Fosse na Inglaterra ou na França, por exemplo, um jornal completar cem anos de existência até que seria normal. Na civilização, sabemos, as coisas costumam durar e as tradições são cultuadas com orgulho nacionalista, no bom sentido da palavra. Lá ninguém pensaria em derrubar o prédio do Parlamento inglês ou o Palácio de Versalhes para colocar no lugar um empreendimento imobiliário qualquer. Mas aqui, nestes trópicos ainda bárbaros, talvez eternamente bárbaros, é diferente. A impermanência é a lei da tribo e a precariedade de tudo, uma fatalidade que se aceita naturalmente, como se fosse coisa de Deus (ou do diabo). De modo que um jornal
Largo da Carioca (RJ) Biblioteca Nacional
brasileiro completar um século de vida, estando ainda em pleno vigor e prometendo mais cem anos pela frente, é de fato um acontecimento. Um grande acontecimento, para dizer melhor.
E como estamos necessitados de grandes acontecimentos. Nós, que, há tempos, temos vivido mergulhados num pântano de mediocridade e mesquinharia. Nós, que já perdemos (ou quase) qualquer esperança de um futuro melhor, pelo menos no curto e no médio prazos. Nós, que diariamente temos a sensação, quando não a certeza, de que o país anda para trás, na contramão da História. Sim, precisamos de grandes acontecimentos, quaisquer que sejam, para não sucumbirmos de vez ao desânimo, à descrença – e até à depressão.
Daí o centenário de O Globo, do Rio de Janeiro, ser motivo de júbilo para boa parte dos brasileiros. E se não digo que é para todos, sem distinções, é porque sei, sabemos, que alguns viram o rosto para o diário da família Marinho, menos por razões culturais que ideológicas. Passadas décadas, não esquecem a posição adotado pelo jornal nos idos de 1964 e anos seguintes. Há rancores que duram para sempre, sem relativizar nada, sem nenhuma nuance que atenue os
Roberto Marinho Arquivo Nacional
julgamentos. Tudo bem. Respeitemos democraticamente as divergências. Mas, por uma questão de justiça, que não esqueçam a notória proteção que Roberto Marinho deu aos seus muitos jornalistas de esquerda. Pressionado para demiti-los, conta-se que assim respondeu aos sedentos perseguidores: “Ninguém mexe com os meus comunistas; deles, cuido eu”. E de fato cuidou, mantendo-os e protegendo-os, sem discriminações. O mesmo gesto solidário, sabe-se, teve o cardeal do Rio, Dom Eugênio Sales, que escondeu diversos perseguidos pela ditadura em instalações da arquidiocese carioca.
A história de O Globo é de luta e crescimento constante. Começou pequeno, com o fundador Irineu Marinho, que o transmitiu ao filho Roberto, responsável pelo sucesso que foi sendo conquistado aos poucos, com perseverança. O Rio de Janeiro no século passado teve dezenas de jornais, a concorrência era brutal. Muitos diários não sobreviveram às dificuldades, mas dois se destacaram no apreço do público leitor: o Correio da Manhã, da família Bittencourt, e o Jornal do Brasil, da condessa Pereira Carneiro. Carlos Lacerda teve o Tribuna da Imprensa e Samuel Weiner a Última Hora, ambos com expressiva tiragem. Todos sucumbiram, por motivos os mais diversos, desde a perseguição política, caso do Correio da Manhã e da Última Hora, até as dificuldades financeiras, caso dos outros dois. E O Globo resistindo, com ou sem a ajuda dos governos, até conquistar um lugar entre os maiores.
Primeiro prédio da Rede Globo @brasilparalelo
O surgimento da TV Globo e o seu posterior domínio absoluto em sua área ajudou a consolidar o jornal de todas as maneiras. Principalmente junto ao público carioca. Hoje, conservando sua versão em papel, O Globo reina quase que absoluto nas bancas de jornais e revistas, as quais no Rio, ao contrário daqui, ainda existem. O poderio econômico dos Marinho, alavancado com a TV Globo, permitiu ao jornal manter em seu quadro jornalistas do primeiro time e também evoluir graficamente. Merval Pereira, Míriam Leitão, Joaquim Ferreira dos Santos, Bernardo de Melo Franco, Carlos Alberto Sardenberg, Vera Magalhães, Bruno Astuto, Martha Medeiros, Ruth de Aquino e Cora Rónai são apenas alguns dos nomes que podem ser destacados como colunistas de prestígio. E também são uma prova do pluralismo ideológico do diário, sem prejuízo, claro, das posições editoriais dos donos, como acontece em todos os jornais do mundo.
Cora Rónai, filha de Paulo Rónai, um dos grandes intelectuais estrangeiros que vieram para o Brasil fugindo do nazismo, tem luz própria. É a minha leitura obrigatória das quintas-feiras, dia em que publica sua coluna. Geralmente, ela escreve sobre livros, garantindo ótimas dicas sobre as publicações mais recentes. Foi através dela que descobri, por exemplo, O amigo, delicioso romance de
Cora Ronái @cronai
Sigrid Nunez, escritora norte-americana em franca ascensão na cena internacional da literatura contemporânea. Para mim, só ela vale a assinatura do jornal (on-line), mas tem muito mais, para todos os gostos.
Alguém poderá perguntar por que O Globo e não, por exemplo, a Folha de S. Paulo. Resposta: por uma razão eminentemente pessoal, pois sou mais afeito ao Rio que à capital paulista. Sei que o Rio anda meio fora de moda para alguns, assim como sei que os melhores restaurantes e espetáculos de teatro estão agora em São Paulo. Tudo bem. Mas neste caso o hábito pesa muito. No Rio, eu me oriento minimamente, enquanto que em Sampa eu me perco. No Rio, consigo andar a pé, pelo menos em Ipanema e Leblon; em São Paulo, só ando de táxi. E por aí vai.
Esclareço ao leitor que não faço nenhuma apologia irrestrita a O Globo. Frequentemente, tenho as minhas divergências e, não raro, minhas indignações com o jornal. É o meu direito de cidadão, ao qual não renuncio, salvo sob tortura, perdão. Mas me incorporo sem problema às justas comemorações pelo centenário do diário. Gostando-se ou não, ele, com essa marca dos cem anos, é uma conquista da cultura brasileira, uma pequena prova do potencial de nosso país, potencial este que, em outras áreas, temos desperdiçado com afinco.