espalhou-se pelo mundo. No século XV, os portugueses teriam contribuído muito para a internacionalização dessa bebida que não embriagava, mas, ao contrário, acalmava e curava, tendo aos poucos se tornado um hábito refinado e popular ao mesmo tempo. Hoje, como sabemos, o famoso “chá das cinco” é um ritual de luxo, elegância e civilização nos melhores endereços. Mas também frequenta os lugares mais simples, democraticamente.

Elegância e civilização. Estas duas palavras têm tudo a ver com o gesto comemorativo de Han Kang. A elegância da sobriedade, do comedimento, da discrição, da reserva. Do não espalhafato, da não folia. A elegância do assumido menos (que é mais) e do deliberado despojamento. E nessa depurada elegância, natural ou conscientemente cultivada, que nada tem necessariamente a ver com riqueza nem erudição, revela-se toda uma civilização, naquilo que de mais elevado possui esta palavra. Que se opõe, de forma radical, à barbárie, e se mistura ao requinte da mais sutil polidez, potencialmente encontrável tanto nos palácios quanto na cela de um monge ou na cabana acolhedora de um camponês.

E o silêncio? Que é de ouro, como diz o povo, diferenciando-o da palavra, que é de prata, portanto menos valiosa. Neste nosso mundo de tanta algaravia, de tanta palavra inútil e desperdiçada, de tantos barulhos desnecessários, que preciosidade é o silêncio. E quão difícil tem sido alcançá-lo. E quanto bem ele nos faz quando o encontramos. É como uma lufada do mais puro oxigênio nos nossos pulmões poluídos. É o anúncio da possível paz. É, quase sempre, a chegada da própria paz ao bulício insano de nossas vidas vãs, agitadas por miudezas e insignificâncias. No Paraíso, imagino, deve reinar o mais absoluto silêncio, supérfluas que serão quaisquer palavras.

Certamente os próximos tempos não serão fáceis para a autora subitamente célebre. As exigências mundanas do prêmio são muitas e incontornáveis. Há que se dar mil entrevistas, falar em eventos inumeráveis etc etc. Haverá talvez o chá, mas o silêncio será mais difícil. Todavia, também é certo que os orientais sabem lidar melhor com os barulhos do mundo.

De minha parte, vou tratar de ler Han Kang. Se possível, imitando-a, ou seja, tomando um chá, em silêncio.

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  1. Obrigado Milton. Só alguém como você para fazer um comentário desse.

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  2. O chá faz bem ao corpo e a a alma. Vc interpretou bem o sentimento da escritora..

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  3. Parabéns Gil, me atrevo a dizer que é quase autobiográfico! Francisco Albuquerque

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  4. - Infusão saborosa na alma e nas letras do Oriente, Gil. Mas, ao contrário das folhas na água quente do Imperador, produto do acaso, o que sorvemos de você é fruto da sua competência e talento admiráveis. Infelizmente, chega-nos muito pouco daquelas bandas. Quase toda mídia ocidental é uma sucursal da Fox News, creia.

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  5. De fato, Leo, é preciso calma (e silêncio) para se pensar em que gastar tanto dinheiro. KKKK Obrigado.

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  6. Obrigado, Marília, pelo seu rico comentário.

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  7. Obrigado, Raniery. Você é que é um cavalheiro.

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  8. Obrigado, professora Neide. Sua discrição e elegância têm muito do Oriente.

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  9. Obrigado, Francisco., por sua sensibilidade.

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  10. Obrigado, Frutuoso, por sua leitura e seu generoso comentário.

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  11. Severi8no Elias Sobrinho22/10/24 08:11

    Simplesmente, tocante. Após a leitura, temos a vontade de, não só de tomar chá em silêncio, mas, sobretudo, ler a obra da autora.

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  12. Obrigado, Sérgio.

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  13. Obrigado, Elias.

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